quarta-feira, abril 19, 2006

Sobre homens fictícios que se movem apenas por molas: Descartes vs. Wittgenstein II

Nas chamada Parte II das Investigações Filosóficas, seção iv, Wittgenstein apresenta uma reflexão bastante útil para fins de comparação com a idéia cartesiana da possibilidade de estarmos percebendo apenas autômatos:

"I believe that he is suffering."—Do I also believe that he isn't an automaton?
It would go against the grain to use the word in both connexions.
(Or is it like this: I believe that he is suffering, but am certain that he is not an automaton? Nonsense!)
Suppose I say of a friend: "He isn't an automaton".—What information is conveyed by this, and to whom would it be information? To a human being who meets him in ordinary circumstances? What information could it give him? (At the very most that this man always behaves like a human being, and not occasionally like a machine.)
"I believe that he is not an automaton", just like that, so far makes no sense.
My attitude towards him is an attitude towards a soul. I am not of the opinion that he has a soul.

Tradução:

"Eu acredito que ele está sofrendo."—Será que eu também acredito que ele não é um autômato?
Seria contrário ao bom senso usar a palavra [acreditar] em ambos os casos.
(Ou é algo como isto: Eu acredito que ele está sofrendo, mas estou certo que ele não é um autômato? Absurdo!)
Suponha que eu diga de um amigo: "ele não é um autômato". —Que informação é passada por meio disso, e para quem isso seria uma informação? Para um ser humano que o encontra em circunstâncias ordinárias? Que informação isso poderia lhe dar? (No máximo que este homem se comporta sempre como ser humano, e não ocasionalmente como uma máquina.)
"Eu acredito que ele não é um autômato", assim desse modo, simplesmente não faz nenhum sentido.
Minha atitude em relação a ele é uma atitude em relação a uma alma. Eu não sou da opinião de que ele tem uma alma.


No post anterior sobre esse assunto eu disse:

A crença de que os seres que percebemos como homens em geral são homens -- i.e., pessoas, seres racionais, agentes dotados de liberdade, etc., assim como nós mesmos -- faz parte do pano de fundo compartilhado de nossas práticas linguïsticas, da moldura de crenças fundamentais unicamente dentro da qual dúvidas, certezas, erros e acertos empíricos e particulares são possíveis. Nossa gramática depende dessa crença, assim como das crenças na regularidade da natureza, no fato de que percebo minhas mãos à minha frente e elas são mãos reais, etc. [...]

Aparentemente W. está dizendo exatamente o oposto do que afirmei: tomar seres humanos como tais -- i.e., como seres humanos, dotados de uma "alma", e não como autômatos -- é uma atitude, e não de uma crença ou opinião . Mas não creio que devamos aqui pensar que W. está traçando uma distinção quase técnica entre 'atitude', por um lado, e, por outro, 'crença' ou 'opinião' (e nesse sentido concordo com Peter Winch, que defende o mesmo ponto no artigo " Eine Einstellung Zur Seele", In. Proceedings of Aristotelian Society 1980-81, Vol. LXXXI, pp. 1--16). O que W. está querendo criticar é uma determinada compreensão da presuntiva 'crença' ou 'opinião' -- nomeadamente, uma compreensão segundo a qual (i) tomar seres humanos como tais e (ii) crer que um ser humano particular está sofrendo, estariam, por assim dizer, num mesmo nível. Tomar um ser humano como um ser que tem uma "alma" é uma atitude muito mais fundamental -- de fato, é uma condição para que, em certas ocasiões particulares de um jogo de linguagem, eu possa estar certo ou em dúvida sobre se um sujeito está ou não sofrendo. Se, em alguma ocasião particular, tivéssemos boas razões para questionar se um sujeito qualquer é humano ou um autômato, então, nesta ocasião particular, não faria sentido discutir sobre se, digamos, ele está realmente sofrendo, ou se ele está fingindo. Falta-nos o pano de fundo contra o qual esse tipo de dúvida "empírica", por assim dizer, poderia ser levantada.

Descartes, na passagem que citei no post original, defende que é estritamente incorreto dizer que vemos homens pela janela, pois na verdade o que fazemos é um juízo -- julgamos, i.e., que aqueles espectros que vemos pela janela são homens verdadeiros. Penso que essa afirmação exemplifica perfeitamente o tipo de opinião contra a qual W. está argumentando na passagem acima. Tratar os demais seres humanos como dotados de uma "alma", e não como autômatos, não é fazer um tipo de inferência a partir da observação de algo mais "básico" ou "imediato", tal como a percepção do comportamento de certos "espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas". A prioridade lógica está sendo invertida na análise cartesiana. É apenas dentro da moldura de certas suposições fundamentais acerca do mundo e dos demais sujeitos -- dentre as quais a de que eles possuem uma "alma" -- que podem surgir dúvidas (e certezas) empíricas, que são as únicas que podemos ter legitimamente (com sentido).

Mas se é assim, então, obviamente, não é no simples confronto direto de teses e antíteses de Descartes e W. que podemos chegar a uma conclusão sobre qual deles está certo. É a própria plausibilidade ou legitimidade da dúvida metódica e hiperbólica de Descartes que precisa ser discutida, ao fim e ao cabo. Minha aposta é que W. tem bons argumentos, especialmente em Sobre a Certeza, para mostrar que essa dúvida não é legítima (é absurda, incoerente, impossível, etc.). Mas isso é assunto para outro post.

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