segunda-feira, fevereiro 20, 2006

`Externalismo' e `Anti-individualismo': porque prefiro a última denominação

No resumo que publiquei no post anterior, empreguei somente a denominação `anti-individualismo'  para fazer referência à posicão filosófica da qual tratei. Essa foi a denominacão proposta originalmente por Tyler Burge, mas é muito menos difundida na literatura do que a denominacão proposta inicialmente por Hilary Putnam: `externalismo'. A justificativa para minha opção, enunciada de maneira esbocada, é a seguinte: a meu ver, a tese de que os conteúdos mentais estão 'fora' da mente, e não 'dentro' dela, colocada nesses termos, encaminha para exatamente a mesma imagem que deveria estar sendo combatida pelos defensores do anti-individualismo, i.e., a imagem na qual 'mente' e 'mundo' estão metafísica e epistemicamente isolados. É interessante notar que o próprio termo 'externalismo' foi introduzido originalmente por Putnam num contexto em que ele descrevia uma perspectiva do que ele próprio chamou de "realismo metafísico", ou "o ponto de vista de Deus", i.e., a concepção segundo a qual "O mundo consiste de alguma totalidade fixa de objetos independentes da mente." (Putnam 1981). Em minha opinião, um modelo filosófico realmente satisfatório para explicar os fenômenos mentais deveria colocar em questão a própria dicotomia filosófica entre 'mente' e 'mundo', 'interno' e 'externo', e não simplesmente defender um realismo metafísico no qual essas esferas continuam isoladas. Vale salientar desde já que negar essa dicotomia não implica negar a distinção ordinária entre o 'interno' e o 'externo'; trata-se da negação de uma distinção técnica, herdada da metafísica (realista) tradicional. Nesse sentido, concordo plenamente com a afirmação de Anthony Rudd, segundo a qual "na medida em que o externalismo envolve um compromisso com o realismo metafísico, ele é incapaz de fornecer qualquer resposta adequada ao ceticismo." (Rudd 2003). Não pretendo com essa observacão ter decidido se o externalismo efetivamente é ou não uma espécie de 'realismo metafísico', pelo motivo simples de que a meu ver ele não precisa sê-lo, e, portanto, deve ser possível isolar alguns de seus insights importantes que fornecem ganhos em relação ao individualismo, de seus possíveis compromissos tácitos com esse tipo de realismo.
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Referências:

Anti-individualismo e Autoconhecimento

PUTNAM, H. Reason, Truth and History. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.

RUDD, A. Expressing the World: Skepticism, Wittgenstein, and Heidegger. Chicago and La Salle, Illinois: Open Court, 2003.

2 comentários:

Anônimo disse...

Há vários pontos importantes neste post.

1. A denominação. Acho que o maior problema com 'antiindividualismo' é o fato de ser um termo utilizado apenas por Burge e Jessica Brown. E Burge, no momento importante, sempre traduz seu termo para 'externalismo'. Resta Jessica Brown. Gosto do trabalho dela, mas é pouco.

2. Dicotomia entre o que está na cabeça e o que está fora da cabeça. É um problema encontrar um modo de lidar com a metáfora espacial. O que é, para um pensamento, estar 'fora' ou 'dentro' da cabeça? Acho que a metáfora se tornou tão problemática que o melhor a fazer é nos livrarmos dela.

3. Abandonar a dicotomia mente e mundo. Não devemos criar dicotomias sem motivo, e devemos nos livrar de dicotomias inúteis, mas me parece difícil ver a distinção entre o mental e o mundano como uma dicotomia seja imotivada, seja ociosa.

Uma razão e um uso para a dicotomia: A distinção entre os modos de interação entre mente e mundo: Acontecimentos mundanos causam acontecimentos mentais através da percepção e de outras fontes de informação, e acontecimentos mentais provocam acontecimentos mundanos através do comportamento.

Outro uso e motivo: A unidirecionalidade do Esquema T: "A neve é branca" sse a neve é branca, mas não é o caso que a neve é branca sse "a neve é branca". Há um descompasso aqui. Aquilo que se passa na mente é o que é por causa do que se passa no mundo, mas o que se passa no mundo não é o que é por causa do que se passa na mente. Havendo tal descompasso, há motivo para preservarmos a distinção mente-mundo.

4. Realismo. Realistas não defendem que mente e mundo estão isolados. Eles defendem que o mundo é independente da mente. É diferente.

5. Distinção ordinária versus distinção técnica. A primeira coisa a notar é que, mesmo que se trate de uma distinção técnica, cabe a nós respondermos à questão "E daí?" E daí que se trata de uma distinção técnica, caso se trate de uma distinção técnica?

A segunda é justificarmos, de preferência histórica e antropologicamente, a afirmação que se trata de uma distinção 'técnica'. Só para dar um exemplo: Os ameríndios pré-Colombo distinguiam entre a pessoa enquanto ser 'nu' e os tipos de pessoas identificados pela 'roupa', isto é, pelo corpo de animal que a pessoa 'veste'. O que você diria? Que tal distinção não é 'ordinária'? Que se trata de coisa de xamãs? Mas os índios em geral tinham tal tipo de crença.

6. Ceticismo. Não creio que o externalismo, isoladamente, possa vir a ser uma resposta ao ceticismo. Seria uma resposta circular, pois o externalismo pressupõe um monte de conhecimento empírico.

Anônimo disse...

Gotaria de comentar parte do comentário do César. Ele diz:

"Outro uso e motivo: A unidirecionalidade do Esquema T: "A neve é branca" sse a neve é branca, mas não é o caso que a neve é branca sse "a neve é branca". Há um descompasso aqui. Aquilo que se passa na mente é o que é por causa do que se passa no mundo, mas o que se passa no mundo não é o que é por causa do que se passa na mente. Havendo tal descompasso, há motivo para preservarmos a distinção mente-mundo."

Em primeiro lugar, o esquema T não é

"A neve é branca" sse a neve é branca.

mas sim

"A neve é branca" é verdadeira sse a neve é branca.

Em segundo lugar, se se trata de equivalência lógica ("p" é verdadeira <-> p) então, sim, é verdade que

(1) A neve é branca sse "A neve é branca" é verdadeira.

A equivalência diz apenas que ambas as frases

A neve é branca

e

"A neve é branca" é verdadeira

podem ser uma inferida da outra (["p" é verdadeira -> p] & [p -> "p" é verdadeira]). O que nos faz pensar que (1) é falsa é a expressão "sse". Entretanto, não devemos confundir o esquema de equivalência com a teoria da verdade como correspondência, cuja versão "deflacionada" pode ser expressa assim:

(C) "A neve á branca" é verdadeira porque a neve á branca.

Agora sim temos uma frase cuja inversa parece falsa:

(IC) A neve é branca porque "A neve é branca" é verdadeira.