quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Externalismo e autoconhecimento de ações

Vou responder rapidamente a dois comentários que o César fez em meu post sobre a posição da O'Brien neste texto.

1. Ao apelar para o que classicamente se chama de "experiência da liberdade," O'Brien explica o que não entendemos pelo obscuro. Tô spinozista.

Na verdade não sei se ela apela à "experiência da liberdade"... não sei o que isso significa. Ela apela a uma experiência física (cinestética): a sensação de movermos um membro voluntariamente. Claro, você poderia argumentar que essa experiência é algo obscuro e não explicativo. Num certo sentido, acho que é mesmo -- mas depende do que você espera de uma explicação filosófica . Minha avaliação provisória é de que essa explicação de O'Brien exemplifica o tipo de "final da linha" da análise filosófica, o momento em que batemos no "leito duro do rio" de nossa linguagem. A idéia é de que há um ponto na análise do modo como nossas práticas lingüísticas funcionam em que simplesmente não faria mais sentido exigir justificação ou esclarecimento ulterior -- a não ser um esclarecimento dos processos empíricos aí operantes. Wittgenstein muitas vezes termina suas análises "gramaticais" quando alcança um ponto no qual apresenta certos fatos acerca de nós mesmo -- fatos que fazem parte de nossa "forma de vida" e que constituem o pano de fundo sobre o qual desenvolvemos nossa linguagem, e que ele por vezes descreve como nossas "reações naturais" ou mesmo "instintivas" -- acerca dos quais não há mais nada a fazer senão indicar sua conexão com nosso uso de jogos de linguagem mais complexos.

Se estou certo, a análise de O'Brien toca num desses "fatos últimos" a partir dos quais desenvolvemos nossos jogos de linguagem. É porque, em casos mais básicos, sentimos que podemos dar origem a certos movimentos, que passamos a distiguir esses movimentos dos demais movimentos que acontecem no mundo, independentemente de nossas intervenções, com um nome especial: "ações". A partir daí desenvolvemos uma linguagem na qual marcamos nossa autoridade em relação a essas ações básicas, e depois a estendemos para ações não tão básicas, que envolvem muitos passos intermediários. Em algum momento passamos a empregar esse tipo de marca distintiva da autoridade da primeira pessoa também ao caso de nossos pensamentos, crenças, atitudes, etc.

É assim que, no momento, encaro a contribuição de O'Brien no debate acerca da autoridade da primeira pessoa, e acho que é uma contribuição relevante. Não tentarei justificar aqui a relevância da própria estratégia geral que esbocei acima.

2. Como O'Brien interpretaria um caso de encubamento, isto é, de colocação do cérebro e sistema nervoso de uma pessoa em uma cuba?

Aqui você propõe uma objeção (a forma de pergunta é mera retórica ;-) ) que para mim é um exemplo típico da inversão de prioridades que os argumentos "céticos" em geral empregam: você me pede como alguém que defende a prioridade da autoridade (e, por conseguinte, do conhecimento) de ações, poderia dar conta da possibilidade do "cérebro numa cuba". Ora, o que eu sugiro é uma inversão do ônus da prova: como garantir a plausibilidade desse tipo de experimento, frente a uma posição como a de O'Brien -- e, diria eu, frente a nossa concepção ordinária do mundo? A meu ver argumentos que põem em questão a confiabilidade de nossa experiência ordinária "em bloco" -- ou seja, não se trata de questionar um ou outro juízo perceptual específico -- são simplesmente insustentáveis e incoerentes. Tais argumentos pressupõem certas condições para o emprego dos conceitos relevantes para formular certos "desafios epistêmicos" -- nesse caso, noções como as de "experiência", "percepção", etc. -- e ao mesmo tempo impossibilitam a satisfação daquelas condições, dadas suas restrições metafísicas, conceituais, lingüísticas, ou como quer que as queiramos caracterizar. (Aprendi com tio Kant ;-)  )

É claro que você poderá questionar a cogência ou legitimidade de "argumentos transcendentais" como esse que esbocei, mas obviamente não tentarei defender isso num post.

Texto do César: comentário 1

Estou lendo o texto que o César publicou no blog dele, que é um rascunho da apresentação para o Encontro da Anpof. Vou comentá-lo por partes, a começar pela seção denominada "Davidson e o ponto de vista tradicional sobre a mente". Cito a parte que me interessa, sem me preocupar muito em marcar o que deixei de fora ou adaptei:
Para Davidson, as dúvidas acerca da conciliação entre externalismo e conhecimento de si emergem de dois pressupostos implícitos da concepção tradicional de mente:

(i) o pensamento é identificado independentemente da relação com algo que está fora da mente.
(ii) se o pensamento fosse identificado por algo mais do que aquilo que é abrangido ou compreendido pela mente, então a mente não poderia capturá-lo ou compreendê-lo.

A solução de Davidson para (i) é aceitar que, sob certa descrição, o mental está 'na' cabeça, embora, sob outra descrição, não esteja. O mesmo objeto pode ser descrito de diversas maneiras, e cada descrição acarreta compromissos lógicos distintos. Caso um homem seja descrito como pai, filhos são pressupostos. Mas se o mesmo homem é descrito como homem, filhos não são pressupostos. A solução para (ii) é rejeitar a metáfora do mental que o motiva. A rejeição da metáfora do mental é uma maneira negativa de conciliar externalismo e conhecimento de si. A teoria do autoconhecimento básico é uma maneira positiva de realizar tal conciliação.
Nunca gostei muito dessa solução de Davidson para (i). A tese fundamental que motiva essa solução é a de que "Estados e eventos individuais não pressupõem conceitualmente nada neles mesmos; algumas de suas descrições, entretanto, podem [pressupor isso]" (Ludlow e Martin, 1998, p. 103). A meu ver, essa tese marca uma discordância fundamental entre a posição de Davidson, e uma posição anti-individualista que realmente mereça esse título. Penso que se há um resultado que Kripke, Putnam, Burge e os demais defensores do anti-individualismo deveriam ter obtido com suas análises, é que os estados mentais pressupõem sim, conceitualmente, uma referência a fatores externos. Para Davidson, entretanto, os estados mentais pressupõem fatores externos do mesmo modo que efeitos pressupõem causas, e, por conseguinte, de maneira contingente — afinal, dados os compromissos quineanos de sua análise, segue-se que não há necessidade (conceitual) alguma que não seja segundo uma descrição.

(Grande parêntese: Penso que se um defensor do anti-individualismo concordar com essa análise causalista, então ele estará de fato sujeito à crítica davidsoniana esboçada acima. Autores como Peter Hacker, por exemplo, defendem explicitamente que a "tese causal [...] continua servindo os escritos de 'externalistas' contemporâneos tais como Putnam, Burge e Davidson", pois, segundo ele, tais autores explicariam a conexão entre "as pessoas e o mundo" por meio de "interações causais" (Hacker 1998, p. 540). Mas se as leituras causalistas estão corretas, pior para os defensores do anti-individualismo, pois aceitar essa análise significa trazer para o interior do modelo anti-individualista um resquício da imagem contra a qual esse modelo deveria fornecer uma alternativa — que é a da mente separada do 'mundo', ou dos 'objetos'. Apenas supondo-se essa imagem faz sentido pensar em uma ligação contingente entre estados mentais e os objetos que fornecem seus conteúdos. Um 'anti-individualismo' nesses moldes causalistas, portanto, não passaria de um individualismo envergonhado.

No mesmo artigo mencionado acima (Hacker 1998), Hacker contrasta o caráter contingente e 'externo' das relações causais com o caráter necessário das relações 'internas' (gramaticais), ilustradas com o caso da relação entre a palavra 'vermelho' e as coisas vermelhas (cf. especialmente p. 547). Assim como Hacker, penso que o tipo de relação envolvido em casos de definições ostensivas (sem falar nos demais casos de 'definição' ou, colocando em termos mais adequados ao presente contexto, 'fixação de referência') não é causal, e, por conseguinte, está sendo mal compreendido por Davidson. Mas cabe salientar também, como faz Hacker, que a indicação de tais relações internas não equivale ao fornecimento de uma 'prova' do almejado contato entre 'linguagem' e 'realidade' — como se essas fossem esferas isoladas que precisassem ser conectadas (por definições ostensivas, ou de qualquer outra espécie). Dada a radicalidade de um movimento filosófico como o de Wittgenstein, obtém-se como conseqüência a tese de que a linguagem simplesmente não precisa ser "ancorada à realidade" pois, num certo sentido, ela é "auto-contida e autônoma" (ibid., p. 548). É claro que, num outro sentido (esse a meu ver não suficientemente destacado por Hacker), a própria linguagem fundamenta-se sim no 'mundo', na medida em que nosso pertencimento a esse mundo fornece o próprio pano de fundo compartilhado frente ao qual nossas práticas lingüísticas serão desenvolvidas — apenas para dar um exemplo, é porque todos nós compartilhamos de um mesmo tipo de aparato perceptual, que regularmente funciona de maneira homogênea em todos nós, que podemos concordar (ou discordar) acerca da aplicação de termos como 'vermelho'. Essa, portanto, é uma contribuição do 'mundo' que é assimilada em nossa linguagem. Resumindo o ponto: relações entre linguagem e mundo são mútuas, e, mais importante do que isso, mutuamente constitutivas, e não há prioridade de um em relação ao outro — nem há prioridade da linguagem (ou da 'mente'), como querem os individualistas, e nem do mundo, como parecem querer alguns anti-individualistas, como Davidson (nesse caso melhor descritos como 'externalistas' mesmo.)

O que é problemático na análise de Davidson é que a meu ver ele inverte completamente as prioridades: para ele, defender uma ligação necessária entre estados mentais e seus objetos implica supor que a autoridade da primeira pessoa só se aplica a "conteúdos [que] podem ser descritos sem referência a fatores externos" , ou seja, apenas a estados psicológicos 'em sentido exíguo' — suposição esta que, por sua vez, derivaria da aceitação de uma "imagem defeituosa do mental" — a "metáfora dos objetos ante a mente" da qual o César fala em (ii). Uma vez abandonada essa imagem, argumenta Davidson, o problema da autoridade da primeira pessoa poderia ser facilmente solucionado:

Quando nos tivermos livrado da suposição de que pensamentos devem possuir objetos misteriosos, podemos ver como o fato de nossos estados mentais como normalmente os concebemos serem identificados em parte por sua história natural não apenas impede que se toque no caráter interno de tais estados, ou que haja problemas com a autoridade da primeira pessoa; ele também abre o caminho para uma explicação da autoridade da primeira pessoa. A explicação surge quando percebemos que o que as palavras de uma pessoa significam depende nos casos mais básicos dos tipos de objetos e eventos que causaram a pessoa a sustentar que essas palavras eram aplicáveis; similarmente para o que os pensamentos de uma pessoa são sobre. Um intérprete das palavras de outras pessoas deve depender de informação dispersa, treino bem sucedido, e conjetura imaginativa para vir a compreender o outro. O agente ele mesmo, contudo, não está em posição de se questionar sobre se em geral está usando suas próprias palavras de modo a aplicá-las aos objetos e eventos corretos, uma vez que seja o que for ao que ele regularmente as aplique será o que dará às suas palavras o significado que elas possuem e aos seus pensamentos os conteúdos que eles possuem. É claro que, em qualquer caso particular, ele pode estar errado naquilo que ele acredita sobre o mundo; o que é impossível é que ele esteja errado na maior parte do tempo. A razão é aparente: a menos que haja uma presunção de que o falante saiba o que ele significa, i.e., está usando sua própria linguagem corretamente, não haverá nada para o intérprete interpretar. Para colocar o assunto de outro modo, nada poderia contar como alguém regularmente aplicando incorretamente suas próprias palavras. A autoridade da primeira pessoa, o caráter social da linguagem, e os determinantes externos do pensamento e do significado vão todos naturalmente juntos, uma vez que tenhamos abandonado o mito do subjetivo, a idéia de que pensamentos requerem objetos mentais. (Ludlow e Martin 1998, pp. 108--109)

Concordo com muito do que Davidson afirma nessa passagem — especialmente com o caráter pressuposicional da autoridade da primeira pessoa, e com a impossibilidade de erro na maior parte do tempo por parte do sujeito, acerca dos conteúdos de seus próprios estados e eventos mentais (um tipo de 'argumento transcendental'). O que me incomoda é a suposição de Davidson de que a "presunção" em pauta — a de que o sujeito sabe o que significa com suas palavras, e "está usando sua própria linguagem corretamente" — é conseqüência do fato de que o sujeito usa suas palavras para referir-se ao que regularmente causou os estados e eventos mentais relevantes. Afinal, que razão Davidson oferece para a tese de que o agente ele próprio "não está em posição de se questionar sobre se em geral está usando suas próprias palavras de modo a aplicá-las aos objetos e eventos corretos", senão o fato de que esse sujeito, e nenhum outro, esteve em contato causal com os objetos aos quais se acostumou a aplicar suas palavras? Ora, se tudo o que resta para explicar a autoridade da primeira pessoa é o acesso privilegiado do sujeito à causa de seu próprio estado ou evento mental, então essa explicação ainda não se distancia suficientemente da imagem individualista. A meu ver, se essa autoridade deve ser explicada em termos efetivamente anti-individualistas, então deve ser explicada por meio da indicação de uma função especial dos enunciados auto-atributivos nas práticas lingüísticas humanas — e não apelando para uma diferença detectável apenas do ponto de vista do próprio sujeito, de uma forma quase (quase mesmo? qual outra senão?) perceptual. A análise causalista, portanto, não passa de uma maneira conveniente de preencher uma lacuna explicativa no argumento de Davidson, e, nessa medida, é no mínimo separável — mas possivelmente incompatível — com o que me parece ser a parte interessante desse argumento.

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Referências:

HACKER, P. M. S. Davidson on Intentionality and Externalism. Philosophy, n. 73, p. 539–552, 1998.
LUDLOW, P.; MARTIN, N. (Ed.). Externalism and Self-Knowledge. Standford, California: CSLI Publications, 1998.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Novas contribuicões na Wikipédia

Acabo de contribuir com o artigo sobre Peter Strawson , adicionando informacões sobre seu projeto de metafísica descritiva, e também uma secão sobre a reconstrução analítica dos argumentos de Kant. Também dei o pontapé inicial em um artigo sobre a Teoria causal da percepção de Strawson, que pretendo complementar e tornar mais geral no futuro.

`Externalismo' e `Anti-individualismo': porque prefiro a última denominação

No resumo que publiquei no post anterior, empreguei somente a denominação `anti-individualismo'  para fazer referência à posicão filosófica da qual tratei. Essa foi a denominacão proposta originalmente por Tyler Burge, mas é muito menos difundida na literatura do que a denominacão proposta inicialmente por Hilary Putnam: `externalismo'. A justificativa para minha opção, enunciada de maneira esbocada, é a seguinte: a meu ver, a tese de que os conteúdos mentais estão 'fora' da mente, e não 'dentro' dela, colocada nesses termos, encaminha para exatamente a mesma imagem que deveria estar sendo combatida pelos defensores do anti-individualismo, i.e., a imagem na qual 'mente' e 'mundo' estão metafísica e epistemicamente isolados. É interessante notar que o próprio termo 'externalismo' foi introduzido originalmente por Putnam num contexto em que ele descrevia uma perspectiva do que ele próprio chamou de "realismo metafísico", ou "o ponto de vista de Deus", i.e., a concepção segundo a qual "O mundo consiste de alguma totalidade fixa de objetos independentes da mente." (Putnam 1981). Em minha opinião, um modelo filosófico realmente satisfatório para explicar os fenômenos mentais deveria colocar em questão a própria dicotomia filosófica entre 'mente' e 'mundo', 'interno' e 'externo', e não simplesmente defender um realismo metafísico no qual essas esferas continuam isoladas. Vale salientar desde já que negar essa dicotomia não implica negar a distinção ordinária entre o 'interno' e o 'externo'; trata-se da negação de uma distinção técnica, herdada da metafísica (realista) tradicional. Nesse sentido, concordo plenamente com a afirmação de Anthony Rudd, segundo a qual "na medida em que o externalismo envolve um compromisso com o realismo metafísico, ele é incapaz de fornecer qualquer resposta adequada ao ceticismo." (Rudd 2003). Não pretendo com essa observacão ter decidido se o externalismo efetivamente é ou não uma espécie de 'realismo metafísico', pelo motivo simples de que a meu ver ele não precisa sê-lo, e, portanto, deve ser possível isolar alguns de seus insights importantes que fornecem ganhos em relação ao individualismo, de seus possíveis compromissos tácitos com esse tipo de realismo.
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Referências:

Anti-individualismo e Autoconhecimento

PUTNAM, H. Reason, Truth and History. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.

RUDD, A. Expressing the World: Skepticism, Wittgenstein, and Heidegger. Chicago and La Salle, Illinois: Open Court, 2003.

Resumo de comunicacao para o Encontro da Anpof

Grupo de trabalho Ceticismo

Jonadas Techio

Anti-individualismo e Autoconhecimento: uma solução não deflacionária

O anti-individualismo é a posição filosófica que sustenta que os conteúdos dos pensamentos, estados e eventos mentais de um sujeito são constituídos, pelo menos parcialmente, por fatores que se encontram fora de sua mente, no `mundo externo', dos objetos físicos e das relações sociais com outros seres humanos. Ao sustentar essa tese, o anti-individualismo aparentemente fica imune a alguns dos principais problemas herdados da tradição individualista, tais como o da explicação do contato entre a `mente' e o `mundo', e do conhecimento do conteúdo dos estados e eventos mentais de outros sujeitos. Mas esse modelo tem suas próprias dificuldades. Uma das mais relevantes concerne à explicação do autoconhecimento de estados e eventos mentais. Esse problema se apresenta mais claramente na análise de casos como o das `mudanças lentas' de ambiente (slow-switching), em situações exemplificadas pelo experimento imaginário da Terra Gêmea de Hilary Putnam. Em tais casos, uma pessoa poderia ter pensamentos com conteúdos diferentes durante as mudanças (e.g., sobre água num caso e sobre água-gêmea no outro), mas ser incapaz de comparar as situações e notar quando e onde as diferenças ocorreram. A conclusão seria que a pessoa pode não saber que pensamentos tem a menos que proceda a uma investigação empírica de seu ambiente. Uma vez que tal conclusão contraria algumas das intuições mais profundas que temos acerca da natureza do autoconhecimento psicológico, ou bem ela nos obrigaria a abandonar aquelas intuições, ou bem a concluir, por uma espécie de redução ao absurdo, que a posição anti-individualista é falsa. Para alguns defensores do anti-individualismo, contudo, há ainda uma terceira via, que consiste em sustentar a compatibilidade entre o anti-individualismo e a concepção ordinária do autoconhecimento psicológico. Um dos principais defensores da chamada `posição compatibilista' é Tyler Burge. Na presente comunicação apresentarei a discussão entre Burge e um de seus principais críticos, Paul Boghossian. Concluo que a posição final de Burge está imune às críticas de Boghossian, mas que, não obstante, não explica satisfatoriamente o que há de peculiar na relação que um sujeito racional mantém com o conteúdo de seus estados mentais, apresentando-a (i) como uma espécie de postura de `testemunha privilegiada' do sujeito sobre esses estados, e (ii) tratando a autoridade da primeira pessoa como um mero requisito ou pressuposição para a racionalidade. Argumento que uma explicação mais substancial, nos moldes daquela apresentada por Richard Moran e complementada por Lucy O'Brien – em termos da exigência de um tipo de envolvimento do sujeito com suas atitudes, comparável ao envolvimento do agente racional em relação às suas ações – é mais promissora como solução para o problema do autoconhecimento psicológico.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Filosofia Wittgensteiniana: continuando o debate

Continuando o debate com o César:

1. Witt diz que problemas filosóficos -- TODOS os problemas, pois senão o desafio seria fácil -- se originam de uma 'imagem' ligada ao nosso uso da linguagem.

Na verdade fiz questão de salientar que nem todos os problemas filosóficos surgem devido à influência de imagens -- o que sustentei é que todos se originam de alguma confusão no uso da linguagem. Mas W. aponta várias confusões desse tipo, e, como eu disse, não nos dá nenhuma ``receita de bolo'' que nos ensine como detectá-las. O que ele apresenta são vários diagnósticos pontuais das causas de posições filosóficas problemáticas. Por vezes tais posições surgem devido à influência de imagens, por outras se originam de um certo descontentamento do filósofo com a linguagem ordinária -- que pode ser de pelo menos dis tipos: ou bem o filósofo  gostaria que a linguagem marcasse melhor algumas distinções que lhe parecem importantes, ou, pelo contrário, ele passa por cima de certas distinções que não lhe parecem relevantes, dado o desejo de alcançar homogeneidade e generalidade na análise.

Mas, em se tratanto da posição de W., realmente penso que é mais produtivo não levar a discussão apenas nesse nível abstrato, e justamente por isso usei o exemplo do problema da identidade, e apontei como uma de suas possíveis causas a influência da imagem que apresentei. Para tentar esclarecer as coisas vou fornecer um novo exemplo que ilustra como uma outra posição filosófica problemática -- o solipsismo -- surge do descontentamento do filósofo em relação à linguagem -- mais especificamente, do desejo de marcar certas distinções com mais força.

Uma diferença importante que existe em nossa linguagem ordinária é a que vige entre o emprego de enunciados (auto-)atributivos de estados mentais (etc.) em primeira pessoa, e os enunciados atributivos correspondentes em terceira pessoa. O exemplo preferido de W. para tratar de tal diferença é o da dor.  É óbvio, poder-se-ia dizer, que quando eu digo que estou com dor não o faço baseado no tipo de evidência que outros teriam para dizer isso a meu respeito. Paralelamente, é óbvio que eu não posso ter o mesmo tipo de acesso à dor que os outros sentem --- i.e., para colocar mais claramente, eu não posso sentir a dor deles.
 
Pois bem. Segundo W., o solipsista é o sujeito que se dá conta dessa diferença importante, mas não está contente com o modo como a marcamos em nossa linguagem. O enunciado ``Eu tenho dor de dente'' se parece demais com o enunciado ``Eu tenho um dente de ouro''. Mas a impossibilidade de sentir a dor de outra pessoa é muito diferente da impossibilidade de ter o dente de ouro da outra pessoa. A primeira é uma impossibilidade metafísica, poder-se-ia dizer, e a última é meramente empírica. Justamente visando impedir a confusão entre esses dois casos, o solipsista nos propõe uma ``nova notação'', um ``novo simbolismo'', no qual a expressão ``dor de dente'' (ou, pelo menos, ``dor de dente real'') só faria sentido em seu uso auto-atributivo, i.e., em primeira pessoa. Nessa linguagem o máximo que um falante poderia dizer ao me ver com dor de dente é que eu me comporto como ele próprio se comporta quando sente dor de dente, ou algo do genero. Ou seja, ele precisa fazer uma inferência para concluir algo acerca de uma experiência privada que a mim se apresenta imediatamente. Na verdade, se essa notação fosse tomada até suas últimas consequências, nem mesmo essa inferência poderia ser feita, pois seria simplesmente absurdo que um outro sujeito empregasse expressões que fizessem referência às minhas experiências. Temos assim o primeiro passo para se chegar à idéia de uma linguagem logicamente privada para tratar das experiências. Bem, daí para a tese de que a única experiência real é a minha experiência, e dessa última para a de que o mundo é meu mundo, é só um pulinho (ou dois :-) ).

Veja bem: W. não defende que esse é o único e nem mesmo o principal motivo que leva alguém a sustentar uma posição solipsista. Não é assim que a dialética wittgensteiniana funciona. O contexto no qual ele apresenta esse caso, no Blue Book, é um em que ele está analisando várias causas possíveis e em geral interligadas para essa posição. O que há de comum entre elas é simplesmente o fato de que todas tem a ver com alguma incompreensão da linguagem ordinária, que gera o ``impulso revisionista'' do filósofo.

Acerca da influência das ``imagens'' (pictures no inglês, não images) tu notas que:

2. 'Imagem' é um termo metafórico, logo obscuro e pouco útil como explicador de coisas inexplicadas. O que é uma imagem? Pelo que entendi, a 'imagem' é a extrapolação do que funciona em casos paradigmáticos para todos os casos. No exemplo de Kant, tomo como 'imagem' ou caso paradigmático de entidade, de coisa, de objeto, as entidades delimitadas no tempo e no espaço. Depois me fodo, quando tento empregar tal paradigma para todos os casos, inclusive dores.
3. Witt diz que refletimos sobre noções filosóficas a partir de determinada imagem. Eis a origem do problema filosófico. Penso na identidade a partir de certa imagem e me fodo, fico cheio de problemas filosóficos.
 
Bem, no que toca às `imagens', não estou pensando apenas em usos puramente metafóricos do termo. De fato, no exemplo de Kant há algo de metafórico -- mas metáforas também devem guardar algo do uso normal dos termos. Ora, se me convenço de que a identidade é uma noção que se aplica primariamente a coisas, objetos espaço-temporais, etc., posso me prender a essa imagem quando reflito sobre caso das experiências psicológicas, dos fenômenos mentais, etc.,  e tentar aplicá-la ao ``mundo mental'' (mais uma metáfora), e assim ``me fodo''. Em suma: a imagem do ``teatro mental'' é uma imagem num sentido bastante concreto do termo, nao achas?

4. O que precisamos pensar criticamente, se é que o que eu disse acima faz o mínimo de justiça à posição de Witt, é se tal teoria faz o mínimo de justiça ao que é a filosofia. Você pede para mim apresentar ao menos um caso de problema filosófico que não possa ser reduzido ao esquema da imagem. Bom, se o esquema tem a ver com o que disse acima, meu problema é o oposto: achar ao menos um problema filosófico que caiba no mesmo. Não consigo ver nenhum.

Espero ter indicado com um pouco mais de precisão quais são as linhas gerais da posição de W. com o que disse acima. E indiquei um problema que cabe no esquema: o do solipsismo. Isso obviamente não basta para justificar a concepção wittgensteiniana da filosofia. Mas quanto a fazer justiça ao que é a filosofia: ora, para determinarmos isso precisamos de um critério independente do que seja essa atividade. Arriscas algum? Eu particularmente não penso que exista um conjunto fechado de condições necessárias e suficientes para definir a natureza dessa atividade. Uma coisa é fundamental: há certos problemas que não são de ordem empírica e que precisam de uma solução que não seja de ordem empírica. Certamente é preciso muito mais que isso para uma definição, mas essa para mim é uma condição não negociável. Um expediente que me parece útil, ao invés de buscar uma definição, é tentar relacionar as concepções que outros filósofos tinham da natureza da filosofia ao longo da história. E um exemplo claro, para nao fugir da regra, é o da filosofia crítica kantiana: obviamente Kant não usava o jargão ``lingüístico'', mas sim o jargão metafísico, epistemológico, ou até mesmo, segundo alguns, psicologista; mas os objetivos da filosofia crítica e da filosofia  ``terapeutica'' de W. claramente guardam muitas semelhanças: para ambos, há certos modelos filosóficos (realismo transcendental, idealismo empírico, solipsismo) que precisam ser extirpados; para ambos isso significa investigar e indicar a origem última desses modelos, ao invés de apontar erros ou falsidades nas teses mesmas que os caracterizam; mas para Kant isso implica investigar a nossa faculdade de conhecimento a priori, as regras de seu funcionamento, e as condições para que empreguemos certos conceitos fundamentais dela derivados legitimamente -- enquanto que para W. isso implica investigar nossas práticas lingüísticas, nossa gramática, as regras de seu funcionamento, e as condições para o emprego legítimo (com sentido) de certos termos.

5. Vejamos o caso atribuído a Kant. Não sei se o Kant histórico cabe em tal exemplo, isto é, se ele tem problemas com a identidade do mental porque extrapola o paradigma do objeto físico para a entidade mental. Não importa. Se ele faz tal extrapolação, ele realmente tem um problema, e se trata de um problema filosófico, sem dúvida.
6. O problema de Kant seria a 'imagem,' o paradigma muito curto? Acho que essa seria uma maneira estranha de explicar o que se passa. Não seria melhor dizer que Kant tem um conceito de objeto muito restrito?

Não tenho certeza de ter entendido a observação (5). Em todo caso, vale deixar claro que não quis dizer que o próprio Kant se prende à imagem da identidade dos objetos físicos, para depois tratar da identidade dos ``objetos'' (fenômenos) mentais. Na verdade disse apenas que, no que toca à identidade dos objetos físicos, Kant e Strawson concordam que as características espaço-temporais dos mesmos são essenciais, e sugeri que aceitássemos isso como uma análise correta e suficiente da identidade de objetos físicos para fins de argumentação. O meu ponto depois consistiu em mostrar como alguém poderia prender-se demais a esse paradigma no tratamento dos ``objetos'' mentais, e ``se foder''.  Strawson claramente procede assim. Já no caso de Kant as coisas são mais complexas. O que é certo é que ele se tentou mostrar, especialmente na seção da Refutação do Idealismo, que a determinação da identidade dos estados mentais é parasitária das condições de identidade dos objetos externos. Resumidamente, o argumento dele é o seguinte:

(a) o tempo é a forma do ``sentido interno'';
(b) a ordenação temporal (objetiva) de qualquer evento depende da determinação de um padrão de mensuração;
(c) tal padrão depende da determinação de algo permanente;
(d) só experienciamos a permanência no caso da experiência de objetos externos, espaciais;
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Ergo: a determinação objetiva das experiências do sentido interno depende da determinação objetiva dos objetos do sentido externo -- em outras palavras, não seria possível conhecer (objetivamente) os fenômenos mentais a não ser que tivéssemos experiências do mundo externo.

7. Dizer que o conceito é inadequado não é o mesmo que dizer que uma imagem ruim gerou um problema. Em um caso se supõe que um conceito mais adequado pode tratar melhor a situação. Em outro se supõe, ao que parece, que outro conceito, o 'mais adequado,' seria apenas outra imagem, e geraria problemas, tal como o primeiro.

Concordo, mas não defendi a equivalência entre conceito inadequado / conceito gerado a partir de uma imagem ruim. Estava apenas dando um exemplo de uma origem de um  ``conceito idadequado''. O critério último para a adequação ou não de um conceito, para W., consiste na possibilidade de fornecermos um sentido a esse conceito -- N.B., W. nem mesmo exige, como muitos costumam pensar, que para um conceito ser adequado ele precisa ser parte da linguagem ordinária. Podemos inventar conceitos -- e até mesmo jogos de linguagem completos, como o próprio W. faz inúmeras vezes em sua argumentação. Não há impedimento de princípio quanto à criação de ``novas notações''. A ciência faz isso o tempo todo, e não ha problemas com isso. O problema do filósofo é que ele por vezes propõe notações às quais ele pensa que deu um sentido, mas que ele não consegue justificar, i.e., não consegue fornecer regras claras para as empregarmos. 

8. Enfim, acho que esse negócio de 'imagem' não é uma boa maneira de retratar a filosofia.

Acho que você deu peso demais ao exemplo que usei. Não quis retratar a filosofia como sendo apenas uma atividade que nos livra de certas imagens. Mas continuo achando que essa é uma de suas funções, e que é importante.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Contribuições na Wikipédia

Lendo o artigo que o César começou na Wikipédia sobre História da Filosofia, resolvi dar uma pequena contribuição iniciando artigos sobre  Filosofia ocidental , Filosofia antiga, Filosofia medieval, Filosofia moderna e Filosofia contemporânea (em ordem crescente de número de palavras :-). 

Natureza dos problemas filosóficos: resposta ao César

Num comentário a um post anterior, o César afirma:

Curioso trecho: As pessoas continuam falando que a filosofia não progride realmente, que continuamos ocupados com os mesmos problemas filosóficos que preocupavam os gregos. é porque nossa linguagem permaneceu a mesma e continua nos seduzindo a perguntar as mesmas questões. Até quando continuar existindo um verbo `ser' que parece funcionar do mesmo modo que o verbo `comer' e `beber', até quando continuarmos tendo os adjetivos `idêntico', `verdadeiro', `falso', `possível', até quando continuarmos a falar de um rio do tempo, de uma porção (expanse) do espaço, etc. etc., as pessoas continuarão tropeçando sobre as mesmas dificuldades enigmáticas e encontrar-se-ão olhando fixamente para algo que nenhuma explicação parece capaz de clarificar.

Nunca vi os problemas filosóficos desta maneira, e encontro dificuldade em achar justificação para tal visão. "Com licença, você está dizendo que problemas filosóficos são efeitos colaterais da linguagem?" A idéia me parece absolutamente injustificada. Me parece difícil ver como o problema da identidade pode ser reduzido a um problema lingüístico, só para dar um exemplo. Quero saber o que é, para uma coisa, ser uma coisa. O que isso tem a ver com a linguagem?

Isso pra não falar noutro ponto: Como assim a filosofia não progride? Olha, só pra dar um exemplo, do Descartes que acredita em graus do ser a nós que nos livramos disso houve muito progresso.

Há muitas coisas que precisam ser esclarecidas para chegarmos a uma base comum de discussão. Primeiro, o que você quer dizer com "efeitos colaterais da linguagem"? Há um sentido no qual me parece que podemos compreender problemas filosóficos como efeitos de confusão lingüística. Mas não se trata do tipo de confusão que, por exemplo, um falante não competente de uma língua (uma criança, um estrangeiro) pode vir a ter quando tenta usar a linguagem. Wittgenstein está mais preocupado em mostrar que há certas imagens, modelos e analogias intimamente ligados ao nosso uso da linguagem, e que podem desencaminhar nossa reflexão acerca do uso de nossos termos e conceitos.

O exemplo que deste é perfeito, o da identidade. Ora, como chegamos a ter algum problema com relação à noção de identidade? Uma resposta wittgensteiniana poderia ser: começamos a refletir sobre a noção de identidade a partir de uma determinada imagem, e depois tentamos aplicar essa mesma imagem à totalidade dos casos nos quais empregaríamos o conceito em pauta (de identidade). Um exemplo concreto: começamos a pensar na identidade de objetos físicos. Depois de refletirmos um pouco sobre as condições de identidade desses objetos, podemos concluir que dentre elas figuram especialmente as características espaço-temporais dos mesmos. Strawson faz isso em Individuals, e Kant antes dele, e muitos outros antes de Kant certemente concordariam com isso. Para fins de argumentação, suponhamos que essa análise esteja correta e seja suficiente. Assim, podemos concordar que só reconhecemos duas instâncias de objetos que percebemos como sendo ou não o mesmo dependendo da satisfação de condições tais como uma relativa permanência, etc,, que permite reidentificá-lo(s). Tudo ok até aqui. Aí podemos partir (como o próprio Strawson fará) para a análise da identidade de estados mentais, digamos, dores. Como sabemos se minha dor de dente atual é igual ou diferente da que tive ontem, ou da sua dor de dente? Nós certamente por vezes falamos em dores iguais ou diferentes, certo? (Ou seja, certamente a noção de identidade é empregada nesses casos). Posso por exemplo achar que hoje minha dor está muito mais forte que a de ontem, ou que parece igual, ou ainda que hoje a dor está numa parte mais profunda do dente, etc. Mas agora ficamos num embaraço: como exlicar que a dor que eu tenho pode ser igual da que tu tens? Alguém dirá que não podemos ter absoluta certeza disso, mas simplesmente fazer inferências a partir do comportamento dos outros, comparando-o com o nosso próprio quando temos dores. Outra atitude seria dizer que isso é simplesmente absurdo! Eu só posso sentir minhas dores, você as suas, e jamais poderíamos compará-las.

Wittgenstein argumenta que nesse tipo de juízo está embutida a semente para o solipsismo. Mas não é isso que importa, e sim o diagnóstico de como chegamos a pensar que tais respostas parecem (e elas realmente parecem, não?) plausíveis. Se abandonarmos a imagem inicial acerca das condições de identidade -- aquela que se fundamenta na análise dos objetos físicos -- e percebermos que nossa linguagem efetiva para falar de identidade de estados mentais (como dores) é completamente diferente, não sentiremos esse embaraço. De fato, dores não possuem "identidade numérica" e "identidade qualitativa", como os objetos físicos. Duas dores qualitativamente identicas, i.e., com a mesma fenomenologia, mesma intensidade, na mesma parte do corpo em duas pessoas, etc., são duas dores idênticas, são a mesma dor. Falar em uma ou duas dores aqui não faz sentido -- N.B., isso não é falso, mas absurdo. Argumentar nesses termos seria como dizer que dois peões num jogo de xadrez não possuem exatamente as mesmas funções, não são a mesma peça, simplesmente porque cada um é numericamente distinto do outro.

Bem, isso é só um exemplo tosco e rápido para tentar mostrar como nosso apego a uma imagem do uso de uma certa noção nos faz cair em paradoxos e teses filosóficas muito absurdas. Mas vale salientar que essa não é o único tipo de problema colocado pela linguagem. W. não nos fornece nenhuma receita de bolo simples para diagnosticar as origens dos problemas filosóficos, mas fornece inúmeros exemplos particulares, e mostra como cada um deles nasce de algum tipo de confusão lingüística. Meu desafio aqui é ad hominem: me apresente um problema que claramente não se deve a uma tal confusão.

Sobre o segundo ponto, o progresso da filosofia: W. não está dizendo categoricamente que a filosofia não progride. Ele certamente acha que fez progressos importantes indicando as confusões de vários filósofos: a visão agostiniana da linguagem, o argumento da linguagem privada, etc. O que ele quer é antes chamar atenção para o fato de que, uma vez que nossa linguagem continua basicamente a mesma, ela sempre voltará a engendrar os mesmos problemas para diferentes pessoas, bastando que elas parem para refletir. Quem nunca leu filósofo algum na vida pode muito bem chegar a fazer as quesões que eles fizeram, e mesmo chegar às conclusões (por vezes absurdas) que eles chegaram. Se uma catástrofe detruir a obra de Descartes e tudo que veio depois dele, pessoas poderão voltar a ter aquela mesma idéia de "graus de ser". Certamene algumas ainda concordam com isso! O fato é que não há como acabar de vez com os problemas filosóficos, garantindo que será uma solução definitiva. Mas certamente há avanços na história da filosofia -- pelo menos eu assim penso, e por isso a estudo! A lição central de W. é que cada um de nós precisa passar por um esforço de "pensar por si mesmo", como ele nos diz na introdução das IF, para "curar-se" de tais problemas.

Anti-individualismo e Autoconhecimento - psicológico e de ações

O externalismo ou anti-individualismo é a posição filosófica que sustenta que os conteúdos dos pensamentos, estados e eventos mentais de um sujeito são constituídos, pelo menos parcialmente, por fatores que se encontram fora de sua mente, no 'mundo externo', dos objetos físicos e das relações sociais com outros seres humanos. A posição antagônica é a individualista, que tende a salientar exclusiva ou quase exclusivamente aquelas características dos fenômenos mentais responsáveis por sua natureza privada e subjetiva — tais como a autoridade da primeira pessoa em relação aos conteúdos desses fenômenos, ou o acesso direto, imediato, e privilegiado aos mesmos, ou ainda a sua transparência e indubitabilidade.

A intenção original dos defensores do anti-individualismo é solucionar vários problemas tradicionalmente ligados à explicação filosófica dos fenômenos mentais — em especial, os problemas céticos em relação à possibilidade de conhecimento de 'outras mentes' e do 'mundo externo'. Mas, independentemente do sucesso em resolver esses problemas, essa posição gera novas dificuldades. Uma das mais relevantes diz respeito à possibilidade de conhecimento direto, autoritativo e `transparente', por parte do sujeito, do conteúdo de seus próprios estados e eventos mentais — o que podemos chamar, seguindo uma denominação proposta por Christopher Peacocke, de 'autoconhecimento psicológico. Nesse sentido — como costuma ser o caso de todas as propostas que surgem como alternativas às ortodoxias na história da filosofia — a posição anti-individualista aparentemente peca pelo extremo oposto ao do individualismo, e, ao salientar demasiadamente as características públicas dos fenômenos psicológicos, leva à conclusão admitidamente absurda de que nenhum desses fenômenos poderia ser conhecido pelo próprio sujeito, indepententemente de algum tipo de investigação empírica do próprio ambiente físico e social que o rodeia.

Não faltam na literatura tentativas de solucionar esse problema. Mas aqui gostaria de mencionar uma em especial que me parece bastante promissora, embora não tenha recebido a atenção que lhe seria devida. Trata-se da proposta de Lucy O'Brien, no capítulo ``On Knowing One's Own Actions'', do livro Agency and Self-Awareness (Johannes Roessler e Naomi Elian (eds.), Clarendon Press, Oxford, 2003, pp. 358--382). O'Brien começa esse capítulo afirmando o seguinte:

Dados os debates recentes acerca do auto-conhecimento e da autoridade da primeira pessoa, é surpreendente que não tenha havido mais discussão sobre nosso conhecimento de nossas ações. Isso é surpreendente porque nosso conhecimento de nossas próprias ações parece, prima facie, compartilhar muitas das características de nosso conhecimento de crenças e percepções que deram origem àquele debate. (p. 359)

De fato, como O'Brien salienta numa nota, especialmente na década de 60, a questão sobre o autoconhecimento de ações voluntárias recebeu uma atenção central por parte dos filósofos, mas acabou sendo colocada de lado no debate contemporâneo. Perguntas tais como `` como sabemos que um movimento de nosso corpo -- como o de levantar meu braço -- é uma ação voluntária minha, antes que simplesmente uma ocorrência física que em nada depende de minha vontade?'' apresentam um problema acerca do autoconhecimento de ações que tem muito a ver com o problema do autoconhecimento psicológico -- como expresso pela pergunta: `` como sabemos que o que estamos vendo água (i.e., H2O) e não água-gêmea (i.e., XYZ)?'' -- pois em ambos os casos o que queremos é uma explicação para a possibilidade de um conhecimento direto, independente de evidência, transparente e autoritativo, acerca de algo no mundo. É claro que tal paralelo supõe uma análise ``externalista'' da própria ação voluntária, e é justamente desse tipo de análise, que reputo wittgensteiniana, que O'Brien parte. (Apenas para confrontar, um tratamento ``internalista'' da ação voluntária seria aquele que a trata como um evento constituído de dois elementos, o (mero) movimento físico no mundo, e a intenção (desejo, etc.), tomado como um elemento ``dentro de nossas cabeças'', que seria a causa daquele movimento). Dada essa suposição, aparentemente não há nenhuma razão de princípio para privilegiar um problema a outro. Como salienta O'Brien: ``ações são fenômenos psicológicos tão primitivos quanto crenças e percepções'' (pp. 358--359).

Mas na sequência do texto O'Brien vai ainda mais longe: ao analisar o caráter consciente do que ela chama de "estados mentais passivos", tais como crenças e percepções, ela argumenta que esse caráter seria parasitário e derivado de uma forma mais fundamental de consciência (aqui poderíamos dizer, de autoconhecimento), que é a consciência de "estados não-passivos", em última instância, do tipo de consciência que temos de algumas de nossas ações voluntárias básicas, e sob certas descrições também tomadas como básicas, tais como a ação de erguer o meu braço — as quais se nos apresentam como sujeitas a um tipo de controle de nossa parte para iniciá-las e pará-las.

Esse tipo de consciência do controle sob ações básicas, argumenta O'Brien, fundamenta as características de autoridade, relativa aprioricidade e transparência do conhecimento de tais ações. Para tratar apenas de um caso, o da autoridade: ``Uma vez que [o agente] não possua evidência contrária'' (note-se aqui o paralelo com a estratégia externalista para solucionar o problema do autoconhecimento psicológico), ``ele está autorizado a supor que seus sistemas motores estão funcionando propriamente e que ele tem, na base de ações passadas, uma apreensão verídica das ações básicas gerais e particulares abertas a ele'' (p. 381). O agente então delibera, e escolhe um curso de ação sobre o qual ele tem autoridade para descrever -- não obstante, N.B., a possibilidade de falhar, como no caso em que seu sistema motor não funciona corretamente, e, por conseguinte, no qual sua suposição inicial é falsa. (Paralelo com o externalismo: o sujeito pode ter sido transportado à Terra-Gêmea sem saber, e nesse caso sua suposição inicial, de que está no mesmo ambiente, é falsa, mas isso (supostamente) não põe em risco a autoridade que ele tem sobre o conteúdo de seus estados mentais quando aquela condição está satisfeita, ou seja, ele está na Terra).


Na pior das hipóteses, o que essa sugestão de O'Brien fornece é um novo e interessante ponto de vista a partir do qual refletir acerca da problemática do anti-individualismo e autoconhecimento.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Tópicos centrais das Investigações Filosóficas

Hans-Johan Glock, na p. 224 do Dicionário Wittgenstein (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997), propõe uma divisão de tópicos centrais das Investigações Filosóficas que me parece bastante útil como ponto de partida para a análise dessa obra (de fato, uma vez propus seguirmos essa ordem num grupo de estudos, e é ela que eu sigo para organizar minhas fichas de leitura).
  1. (§§1–64) Visão agostiniana da linguagem (em especial no atomismo lógico do Tractatus e de Russell);
  2. (§§65–88) O ataque ao ideal da determinabilidade do sentido, presente no Tractatus e em Frege — isso vale para a natureza da linguagem, das definições, das regras, dos significados, das explicações, etc.
  3. (§§89–133) A natureza da Filosofia, e a busca da Lógica por uma linguagem ideal
  4. (§§134–142) A forma proposicional geral e a natureza da verdade
  5. (§§143–184) A compreensão linguística e o conceito de leitura
  6. (§§185–242) O que é seguir uma regra e o quadro de referencia da linguagem
  7. (§§243–315) O argumento da linguagem privada
  8. (§§316–362) Pensamento e pensar
  9. (§§363–397) Imaginação e imagens mentais
  10. (§§398–411) O pronome de primeira pessoa 'eu' e a natureza do self
  11. (§§412–427) A natureza da consciência
  12. (§§428–465) Intencionalidade — a harmonia entre a linguagem e a realidade
  13. (§§466–490) Indução e justificação das crenças empíricas
  14. (§§491–546) Gramatica e os limites do sentido
  15. (§§547–570) Identidade e diferença se significado linguístico
  16. (§§571–610) Estados e processos mentais: expectativa, crença
  17. (§§611–628) A vontade
  18. (§§629–660) Pretender algo
  19. (§§661–693) Querer dizer algo
Até o momento as partes "mais gastas" :-) do meu exemplar das IF são a 1, 2, 7 e 10.

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Tradução de algumas passagens de Culture and Value

Culture and Value (University of Chicago Press, 1980) é uma coletânea de notas extraídas dos manuscritos de Wittgenstein entre os anos de 1914 e 1951, nas quais ele trata de vários assuntos mais ou menos relacionados à filosofia. Segue a tradução de algumas passagens que achei bem interessantes, divididas em algumas categorias:

Passagens ``kantianas''

Limite da linguagem e do entendimento, inefabilidade

O limite da linguagem é mostrado por ser impossível descrever o fato que corresponde a (é a tradução de) uma frase, sem simplesmente repetir a frase. (Isso tem a ver com a solução kantiana do problema da filosofia.) (CV, p. 10)

As pessoas continuam falando que a filosofia não progride realmente, que continuamos ocupados com os mesmos problemas filosóficos que preocupavam os gregos. é porque nossa linguagem permaneceu a mesma e continua nos seduzindo a perguntar as mesmas questões. Até quando continuar existindo um verbo `ser' que parece funcionar do mesmo modo que o verbo `comer' e `beber', até quando continuarmos tendo os adjetivos `idêntico', `verdadeiro', `falso', `possível', até quando continuarmos a falar de um rio do tempo, de uma porção (expanse) do espaço, etc. etc., as pessoas continuarão tropeçando sobre as mesmas dificuldades enigmáticas e encontrar-se-ão olhando fixamente para algo que nenhuma explicação parece capaz de clarificar.

E mais do que isso, isso satisfaz uma espera pelo transcendente, porque na medida em que pessoas pensam que podem ver os ``limites do entendimento humano'', elas acreditam é claro que podem ver além deles. (CV, p. 15)

Nada que fazemos pode ser defendido absolutamente e de maneira final. Mas apenas por referência a algo mais que não é questionado. [...]Talvez aquilo que é inexprimível (que eu acho misterioso e não sou capaz de exprimir) seja o pano de fundo contra o qual o que quer que eu possa exprimir adquira seu significado. (CV, p. 16)

Confusão ideal (protótipo) / objeto

[P]recisamos ser avisados acerca de qual é o objeto de comparação, o objeto a partir do qual esse modo de ver as coisas é derivado, pois de outro modo a discussão será constantemente afetada por distorções. Porque atribuiremos de maneira tudo ou nada (willy-nilly) as propriedades do protótipo ao objeto que estamos vendo sob sua luz; e afirmaremos ``deve sempre ser ...''.

Isso é porque queremos dar às características do protótipo um poder aquisitivo (a purchase) sobre nosso modo de representar as coisas. Mas uma vez que confundimos o protótipo e o objeto nos encontramos dogmaticamente conferindo ao objeto propriedades que apenas o protótipo necessariamente possui. Por outro lado, nós pensamos que nossa concepção não obterá a generalidade que queremos que ela obtenha se ela é realmente verdadeira apenas de um caso. Mas o protótipo deve ser claramente apresentado pelo que ele é; de modo que ele caracteriza toda a discussão e determina sua forma. Isso o torna o ponto focal, de modo que sua validade geral dependerá do fato de que ele determina a forma da discussão antes que da afirmação de que tudo que é verdadeiro apenas dele também vale para todas as coisas das quais se está discutindo. (CV, p. 14)

A Natureza da Filosofia e dos Problemas Filosóficos

A solução dos problemas filosóficos

A solução dos problemas filosóficos pode ser comparada com um presente num conto de fadas: no castelo mágico ele parece encantado e se você olha para ele do lado de fora à luz do dia não é nada além de um pedaço de ferro ordinário (ou algo do tipo). (CV, p. 11)

Armadilhas da linguagem

A linguagem prepara para todo mundo as mesmas armadilhas; ela é uma imensa rede de fáceis desvios errados. E assim assistimos um homem após outro andando pelos mesmos caminhos e sabemos com antecedência onde ele irá desviar para fora, onde caminhará reto sem notar o desvio lateral, etc. etc. O que eu tenho que fazer então é erguer sinais de trânsito em todas as junções onde há desvios errados de modo a auxiliar as pessoas a passar pelos pontos perigosos. (CV, p. 18)

O poder da linguagem de fazer tudo parecer o mesmo, que é mais claramente evidente no dicionário e que torna a personificação do tempo possível: algo não menos notável do que poderia ter sido a transformação de constantes lógicas em divindades. (CV, p. 22)

Estilo

Eu penso que resumi minha atitude em relação à filosofia quando disse: a filosofia realmente deveria ser escrita apenas como uma composição poética. Deve, parece-me, ser possível apanhar daí o quanto meu pensamento pertence ao presente, futuro ou passado. Pois eu estava desse modo revelando-me como alguém que não pode fazer exatamente o que ele gostaria de ser capaz de fazer. (CV, p. 24)

Expressivismo

A face é a alma do corpo. (CV, p. 23)

Ciência

O que um Copérnico ou um Darwin realmente obtiveram não foi a descoberta de uma nova teoria mas sim de um fértil novo ponto de vista. (CV, p. 18)