terça-feira, dezembro 13, 2005

Uma tese "kantiana" nas Investigações Filosóficas

A leitura das Investigações Filosóficas (IF) --- assim como dos demais escritos de W., e também de Austin --- é um tipo de terapia à qual me sujeito, visando curar-me de meu natural ``desejo por generalidade'' (craving for generality) contra o qual W. nos alerta explicitamente (cf. Blue Book, p. 17). Minha mente "kantianamente treinada" sempre tem mais dificuldades para compreender a relevância de sutis observações e distinções gramaticais, tão abundantes na obra de W., do que proposições com alto nível de generalidade e abstração. Por isso mesmo, encontrar uma tese geral nas IF de vez em quando é como encontrar um oásis no meio do deserto, especialmente quando essa tese apresenta um sabor tão tipicamente kantiano (ou, se preferirem, idealista transcendental) quanto a seguinte:

Nós predicamos da coisa aquilo que reside no seu método de representação. Impressionados pela possibilidade de uma comparação, pensamos que estamos percebendo um estado de coisas da mais alta generalidade. (IF, sec. 104)

Assim descontextualizada certamente essa tese não diz muito a um leitor que não conheça um pouco da posição de Kant e de W. Mas tentarei apresentar o paralelo entre as posições desses dois autores de maneira bastante esquemática.

Kant classifica todas as posições já sustentadas na história da filosofia sob dois rótulos gerais: realismo transcendental (RT) e idealismo transcendental (IE) --- as quais, por sua vez, teriam como respectivas contrapartidas as posições do idealismo empírico (IE) e do realismo empírico (RE). Basicamente, o que um defensor do RT sustenta é que as coisas existem independentemente de nossa capacidade de representação das mesmas. Uma das versões do RT é o racionalismo, caracterizado justamente pela tentativa de obter conclusões metafísicas substantivas acerca das coisas como são nelas mesmas, a partir da análise a priori de certas caracterísiticas gerais de nossa faculdade da Razão. O que justifica essa pretensão é a suposição (realista transcendental) de que nossa faculdade representativa espelha a ordem das próprias coisas que existem independentemente dela. Um dos casos mais característicos desse tipo de estratégia é o famoso ``argumento ontológico'', que visa provar a existência de Deus a partir da análise da idéia de Deus.

Segundo Kant, qualquer posição fundamentada nesse tipo de suposição (realista transcendental) está fadada a levar ao idealismo empírico, se for defendida consequentemente. Isso porque, uma vez estabelecido o abismo metafísico entre a mente (ou sujeito) e o mundo (as coisas nelas mesmas), não haveria mais como construir uma ponte entre essas esferas. Defender uma inferência da primeira à segunda não vai adiantar, pois não há garantias para a correção dessa inferência, uma vez aceito o RT.

Contra esse tipo de problema Kant defenderá o IT, i.e ., uma posição segundo a qual as coisas não são completamente independentes de nossas capacidades cognitivas / representacionais --- N.B., elas são independentes sob um aspecto, i.e., apenas no que toca à sua existência, uma vez que a matéria de nossa cognição precisa ser suprida para que possamos atuar sobre ela, mas elas são dependentes no que toca a outro aspecto, sua forma, sendo que esta última seria suprida por características gerais de nossa sensibilidade, espaço e tempo (as formas a priori da intuição) + conceitos fundamentais de nosso entendimento (as Categorias). Dada a suposição idealista transcendental , é possível um acordo a priori entre a coisa representada e a própria representação (no que toca à forma de ambas). E é essa possibilidade que garante o realismo empírico --- ou seja, a legitimidade e confiabilidade (nesse sentido, ``realidade'') daquilo que nos aparece por meio dos sentidos, assim como a legitimidade e confiabilidade daquilo que viemos a saber por meio da ciência.

Apesar do caráter esquemático dessa apresentação, espero que ela seja suficiente para indicar a similaridade entre o diagnóstico kantiano para as confusões filosóficas do advindas da suposição realista transcendental (no caso do racionalismo), e aquele apresentado por W. na passagem acima: trata-se, nomeadamente, da tentativa de ``predica[r] da coisa aquilo que reside no seu método de representação''. Assim como Kant irá propor sua ``revolução copernicana'' como o caminho de solução para as confusões dos filósofos que caem nesse erro, W. também nos advertirá que, se quisermos remover certas confusões filosóficas advindas de incompreensões de nossa gramática, precisamos inverter todo o nosso exame, e parar de tentar fundar a legitimidade ou correção dessa gramática, ou da linguagem, buscando qualquer tipo de relação externa (e.g., causal) entre sinais e coisas, para passar à descrição e elucidação das relações internas (normativas) entre nosso ``método de representação'' e aquilo que é representado --- relações essas que se deixam entrever mais facilmente se analisarmos nossas explicações de significados, e nossas práticas lingüísticas efetivas. Esse, a meu ver, é o passo externalista radical comum a Kant e a W., passo este que não me parece ter sido dado pelos chamados `externalistas' contemporâneos.

sábado, dezembro 03, 2005

Dicas metodológicas no Blue Book

Uma das grandes vantagens do Blue Book em relação às Investigações Filosóficas é que naquela obra Wittgenstein explicita o procedimento ou metodologia de sua filosofia, enquanto nessa última ele apenas o emprega. Alguns exemplos claros de dicas metodológicas que pude recolher são os seguintes:

  1. Ao invés de investigar a natureza do significado de uma expressão, investigar como uma explicacao do significado dessa expressao se parece, i.e., quais sao as maneiras possiveis de se ensinar a usar essa expressao; isso traz a questao do significado ``de volta para a terra'', e nos livra da tentacao de buscar um tipo de objeto que corresponda ao significado (p. 1)
  2. Substituir o apelo a `processos mentais' e/ou `feitos da imaginacao' por atos de observacao de objetos externos reais em explicacoes do que da o significado (``vida'') para certos sinais (p. 4) --- e.g., ao inves de pensar em `imagens mentais' de cores, pensar num sujeito que porta consigo um cartao de cores (p.3), ao inves de pensar em regras `mentais' para calcular, jogar xadrez, etc., pensar no uso de numa tabela de regras escritas (p. 13).
  3. Fugir da tentacao de interpretar palavras analogamente, simplesmente porque elas possuem formas gramaticais prima facie analogas em nossa linguagem ordinaria --- e.g., `pensar' e `pensamento' sao prima facie analogas a `escrever', `falar', etc., e por isso nos fazem buscar por atividades, diferentes mas analogas a estas ultimas (p. 7)
  4. Inventar jogos de linguagem que indiquem formas mais simples ou primitivas de linguagens, nas quais certos tipos de pensamento ``aparecem sem o pano de fundo de processos altamente complicados'' de nossa linguagem efetiva. ``Quando olhamos para tais formas simples de linguagem a nevoa mental que parece envolver nosso uso ordinario da linguagem desaparece. Vemos atividades, reacoes, que sao bem definidas e transparentes. Por outro lado reconhecemos nesses processos simples formas de linguagem nao separadas por um corte das nossas mais complicadas.'' (p. 17)
  5. Abandonar a busca pela generalidade --- o que implica, dentre outras coisas: (a) nao buscar algo comum a todas as entidades que subsumimos a um termo geral; (b) nao buscar uma imagem geral por tras do uso de um termo geral; (c) abandonar o modelo cientifico de investigacao --- i.e., parar de buscar explicacoes redutivas e generalizacoes: a ``filosofia é realmente `puramente descritiva' '' (cf. pp. 17--19).
  6. ``Se você está confuso sobre a natureza do pensamento, crença, conhecimento, e coisas parecidas, substitua o pensamento pela expressão do pensamento, etc. A dificuldade que há nessa substituição, e ao mesmo tempo toda a importância dela, é esta: a expressão da crença, pensamento, etc., é apenas uma frase; --- e a frase tem sentido apenas como um membro de um sistema de linguagem;'' (p. 42)

sexta-feira, dezembro 02, 2005

Mudanças no Blog

Resolvi utilizar este Blog exclusivamente para postar textos relacionados à minha pesquisa em Filosofia, redirecionando as dicas de Linux, passadas e futuras, para o Blog do Gilson, que é especificamente voltado para isso, e aceita posts do público em geral. Recomendo a todos!

Significado e uso: resposta ao Cesar

Num comentário a um post anterior, o César fez as seguintes ``provocações'' acerca da tese wittgensteiniana de que o significado de uma palavra é, grosseiramente, o seu uso numa linguagem:

Curiosa essa tese de Hacker, "o significado de uma palavra é seu uso". O que é 'uso'? Pra lembrar do experimento de Burge. Bert usa 'artrite' para designar sua dor na coxa. Isso significa, para Hacker, que o significado de 'artrite' é 'aquilo que causa a dor na coxa de Bert'? Não é assim que costumamos falar em significado, eu acho. Isso é coisa de filósofo.

A importância de apresentar essas ``provocações'' do César é que penso que elas surgem espontaneamente para um leitor não acostumado ao tipo de tratamento dado por Wittgenstein, e por isso mesmo tentar esclarecê-las constitui um exercício bastante instrutivo.

Começo esclarecendo que a tese em pauta --- a de que "o significado de uma palavra é seu uso" --- não é de Hacker (que foi o autor citado em meu post), mas é explicitamente defendida pelo próprio W. em vários contextos (além de estar implícita em muitos outros). Apenas para dar alguns exemplos:
  1. ``Se tivermos que dar um nome a algo que dá a vida a um sinal, devemos dizer que é o seu uso'' ( Blue Book, p. 4);
  2. ``O significado de uma expressão para nós é caracterizado pelo uso que fazemos dela. O significado não é um acompanhante mental da expressão'' (ibid., p. 65);
  3. ``Para uma grande classe de casos --- ainda que não para todos --- nos quais empregamos a palavra ``significado'' ela pode ser definida assim: o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem.'' ( IF, sec. 43).
Frente a essas afirmações, naturalmente surge a questão feita pelo César acima: ``O que é 'uso'?''. Bem, em resposta a essa questão vale salientar, antes de mais nada, que, dado o procedimento argumentativo de W., não há nada mais errado do que buscar na obra desse autor uma definição, em sentido estrito, das noções de `significado' ou de `uso'. De fato, não há nada mais distante de seu projeto filosófico do que tentar fornecer definições, no sentido de forencer condições necessárias e suficientes para o emprego de um termo. O objetivo de W. na verdade é sobretudo negativo: trata-se de mostrar os problemas inerentes a várias assimilações feitas pelos filósofos na explicação do significado. Os principais exemplos de tais assimilações criticados por W. são:

i. o significado é o referente das palavras, i.e., a própria coisa que elas nomeiam (subjacente a essa tese está a chamada concepção agostiniana da linguagem, segundo a qual palavras funcionam como nomes);

ii. o significado é um tipo de acompanhamento mental (um processo, um sentimento, imagem mental, etc.) do uso das palavras.

Não é por acaso que no Blue Book, imediatamente após apresentar a questão sobre ``O que é o significado de uma palavra?'', ele toma um caminho indireto, e nos pede para ``Atacar a questão perguntando, primeiro, o que é uma explicação do significado de uma palavra; como a explicação do significado de uma palavra se parece?'' ( BB p. 1 --- cf. post anterior). Explorar o modo como aprendemos o significado de uma palavra é investigar como aprendemos a usá-la. É justamente com a intenção de livrar o filósofo da tentação de fazer assimilações apressadas como aquelas apresentadas acima (i--ii) que W. chamará atenção para certas analogias que existem, por exemplo, entre o uso das palavras e o uso de ferramentas (cf. IF sec. 11ss.), ou de peças em um jogo (cf. IF sec. 31ss.). Compreender o significado de uma palavra é saber empregá-la dentro de um sistema de regras, assim como saber usar uma peça num jogo de xadrez é saber movê-la conforme o sistema de regras desse jogo. Nesse sentido, a comparação da linguagem com um jogo tem a vantagem de deixar clara essa característica ``holística'' do uso das palavras; mas ela também serve a um outro propósito importante: o de ``dar proeminência ao fato de que falar uma linguagem é parte de uma atividade, ou de uma forma de vida'' (IF, sec. 23). Justamente por ser parte de uma forma de vida, a compreensão da gramática de nossa linguagem efetiva fornece um critério de correção e de significatividade para ``convenções'' alternativas, propostas pelos filósofos. Não há nenhuma razão última para não se propor novas convenções, novos ``jogos de linguagem'' --- a ciência e a matemática, por exemplo, na opinião de W., estão sempre fazendo isso (cf. e.g., IF, sec. 18). Mas na medida em que tais convenções se afastam mais da nossa forma de vida , elas vão gradualmente tornando-se incompreensíveis e sem sentido para nós.

Respondendo à observação sobre o experimento de Burge. Claro que Hacker não diria que `` o significado de 'artrite' é 'aquilo que causa a dor na coxa de Bert' ''. Uma resposta nesses termos causalistas pressupõe justamente a imagem que W. quer negar, a saber, a de que a palavra `artrite' fica por algo --- um tipo de ``objeto'' --- que seria o referente da mesma. Ninguem mais do que W. (e, por conseguinte, Hacker, na esteira dele) seria mais contrário a uma análise causal do significado, nessas linhas que sugeriste. O significado de `artrite' para W. e para Hacker, seria o mesmo que é para Burge, creio eu, e seria dado, grosseiramente, pela regra de uso do termo em nossa comunidade lingüística. Claro, isso não esclarece completamente o assunto, mas espero ao menos ter afastado a leitura causalista, mostrando como há mais proximidade entre W. e Burge, neste ponto. Cabe salientar, contudo, que a meu ver há uma grande distância separando externalistas contemporâneos e W. Tratei disso no post original comentado pelo César, e espero esclarecer isso numa oportunidade futura.

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REFERÊNCIAS:

HACKER, P. M. S. Davidson on Intentionality and Externalism. Philosophy, n. 73, p. 539–552, 1998.
LUDLOW, P.; MARTIN, N. (Ed.). Externalism and Self-Knowledge. Standford, California: CSLI Publications, 1998.
WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Oxford: Basil Blackwell, 1976. Tr. G. E. M. Anscombe.
_______.The Blue and Brown Books. Harper Torchbooks, US / Basil Blackwell UK, 1960 (segunda edição)