Ocorreu-me um paralelo inusitado entre o famoso "argumento do besouro na caixa" apresentado por Wittgenstein nas IF (#293) e o "argumento" (se é que se pode dar esse nome) tractariano segundo o qual o solipsismo levado às últimas conseqüências "coincide com o puro realismo" (TLP, #5.64).
Vamos primeiro ao texto das IF:
Na verdade o paralelo não parecerá tão inusitado se tivermos em mente o contexto do argumento de IF (#293): o sujeito com o besouro na caixa é cada um de nós, vistos do ponto de vista de um defensor da privacidade das sensações, e o "besouro" são justamente essas sensações, observáveis apenas do nosso próprio ponto de vista. Essa imagem da "privacidade" é uma das forças que impelem o filósofo em direção ao solipsismo. Pode-se dizer que W. está fazendo em ambos os casos é "cortar o barato" do filósofo candidato a solipsista logo de saída: no caso do argumento das IF, mostrando que o que ele queria resgardar com seu modelo do 'objeto e designação' -- a "sensação privada" -- acaba sendo suprimido num (possível) contexto efetivo de uso da "notação" que ele propõe; no caso do TLP mostrando que isso que parecia tão bacana e importante -- a perspectiva privilegiada do sujeito metafísico -- não é na realidade prespectiva nenhuma.
Mas se é assim, então o mesmo deve valer para o "mundo como totalidade limitada" que é apresentado ao final do TLP como o objeto de contemplação mística do "eu metafísico" (cf. TLP 6.431 e seguintes). Ou seja, o uso da palavra "mundo" nessas proposições deve ser tomado como análogo ao da palavra "besouro" no argumento das IF . Seja qual for esse uso, ele não designa nada.
______________________
[*] Nota referente à tradução: tanto a edição brasileira da coleção Pensadores quanto a da Vozes tornam essa frasesem-sentido. Ambas adotam "abreviar" como tradução de "gekürzt werden" -- que na tradução de Anscombe ficou "divide through". Não há problemas com a escolha desse termo, contanto que se compreenda o que ele quer dizer no contexto: podemos "atalhar", esquecer a coisa na caixa. Mas as construções frasais de ambas as edições citadas obscurecem (para dizer o mínimo) esse sentido. Na dos Pensadores lemos: "Não, por meio desta coisa na caixa, pode-se 'abreviar'"; já na da Vozes lemos: "Não, pode-se 'abreviar' por meio desta coisa na caixa";
Vamos primeiro ao texto das IF:
Suponhamos que cada um de nós tivesse uma caixa com algo dentro dela: nós chamamos isso de um "besouro". Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um besouro apenas a partir da visão do seu besouro. --- Poderia ser que cada um tivesse algo diferente em sua caixa. Poderíamos mesmo imaginar que tal coisa se modificasse continuamente. --- Mas, e se a palavra "besouro" tivesse um uso para essas pessoas? --- Neste caso, não seria o de designar uma coisa. A coisa da caixa não pertence, de modo nenhum, ao jogo de linguagem nem mesmo como um algo: pois a caixa poderia também estar vazia. --- Não, pode-se 'abreviar' a coisa na caixa[*]; seja o que for, é suprimido. (IF, #293)Como é sabido, esse argumento visa demonstrar a vacuidade da teoria filosófica que interpreta a "gramática das expressões de sensação segundo o modelo de 'objeto e designação'". Mas não é isso que me importa salientar agora. Antes quero esboçar o paralelo entre a análise desse jogo de linguagem e a análise da "verdade do solipsismo" no TLP. A idéia é mais ou menos a seguinte: assim como a "coisa" na caixa seria irrelevante para o uso da palavra "besouro" no jogo acima, o "ponto de vista" do "eu metafísico" seria completamente irrelevante na descrição do mundo. É por isso que esse "eu" não constaria no livro O mundo tal como o encontro (TLP, 5.631). Mas é também por isso que "o solipsismo, levado às últimas conseqüências, coincide com o puro realismo"; levar o solipsismo às últimas conseqüências, como W. afirma na sequencia, implica que "o eu do solipsismo reduz-se a um ponto sem extensão e resta a realidade coordenada com ele". O que estou sugerindo é que devemos levar ao pé da letra a afirmação de que esse suposto "eu" vira um ponto sem extensão --- ele vira um nada, algo que podemos "abreviar", como a "coisa" na caixa.
Na verdade o paralelo não parecerá tão inusitado se tivermos em mente o contexto do argumento de IF (#293): o sujeito com o besouro na caixa é cada um de nós, vistos do ponto de vista de um defensor da privacidade das sensações, e o "besouro" são justamente essas sensações, observáveis apenas do nosso próprio ponto de vista. Essa imagem da "privacidade" é uma das forças que impelem o filósofo em direção ao solipsismo. Pode-se dizer que W. está fazendo em ambos os casos é "cortar o barato" do filósofo candidato a solipsista logo de saída: no caso do argumento das IF, mostrando que o que ele queria resgardar com seu modelo do 'objeto e designação' -- a "sensação privada" -- acaba sendo suprimido num (possível) contexto efetivo de uso da "notação" que ele propõe; no caso do TLP mostrando que isso que parecia tão bacana e importante -- a perspectiva privilegiada do sujeito metafísico -- não é na realidade prespectiva nenhuma.
Mas se é assim, então o mesmo deve valer para o "mundo como totalidade limitada" que é apresentado ao final do TLP como o objeto de contemplação mística do "eu metafísico" (cf. TLP 6.431 e seguintes). Ou seja, o uso da palavra "mundo" nessas proposições deve ser tomado como análogo ao da palavra "besouro" no argumento das IF . Seja qual for esse uso, ele não designa nada.
______________________
[*] Nota referente à tradução: tanto a edição brasileira da coleção Pensadores quanto a da Vozes tornam essa frasesem-sentido. Ambas adotam "abreviar" como tradução de "gekürzt werden" -- que na tradução de Anscombe ficou "divide through". Não há problemas com a escolha desse termo, contanto que se compreenda o que ele quer dizer no contexto: podemos "atalhar", esquecer a coisa na caixa. Mas as construções frasais de ambas as edições citadas obscurecem (para dizer o mínimo) esse sentido. Na dos Pensadores lemos: "Não, por meio desta coisa na caixa, pode-se 'abreviar'"; já na da Vozes lemos: "Não, pode-se 'abreviar' por meio desta coisa na caixa";