sexta-feira, abril 21, 2006

Externalismos

O texto que estou escrevendo para o Encontro da Anpof começa com a seguinte definição do externalismo/anti-individualismo:

O externalismo ou anti-individualismo é a posição filosófica que sustenta que os conteúdos dos pensamentos, estados e eventos mentais de um sujeito são constituídos, pelo menos parcialmente, por fatores que se encontram fora de sua mente, no 'mundo externo', dos objetos físicos e das relações sociais com outros seres humanos.

Chamemos essa definição de E1. Ao comentá-la, meu orientador afirma o seguinte:

Eu diria, antes, como Putnam: 'fora da cabeça'. Pois, se o externalismo está certo, a própria mente está fora da cabeça! Na Introdução a The Twin-Earth Chronicles, Putnam observa:

Por certo, negar que os significados estejam na cabeça deve ter consequências para a filosofia da mente, mas à época em que escrevi essas palavras eu não sabia ao certo que consequências eram essas. Afinal de contas, conhecer o significado de uma palavra e usar uma palavra com significado são "habilidades mentais" paradigmáticas; entretanto, eu não sabia ao certo, quando escrevi 'The Meaning of "Meaning"', se a moral daquele ensaio deveria ser que não devemos conceber o significado das palavras como algo que está na mente ou se (como John Dewey e William James) deveríamos parar de pensar na mente como algo que está "na cabeça", e concebê-la, antes, como um sistema de capacidades e interações que envolvem o ambiente. No fim, terminei oscilando entre essas duas posições. (In. Andrew Pessin e Sanford Goldberg, The Twin Earth Chronicles; Armonk, NY: M.E. Sharpe, 1996, pp. xvii-iii.)

Chamemos a tese proposta por Putnam na passagem acima -- a de que própria mente está "fora da cabeça" -- de E2. De fato, uma das perguntas que não querem calar no meu estudo dos externalistas é se E2 dá conta dos interesses e suposições mais fundamentais dos autores que defendem essa posição. Se a tese central do externalismo é corretamente apresentada por E2, e não por E1, então preciso corrigir minha afirmação, feita num post anterior, segundo a qual

[...] a tese de que os conteúdos mentais estão 'fora' da mente, e não 'dentro' dela, colocada nesses termos, encaminha para exatamente a mesma imagem que deveria estar sendo combatida pelos defensores do anti-individualismo, i.e., a imagem na qual 'mente' e 'mundo' estão metafísica e epistemicamente isolados. [...] Em minha opinião, um modelo filosófico realmente satisfatório para explicar os fenômenos mentais deveria colocar em questão a própria dicotomia filosófica entre 'mente' e 'mundo', 'interno' e 'externo', e não simplesmente defender um realismo metafísico no qual essas esferas continuam isoladas. [...]

Em outras palavras: se a tese externalista é a de que a própria mente está "fora da cabeça" (E2), então sim temos um abandono da dicotomia tradicional entre "mente" e "mundo", que eu argumentava ser compartilhada por "externalistas" e "internalistas". Entretanto, como já assinalei naquele mesmo post:

[...] o próprio termo 'externalismo' foi introduzido originalmente por Putnam num contexto em que ele descrevia uma perspectiva do que ele próprio chamou de "realismo metafísico", ou "o ponto de vista de Deus", i.e., a concepção segundo a qual "O mundo consiste de alguma totalidade fixa de objetos independentes da mente." (Putnam 1981).


Se é assim, então o "externalismo" parece ter sido concebido em pecado. É claro que isso não exclui a possibilidade de que, no desenvolvimento da posição de Putnam, ele possa ter-se dado conta de que a tese de que os significados estão fora da cabeça é ambígua, ou, no mínimo, indeterminada quanto à metafísica e à filosofia da mente em que a devemos acomodar. Em princípio, ela poderia muito bem ser acomodada na moldura do realismo metafísico. É justamente isso que, me parece, filósofos "externalistas" como Davidson tentam fazer. Aparentemente Putnam deu-se conta desse problema, e passou a defender a tese do externalismo semântico de uma maneira mais consistente com seu "realismo interno", estendendo a própria mente sobre o mundo.

Dito isto, vale salientar que a tese "externalista" expressa por E2 não é nada nova na história da filosofia. Não precisamos parar em John Dewey e William James, como faz Putnam. Podemos retraçar sua origem pelo menos a Aristóteles, creio eu. Mas os meus "externalistas" preferidos na história da filosofia são Berkeley, Hume, Kant e Wittgenstein. Na seqüência pretendo descrever porque cada um deles pode ser descrito assim.

quarta-feira, abril 19, 2006

Sobre homens fictícios que se movem apenas por molas: Descartes vs. Wittgenstein II

Nas chamada Parte II das Investigações Filosóficas, seção iv, Wittgenstein apresenta uma reflexão bastante útil para fins de comparação com a idéia cartesiana da possibilidade de estarmos percebendo apenas autômatos:

"I believe that he is suffering."—Do I also believe that he isn't an automaton?
It would go against the grain to use the word in both connexions.
(Or is it like this: I believe that he is suffering, but am certain that he is not an automaton? Nonsense!)
Suppose I say of a friend: "He isn't an automaton".—What information is conveyed by this, and to whom would it be information? To a human being who meets him in ordinary circumstances? What information could it give him? (At the very most that this man always behaves like a human being, and not occasionally like a machine.)
"I believe that he is not an automaton", just like that, so far makes no sense.
My attitude towards him is an attitude towards a soul. I am not of the opinion that he has a soul.

Tradução:

"Eu acredito que ele está sofrendo."—Será que eu também acredito que ele não é um autômato?
Seria contrário ao bom senso usar a palavra [acreditar] em ambos os casos.
(Ou é algo como isto: Eu acredito que ele está sofrendo, mas estou certo que ele não é um autômato? Absurdo!)
Suponha que eu diga de um amigo: "ele não é um autômato". —Que informação é passada por meio disso, e para quem isso seria uma informação? Para um ser humano que o encontra em circunstâncias ordinárias? Que informação isso poderia lhe dar? (No máximo que este homem se comporta sempre como ser humano, e não ocasionalmente como uma máquina.)
"Eu acredito que ele não é um autômato", assim desse modo, simplesmente não faz nenhum sentido.
Minha atitude em relação a ele é uma atitude em relação a uma alma. Eu não sou da opinião de que ele tem uma alma.


No post anterior sobre esse assunto eu disse:

A crença de que os seres que percebemos como homens em geral são homens -- i.e., pessoas, seres racionais, agentes dotados de liberdade, etc., assim como nós mesmos -- faz parte do pano de fundo compartilhado de nossas práticas linguïsticas, da moldura de crenças fundamentais unicamente dentro da qual dúvidas, certezas, erros e acertos empíricos e particulares são possíveis. Nossa gramática depende dessa crença, assim como das crenças na regularidade da natureza, no fato de que percebo minhas mãos à minha frente e elas são mãos reais, etc. [...]

Aparentemente W. está dizendo exatamente o oposto do que afirmei: tomar seres humanos como tais -- i.e., como seres humanos, dotados de uma "alma", e não como autômatos -- é uma atitude, e não de uma crença ou opinião . Mas não creio que devamos aqui pensar que W. está traçando uma distinção quase técnica entre 'atitude', por um lado, e, por outro, 'crença' ou 'opinião' (e nesse sentido concordo com Peter Winch, que defende o mesmo ponto no artigo " Eine Einstellung Zur Seele", In. Proceedings of Aristotelian Society 1980-81, Vol. LXXXI, pp. 1--16). O que W. está querendo criticar é uma determinada compreensão da presuntiva 'crença' ou 'opinião' -- nomeadamente, uma compreensão segundo a qual (i) tomar seres humanos como tais e (ii) crer que um ser humano particular está sofrendo, estariam, por assim dizer, num mesmo nível. Tomar um ser humano como um ser que tem uma "alma" é uma atitude muito mais fundamental -- de fato, é uma condição para que, em certas ocasiões particulares de um jogo de linguagem, eu possa estar certo ou em dúvida sobre se um sujeito está ou não sofrendo. Se, em alguma ocasião particular, tivéssemos boas razões para questionar se um sujeito qualquer é humano ou um autômato, então, nesta ocasião particular, não faria sentido discutir sobre se, digamos, ele está realmente sofrendo, ou se ele está fingindo. Falta-nos o pano de fundo contra o qual esse tipo de dúvida "empírica", por assim dizer, poderia ser levantada.

Descartes, na passagem que citei no post original, defende que é estritamente incorreto dizer que vemos homens pela janela, pois na verdade o que fazemos é um juízo -- julgamos, i.e., que aqueles espectros que vemos pela janela são homens verdadeiros. Penso que essa afirmação exemplifica perfeitamente o tipo de opinião contra a qual W. está argumentando na passagem acima. Tratar os demais seres humanos como dotados de uma "alma", e não como autômatos, não é fazer um tipo de inferência a partir da observação de algo mais "básico" ou "imediato", tal como a percepção do comportamento de certos "espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas". A prioridade lógica está sendo invertida na análise cartesiana. É apenas dentro da moldura de certas suposições fundamentais acerca do mundo e dos demais sujeitos -- dentre as quais a de que eles possuem uma "alma" -- que podem surgir dúvidas (e certezas) empíricas, que são as únicas que podemos ter legitimamente (com sentido).

Mas se é assim, então, obviamente, não é no simples confronto direto de teses e antíteses de Descartes e W. que podemos chegar a uma conclusão sobre qual deles está certo. É a própria plausibilidade ou legitimidade da dúvida metódica e hiperbólica de Descartes que precisa ser discutida, ao fim e ao cabo. Minha aposta é que W. tem bons argumentos, especialmente em Sobre a Certeza, para mostrar que essa dúvida não é legítima (é absurda, incoerente, impossível, etc.). Mas isso é assunto para outro post.

terça-feira, abril 18, 2006

Arthur C. Danto: Filosofia Analítica da Ação

Tive uma ótima primeira impressão do tratamento da ação apresentado em Analitycal Philosophy of Action, de Arthur C. Danto (Cambridge U. P., 1973), do qual li o Prefácio e o primeiro capítulo. Nesse livro Danto traça um paralelo muito interessante entre a investigação filosófica da ação e do conhecimento, indicando uma importante semelhança na estrutura lógica dos problemas envolvendo ambos os conceitos. É justamente esse tipo de paralelo que autores como O'Brien e Moran urgem que deve ser feito, e que, penso eu, é possível "desencavar" da obra de Wittgenstein.

O Prefácio começa com uma análise dos seis episódios da vida de Cristo retratados por Giotto na Capela Arena em Pádua. Em todos eles Cristo aparece com o braço levantado. Mas, não obstante a posição praticamente invariável do braço, em cada um deles a ação executada é muito distinta:

Discutindo com os sábios, o braço levantado é admonitorio, para não dizer dogmático; na festa de casamento de Canaã, é o braço levantado de um prestidigitador que faz com que a água se transforme em vinho; no batismo é levantado em sinal de aceitação; ele comanda Lázaro, ele abençoa o povo no portão de Jerusalem; ele expele as pessoas que emprestam dinheiro no templo. (p. ix)

Danto prossegue e argumenta que, dada a posição invariável do braço, a diferença na ação executada deve-se ao contexto -- o restante do que está retratado. Ele então apresenta seu objetivo como sendo o de apagar todos os elementos contextuais que envolvem nossas ações, "isolando as ações neutras e nuas antes de serem coloridas pelos tipos de significados que elas possuem nos muros da Arena e na vida comum" (id. ibid.), para desse modo melhor compreender como esses nossos movimentos podem ser "convertidos em algo mais humano e mais social, assimilados no processo da comunicação, e depositados como partes da história humana" (p. x).

O paralelo com o conhecimento (mais especificamente, com a percepção) é apresentado a seguir, por meio da noção wittgensteiniana de "ver como" (a "percepção de aspectos" da qual tratei em posts anteriores.) Assim como no caso das ações, Danto argumenta que é filosoficamente (heuristicamente?) útil partir da possibilidade de se imaginar um tipo de visão "nua" do objeto percebido (e.g., as figuras das personagens retratadas por Giotto), ou seja, uma visão que não viesse acompanhada de nenhuma informação sobre seu significado (histórico, pictórico, etc.). Desse modo, continua ele,  "poder-se-ia localizar o ponto na arquitetura lógica da percepção no qual essas características diferenciadoras ingressam, por meio das quais as coisas são vistas como algo que requer uma educação especial para ser compreendido" (id. ibid.)

Ações descritas de um modo que respeite o requisito da "neutralidade " são chamadas de ações básicas. Cabe ao restante do livro explicar quais são as condições para a identidade dessas ações, sempre tendo em vista o paralelo com o caso do conhecimento -- básico. Para quem se interessa pelo debate contemporâneo acerca do (auto-)conhecimento básico, pode ser bastante útil pensar nesse paralelo. É isso que estou tentando fazer já há algum tempo, e por isso mesmo o livro me agradou tanto.

sexta-feira, abril 07, 2006

Sobre homens fictícios que se movem apenas por molas: Descartes vs. Wittgenstein

O tempo dedicado aos estudos da tese diminuiu proporcionalmente ao tempo dedicado à preparação das aulas de  Introdução ao Pensamento Filosófico e de Tópicos Especiais de Metafísica II . Mas, apesar de os assuntos tratados em aula não possuírem ligação direta com o tema da tese, obviamente este último está sempre em meu horizonte de reflexão quando organizo minhas notas e leituras. Uma conexão que estabeleci nesses últimos dias merece menção especial, e talvez volte à mesma mais detidamente uma hora dessas. Ela surgiu na leitura da Segunda Meditação de Descartes, §§ 10-18, nos quais ele tenta mostrar como o espírito é mais fácil de conhecer do que o corpo.

"In a nutshell", o arumento aí é o seguinte: no §10 Descartes interrompe a ordem da argumentação para reexaminar a crença ordinária e natural de que conhecemos as coisas corpóreas mais facilmente que nossa natureza como coisas pensantes. Para fins de argumentação, ele supõe que conhecemos melhor os corpos, e, no §11 sugere que analisemos um caso particular e concreto de percepção de um corpo: este pedaço de cera. No §12 ele argumenta que quando aproximamos tal pedaço de cera do fogo, todas as características que dele recebemos pelos sentidos mudam. Mas, aparentemente e intuitivamente, diríamos que a mesma cera permanece após todas essas modificações. A pergunta é o que é que eu conhecia desta cera com tanta distinção? Uma vez que não pode ser nada que me chega por intermédio dos sentidos, dado que isso tudo mudou, e nem algo que provénha da imaginação (cf. §13: não posso percorrer com a imaginação a infinidade de figuras que essa cera pode receber), isso que se mantém só pode ter sido algo vindo de meu entendimento. Conclusão radical: a percepção daquele pedaço de cera particular e concreto " não é uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação, e jamais o foi, mas somente uma inspeção do espírito [...] " [itálicos e negrito adicionados (nunca demais) :-) ]

Ok, até aí, com MUITA boa vontade exegética, lembrando da natureza da dúvida metódica e hiperbólica, da estuturação analítica do argumento das Meditações, blá, blá, blá, dá para acompanhar Descartes com uma indignação apenas relativa. Mas eis então que no §14 ele explica porque nos enganamos e pensamos que a percepção daquele pedaço de cera foi obra de nossa sensibilidade:

Entretanto eu não poderia espantar-me demasiado ao considerar o quanto meu espírito tem de fraqueza e de pendor que o leva insensivelmente ao erro. Pois, ainda que sem falar eu considere tudo isso em mim mesmo, as palavras detêm-me, todavia, e sou quase enganado pelos termos da linguagem comum; pois nós dizemos que vemos a mesma cera, se no-la apresentam, e não que julgamos que é a mesma, pelo fato de ter a mesma cor e a mesma figura: donde desejaria quase concluir que se conhece a cera pela visão dos olhos e não pela tão-só inspeção do espírito, se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto, que vejo desta janela, senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas? Mas julgo que são homens verdadeiros, e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos. (itálicos adicionados)

Antes de mais nada, vale salientar que esse parágrafo fornece muito material de primeira para um crítico (tal como um Austin ou um Wittgenstein em sua fase final) da atitude "revisionista" de Descartes em relação ao nosso modo de falar e de compreender nossa percepção. Mas gostaria de manter o foco apenas na análise da tese apresentada ao final da passagem, segundo a qual não percebemos direta ou imediatamente homens, mas sim "chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas".

Há, a meu ver, pelo menos duas espécies de problemas que podem ser apontados no exame dessa tese. O primeiro é bastante geral: por trás dela está uma suposição ainda mais fundamental, segundo a qual só temos acesso imediato, por meio da sensibilidade, a certos "dados brutos" (sejam eles chapéus e casacos, sejam os sense-data últimos que constituem aqueles chapéus e casacos), a partir dos quais julgamos ou inferimos qual é o objeto percebido. Não é apenas o conteúdo dessa tese que me parece problemático (a esse respeito, vide a crítica de Austin a esse tipo de "realismo indireto" em Sense e Sensibilia ). Por vários motivos, impressiona-me também o próprio fato de encontrar essa tese nesse contexto. Antes de mais nada, estranha encontrar uma tese característica do empirismo num ambiente racionalista. Mas, pensando bem, percebo que isso não é tão estranho: afinal, é justamente porque compra uma caracterização "empirista" (penso aqui nos empiristas / positivistas lógicos do início do séc. XX) do funcionamento de nossa sensibilidade, desde o início do argumento, que Descartes conseguirá "provar" que os sentidos não são confiáveis -- não são confiáveis, vale dizer, no sentido em que seu argumento, via aplicação da dúvida hiperbólica, exige.

Mas também estranha que Descartes defenda aqui que algo, seja lá o que for, é percebido imediatamente pelos sentidos. Sendo consistente com o argumento apresentado até aqui, a conclusão deveria ser que absolutamente nada me é dado imediatamente pelos sentidos -- afinal, obviamente, chapéus e casacos não podem, pelos mesmos motivos apresentados acima, ser objetos imediatos dos sentidos, mas devem igualmente ser fruto do juízo. E assim por diante, ad infinitum -- ou não? Se não, que razões haveria para pararmos em qualquer ponto da série? Afinal, tudo que tenho acesso até o momento são certas representações das quais me encontro, como questão de fato, de posse. Não cabe aqui a analogia com a pintura (Med. I, § 6), cujos elementos, por mais estranhamente que estejam combinados, precisam ser de alguma forma dados anteriormente. A hipótese do Gênio Maligno já pôs abaixo mesmo a certeza do contato com esses elementos fundamentais, e, apesar de eu já ter começado a escalada em direção à reconstrução do conhecimento, no momento ainda não provei que há uma ponte, via idéia de Deus, com o "mundo externo". Em suma, será que não houve um escorregão aqui?

Imagino que a saída seja apelar para o caráter polêmico do argumento: Descartes não estaria defendendo essa tese, mas simplesmente dando uma forcinha para o objetor, que teima em pensar que "vê algo apenas com seus olhos". Ainda assim, parece-me que neste ponto ele foi longe demais, e defendeu algo inconsistente com sua doutrina. Uma coisa é supor, para fins de argumentação, i.e., para construir uma espécie de redução ao absurdo, que percebemos distintamente algo pelos sentidos (como ele faz nos §§ 11-13); outra coisa é dizer que nossa linguagem ordinária nos engana ao sugerir que vemos diretamente objetos (e.g. homens) quando na verdade só percebemos diretamente um dado bruto qualquer, a partir do qual exercitamos nossa capacidade judicativa determinando qual é o objeto da visão. Um empirista à la Locke, que nega o acesso à essência real das coisas,  poderia defender algo nesses moldes. Do mesmo modo Kant, com sua noção de matéria transcendental, de um "mero múltiplo" cuja unidade depende do entendimento (mas também das formas da sensibilidade). Mas essa tese parece muito estranha no ambiente cartesiano, e a meu ver só serve para mostrar qual é a real concepção cartesiana do funcionamento da sensibilidade -- uma concepção aliás bastante corriqueira dada a análise mecanicista, corpuscular, representacional, da percepção, vigente na época. Mas se é assim, então abre-se um flanco que será atacado por autores como Berkeley, que levará ao paroxismo essa concepção da sensibilidade, mostrando que se os objetos imediatos de nossa percepção são tais dados (as "idéias", em sua terminologia), então tudo que percebemos são idéias, e uma vez que para idéias ser é ser percebido, ser é ser percebido -- simpliciter.

Bem, mas, como disse, esse é um primeiro conjunto de problemas com a tese apresentada no final da passagem. Outro conjunto, que na verdade é o que me interessa mais e relaciona-se com o tema de minha tese, surge de uma certa extrapolação, que certamente seria injustificada tomando o argumento das Meditações como um todo, mas que é bastante plausível assim,  descontextualizadamente: trata-se da idéia de que, em princípio, poderíamos supor sem maiores problemas que todos os seres humanos são meros "automatos" -- "homens fictícios que se movem apenas por molas". Minha hipótese interpretativa acerca da filosofia de Wittgenstein é a de que esse não é um lance possível em nosso jogo de linguagem. É claro que é possível duvidar de que este homem particular que vejo agora pela janela seja de fato um homem, e não um autômato. Mas não é possível generalizar essa tese. A crença de que os seres que percebemos como homens em geral são homens -- i.e., pessoas, seres racionais, agentes dotados de liberdade, etc., assim como nós mesmos -- faz parte do pano de fundo compartilhado de nossas práticas linguïsticas, da moldura de crenças fundamentais unicamente dentro da qual dúvidas, certezas, erros e acertos empíricos e particulares são possíveis. Nossa gramática depende dessa crença, assim como das crenças na regularidade da natureza, no fato de que percebo minhas mãos à minha frente e elas são mãos reais, etc. (cf. Sobre a Certeza).

Ligando com o tópico de minha tese: parece-me que não há nenhuma razão metafisíca especial para atribuírmos (ou não atribuírmos ) "personalidade", "autoconsciência", etc., a usuários de `eu'. Fazemos isso simplesmente porque trata-se de uma condição de nossas práticas lingüísticas -- mais ou menos nos moldes das "condições da interpretação" de Davidson, embora veja problemas no modo como ele apresenta esse ponto. Não há nada na lógica do uso do pronome de primeira pessoa que implique autoconsciência. (Prefiro chamar isso de uma condição da pragmática de nossa linguagem, mas não vou tratar disso aqui). De qualquer forma, minha tese é que não há uma essência oculta que precisamos "descobrir" (por meio da filosofia, da ciência, ou o que quer que seja) nos usuários que de `eu' dê conta de sua personalidade, autoconsciência, racionalidade, etc. S e no futuro estivermos rodeados de andróides que se comportem exatamente como humanos não teremos motivos "metafísicos" para não os considerarmos pessoas. O filme "O Homem Bicentenario" fornece um bom caso para refletir sobre essas questões. Aquele robô vai se adaptando a vários critérios para se tornar uma pessoa, até mesmo ao critério de ser mortal, e mesmo assim negam a ele esse direito. Por que? Não tenho uma resposta para isso, pois não sou a tal ponto "essencialista". O seguinte aforisma de Wittgenstein para mim diz tudo o que podemos dizer filosoficamente a esse respeito, e o faz com apropriada vagueza: 

[A]penas de um ser humano e do que se assemelha (comporta-se como) um ser humano vivo pode-se dizer: tem sensações; vê; é cego; ouve; é surdo; é consciente ou inconsciente. (PI,  § 281)

A questão ulterior sobre o que conta como critério de semelhança , a meu ver, não pode ser respondida filosoficamente, mas de várias outras formas -- biologicamente, psicologicamente, juridicamente, religiosamente, etc., depende de nossos interesses.

Elementos heurísticos para uma interpretação mais "caridosa" de Hume

CRENÇA E CAUSALIDADE:

Mas como pode a experiência passada ser um fundamento para assumir que tal e tal irá ocorrer posteriormente? – a resposta é: que conceito geral nós temos de fundamentos para este tipo de assunção? Este tipo de enunciado sobre o passado é simplesmente o que nós chamamos de um fundamento para assumir que isso irá ocorrer no futuro. – E se você estiver surpreso que estejamos jogando este jogo eu remeto você ao efeito de uma experiência passada (ao fato de que uma criança que se queimou teme o fogo).

Ludwig Wittgenstein (PI, § 480)

CRENÇA E CAUSALIDADE:


Ao leitor do Tratado da Natureza Humana, de David Hume, acostumado à caricatura do filósofo cético que duvida que o sol possa nascer amanhã, deve parecer surpreendente notificar várias semelhanças com algumas passagens das Investigações Filosóficas, ou de Sobre a Certeza, nas quais Wittgenstein trata de temas tais como a crença na uniformidade da natureza, as razões para crer, etc. E isso não se deve apenas à distância histórica e, ao menos até prova em contrário, filosófica que os separa. O que talvez possa parecer mais estranho, na verdade, é que, por mais que Wittgenstein seja incompreendido ou mesmo criticado, parece que ninguém jamais pensou em acusá-lo de duvidar de um fenômeno tão corriqueiro quanto o nascimento do sol amanhã.


Esta breve consideração não pretende servir de apoio a nenhuma tese exegética peculiar, tal como a de que Hume seria um "wittgensteiniano avant la lettre". Senão por outro motivo, ao menos porque tão logo me ponho a entrever esta possibilidade, me deparo com objeções do tipo: com isso você está tentando explicar o "obscurius per obscuris". Mas ela deve servir ao menos como indicação heurística para compreender algumas seções do Tratado da Natureza Humana nas quais Hume analisa nossa crença na causalidade, na uniformidade da natureza, etc. Colocando o ponto nos termos do meu post anterior, essa é uma maneira de explicitar alguns dos preconceitos filosóficos que inevitavelmente movem minha análise da filosofia humeana.

Como interpretar um clássico?

CRENÇA E CAUSALIDADE:

Aparentemente é difícil fugir da necessidade de percorrer um certo círculo na apresentação dos argumentos de um clássico filosófico. Por um lado, a importância da compreensão do programa, objetivos e metodologia gerais de um autor para a interpretação de qualquer argumento específico contido em sua(s) obra(s) é inegável -- afinal, a distância histórica que nos separa dessas obras torna muito difícil a compreensão do vocabulário e do contexto filosófico no qual estão inseridas. Por outro lado, como poderíamos alcançar uma compreensão geral do programa, sem recorrer aos próprios argumentos que visam levá-lo a cabo?

Diante de um tal problema parece-me que apenas duas atitudes são possíveis. A primeira é a tentativa de quebrar o círculo em questão fornecendo um estudo histórico que apresente satisfatoriamente o contexto no qual a obra em questão se insere, possibilitando algo como uma 'tradução' bem fundamentada do vocabulário técnico-filosófico do autor para um outro mais próximo ao nosso. A segunda consiste em aceitar o engajamento num procedimento circular, visando obter resultados úteis através do confronto entre a estrutura geral da obra, e seus argumentos específicos -- ou seja, visando estabelecer um bom ajuste entre os aspectos macro e micro-estruturais da obra analisada.

Cada uma das opções possui suas vantagens e desvantagens, dependendo do objetivo geral do intérprete. Se o que se quer como resultado é uma compreensão estrita do conteúdo das teses do autor – tratando-as de modo semelhante a achados arqueológicos de uma civilização distante – então certamente a primeira opção deve ser seguida. Se, por outro lado, importar mais ao intérprete utilizar a obra estudada como ponto de partida para sua própria reflexão a respeito de algum tema ou questionamento filosófico, então a segunda opção caberá melhor.

Não pretendo avaliar o mérito de cada um desses pontos de vista – tudo depende, como já disse, dos objetivos e das tendências intelectuais de quem se propuser a segui-los. Mas cabe criticar a tentativa de se esconder por trás de um objetivo puramente exegético e histórico, de apresentação 'neutra' das teses estudadas, simplesmente visando introduzir, implícita e sub-repticiamente, os próprios preconceitos filosóficos do intérprete. Essa atitude prejudica muito o leitor, que acaba aceitando teses e posições filosóficas como se pertencessem aos autores originalmente analisados, quando na verdade não passam de tentativas dissimuladas de apresentar as teses do próprio intérprete; mas ela também prejudica o intérprete que conduz honesta e conscientemente sua análise, de modo a exercitar a própria reflexão sobre um determinado problema filosófico, tomando como base algum tratamento distintivo e importante desse problema na história da filosofia, pois acaba-se criando no meio filosófico um certo temor quanto à legitimidade desse procedimento, dada a ubiqüidade de interpretações presumivelmente 'neutras' e 'históricas'.

CRENÇA E CAUSALIDADE: Em vista disso, e ciente de minhas óbvias limitações para proceder a um estudo histórico minimamente satisfatório, bem como de minhas tendências intelectuais nada neutras, quando analiso um clássico sempre tento me policiar para enfrentar o problema da circularidade de maneira consciente, visando tirar o máximo de proveito da situação, estabelecendo um bom ajuste entre (i) as afirmações do próprio autor a respeito de seu procedimento filosófico, (ii) alguns dos principais argumentos empregados para estabelecer sua posição, e (ii) meus próprios interesses filosóficos. Em outras palavras: se é mesmo verdade que nenhuma análise que não a puramente histórica possa ser efetivada sem que se introduzam alguns preconceitos filosóficos, então cabe ao menos tentar apresentar uma visão que além de ser internamente coerente e plausível em relação ao sistema filosófico abordado, seja também explícita e consciente de seus próprios pressupostos.