segunda-feira, outubro 31, 2005

David Kaplan --- Demonstratives I: Introducao

Finalmente, gracas a uma forcinha do Cesar, estou lendo o artigo ``Demonstratives'', de David Kaplan (In: Themes from Kaplan, Almog, Perry, Wettstein (eds.), New York, Oxford, Oxford U.P., 1989, pp. 481--563). `A medida em que for lendo o artigo, postarei resumos dos pontos que me parecerem mais relevantes.

Kaplan comeca o artigo justificando a importancia do tratamento dos demonstrativos. A primeira motivacao que ele aponta eh logica, mais especificamente, advinda da analise de um problema central da logica modal: o da identificacao de individuos atraves de mundos (possiveis), que parece ter como condicao de possibilidade a existencia de proposicoes singulares, i.e., proposicoes que contem termos que referem imediatamente ou diretamente a seus objetos, sem o intermedio do `sentido' (Sinn) fregeano (p. 483-6). Outras motivacoes advem das analises filosoficas (da filosofia da linguagem e do significado) de Donnellan --- descricoes definidas em uso referencial---, Putnam --- a fixacao da referencia de termos para especies naturais nao eh determinada pelo Sinn que sujeitos adquirem ao aprender o uso desses termos --- e Kripke --- critica ao descritivismo (p. 486-7). A sugestao de Kaplan eh a de que todos esses tratamentos apontam para a necessidade de uma teoria da referencia direta, e a analise dos demonstrativos seria a area na qual essa teoria possui a aplicacao mais plausivel (p. 487).

Esclarecimentos terminologicos:
  • NDEXICAIS (geral --- termos que referem imediatamente, dependendo do contexto)
  • DEMONSTRATIVOS (indexicais + demonstracao, e.g., `isto')
  • INDEXICAIS PUROS (indexicais sem demonstracao, e.g., `eu', `agora', `aqui') (p. 490-91)
Dois ``principios obvios'':
  1. O referente de um indexical puro depende do contexto, e o referente de um demostrativo depende da demonstracao associada.
  2. Indexicais, puros e demonstrativos igualmente, sao diretamente referenciais.
Uma vez que, segundo Kaplan, (2) nao costuma ser tao explicitamente formulado quanto (1), no contexto da discussao filosofica sobre demonstrativos, esse principio merece um argumento em seu suporte. Tratarei desse argumento no proximo post sobre o topico.

quinta-feira, outubro 27, 2005

Problemas com o externalismo II: A (velha) imagem da `mente' separada do `mundo'

Um outro erro ou confusão comum do externalismo, a meu ver, é a suposição geral de uma imagem na qual mente e mundo encontram-se (metafísica e epistemicamente) isolados um do outro. Se a única diferença entre individualismo e anti-individualismo consiste em abraçar um dos lados dessa dicotomia como sendo o responsável (segundo alguns, o responsável causal) pelos conteúdos de nossos pensamentos, então não teremos dado um passo muito grande na direção de um modelo alternativo de explicação dos fenômenos mentais. Para tanto o que é necessário é abandonar a própria dicotomia, e parar de pensar em significados como ‘coisas’, ‘objetos’ ou ‘entidades’ — sejam elas internas ou externas. Como nos lembra Peter Hacker (1998), “Grosseiramente falando, o significado de uma palavra é seu uso. E o uso de uma palavra, o modo como ela é usada, não é algo dentro ou fora da cabeça”. Não é preciso pensar nos significados das palavras como ‘objetos externos’ para que eles se tornem públicos, compartilhados, “moedas comuns” para usar a metáfora de Burge.
Abandonar a exigência de identificar significados e / ou conteúdos de pensamentos como se fossem ‘objetos’ não resolve, por si só, o problema do autoconhecimento psicológico, mas facilita muito a tarefa. Um outro elemento que me parece fundamental para obter essa solução, que é uma compreensão mais adequada do tipo de (auto-)conhecimento envolvido nesses casos, e do que faz com que o sujeito possa ter algum tipo de privilégio sobre ele. Eh para clarificar esse ponto que penso que vale a pena atentar a posicoes como a de Richard Moran (2001) e de Wittgenstein (1976).

Referencias:

HACKER, P. M. S. Davidson on Intentionality and Externalism. Philosophy, n. 73, p. 539–552, 1998.


MORAN, R. Authority and Estrangement: An Essay on Self-Knowledge. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2001.


WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Oxford: Basil Blackwell, 1976. Tr. G. E. M. Anscombe.

Problemas com o externalismo I: O que podemos nos saber a priori afinal?

O externalismo ou anti-individualismo surge como uma proposta alternativa em relação ao modelo individualista tradicional, e visa solucionar alguns dos principais problemas herdados dessa tradição — tais como o do contato entre a ‘mente’ e o ‘mundo’ (o ‘problema do mundo externo’), e do conhecimento do conteúdo dos estados e eventos mentais de outros sujeitos (o ‘problema das outras mentes’). Para tanto, a tese central do anti-individualismo é a de que o conteúdo dos estados e eventos mentais dos sujeitos é constituído, ao menos parcialmente, por fatores ‘externos’ à sua mente, no sentido de que tais fatores não constariam numa análise que tomasse por base apenas o sujeito, isoladamente do mundo a seu redor — seu ambiente físico, social e lingüístico. Uma das dificuldades geradas por essa tese diz respeito à possibilidade de conhecimento, por parte do sujeito, de seus próprios estados e eventos mentais — o que doravante gostaria de chamar, seguindo uma denominação proposta por Christopher Peacocke (1998), de ‘autoconhecimento psicológico’. A razão para esse aparente problema é simples: na exata medida em que os conteúdos desses estados e eventos se tornam ‘externos’ e públicos, acessíveis a partir da perspectiva da terceira pessoa, eles parecem perder a característica oposta, de serem acessíveis de alguma maneira peculiar, especial, autoritativa ou privilegiada, pelo próprio sujeito, i.e., a partir da perspectiva da primeira pessoa.

Um dos elementos centrais nesse debate acerca do autoconhecimento de estados e eventos mentais eh a questao sobre a possibilidade de conhecermos esses estados e eventos mentais a priori. Mas o que exatamente um sujeito sabe a priori, afinal, quando, e.g., sabe que está pensando que p? Para responder a essa questão, gostaria de retomar o resultado do argumento de Kripke em Naming and Necessity (Kripke, 1972 --- na minha opiniao, um dos precursores do externalismo). Segundo esse argumento, o significado de um nome, ou de um termo para espécie natural como ‘água’, é fixado como sendo, respectivamente, quem quer que os falantes de nossa comunidade nomeiem com esse nome, ou o que quer que compartilhe das características da amostra utilizada no momento da fixação da referência daquele termo. Ora, mas se é assim, então mesmo em situações contrafactuais como a da Terra Gêmea (Putnam, 1975) há algo que sabemos a priori, algo que poderia ser explicitado por uma sentença como ‘sei que estou pensando que o que quer que minha comunidade lingüística chama de ‘água’ é molhado’. Ocorre que aquilo que está à minha frente, por hipótese, não é aquilo que minha comunidade lingüística chama de ‘água’, e, portanto, eu de fato cometo algum erro nessa situação. Mas qual é exatamente a natureza desse meu erro? No caso em que estou diante de XYZ, e não de H2O, meu erro é empírico, e só pode ser corrigido por meio de uma ‘investigação empírica’ — não é um erro acerca do conhecimento do significado dos termos que emprego. Eu continuo empregando — e sabendo que emprego — o termo ‘água’ para falar sobre aquilo que minha comunidade considera água, i.e., H2O. É absurdo pensar que uma mudança lenta me torna parte ativa de uma nova comunidade lingüística, fazendo-me usar os termos da maneira que aí são usados, à revelia de minhas próprias intenções. Justamente por isso é absurdo afirmar, como Ludlow (LUDLOW, P.; MARTIN, N.(eds.) 1999), que “devido a mudanças não detectadas em minha comunidade lingüística, o conteúdo de meus pensamentos sobre chicory mudaram” , ou que “passado suficiente tempo na Terra-Gêmea, pensamentos sobre água dão origem a pensamentos sobre àgua-gêmea”.

Em outras palavras, nós optamos por deferir o significado de nossos termos a uma determinada comunidade lingüística, e é justamente esse fato que possibilita um tipo de conhecimento a priori — o conhecimento da gramática de nossa linguagem; não há necessidade de ‘investigar nosso ambiente’, em cada situação particular, para saber acerca do que estamos pensando; a garantia de que estamos de posse desse tipo de conhecimento a priori deriva do fato de que também nós somos parte dessa comunidade lingüística, e assim compartilhamos com essa comunidade do conhecimento (gramatical) do uso de nossos conceitos. A propósito, é porque nossas práticas lingüísticas funcionam desse modo que a memória preservativa pode ser vista como funcionando de maneira análoga à anáfora, como quer Burge (ibid.) — é justamente porque supomos que os sujeitos (tacitamente) mantém a intenção de deferir o significado de seus termos à sua comunidade lingüística original que é plausível pensar que, em casos como os de mudança lenta, o sujeito pode preservar o conteúdo de pensamentos passados, ainda que se encontre em um ambiente diferente daquele no qual expressou tal pensamento pela primeira vez.

É claro que nem todos os erros em casos de mudanças lentas necessariamente serão ‘empíricos’, no sentido acima. O exemplo original de Burge, do sujeito que, na situação atual, emprega o termo ‘artrite’ para uma dor na coxa, é claramente um caso de erro gramatical, e, justamente por isso, não pode ser corrigido por meio de uma ‘investigação empírica’ — nem tampouco por meio de uma ‘investigação empírica’ das práticas lingüísticas de nossa comunidade. O que preciso é aprender a gramática do termo em pauta, e isso é muito diferente. Por outro lado, em casos como esse, penso que Davidson (ibid.) tem razão ao afirmar que o erro do sujeito também não é um erro acerca do conteúdo de seus pensamentos — tanto que o sujeito pode explicitar esse conteúdo de um modo que todos nós compreenderemos o que ele estava pensando, e lhe atribuiremos um pensamento (ou, mais exatamente, uma crença) falso(a). Em todo caso, pace Davidson, não há um critério único e infalível para determinar o conteúdo das crenças do sujeito nessas situações.

Referencias:

LUDLOW, P.; MARTIN, N. (Ed.). Externalism and Self-Knowledge. Standford, California: CSLI Publications, 1998.
KRIPKE, S.
Naming and Necessity. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1972.

PUTNAM, H.
The Meaning of ‘Meaning’. In: Mind, Language, and Reality: Philosophical Papers, Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975. p. 215–271.

Links: Redacao e estilo, LaTeX, e Filosofia politica

Artigos do prof. Peter Smith:


Filosofia Politica:

Por fim, um manual sobre o uso da classe Memoir do LaTeX, boa para teses e artigos (em pdf):

terça-feira, outubro 25, 2005

Link de artigos online sobre externalismo (e outros assuntos)

Procurando artigos sobre externalismo no Google, encontrei uma compilacao muito boa de inumeros artigos online (Online Papers on Consciousness, Compiled by David Chalmers). O link para a pagina inicial eh:

http://consc.net/online.html

Na parte II tem varios classicos da discussao sobre externalismo, dentre outras coisas:

http://consc.net/online2.html#extself

E ai vai o link do Blog do Cesar, cuja ideia inspirou o presente Blog, que trata de assuntos muito proximos aos que ando estudando:

http://externalismo.blogspot.com

Texto sobre o pronome de primeira pessoa e a autoconsciencia na Intelectu

Aqui esta o primeiro (e por ora o unico) texto que publiquei sobre o assunto em pauta:

"Eu, eu mesmo e a autoconsciencia: Distinções entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoa" (Intelectu no 8 - Maio de 2003)

Pretendo utilizar esse texto como um ponto de partida para a primeira secao de minha tese. Reproduzo abaixo a introducao do mesmo, que diz o seguinte:

O objetivo geral deste texto será oferecer um breve balanço do debate protagonizado por alguns autores contemporâneos, respeitante ao tratamento de duas noções que, principalmente a partir da idade moderna, têm recebido um status muito importante dentre os vários temas investigados pela filosofia: as de sujeito (ou 'eu') e autoconsciência.

Para dar início a este estudo gostaria de introduzir algumas definições bastante comuns no tratamento destas noções, que deverão na sequência permanecer sempre em nosso horizonte de análise:

1. 'eu' é a palavra cada um de nós usa para falar de si mesmo;
2. autoconsciência é a consciência que um sujeito tem de si mesmo;
2.1. autoconsciência é um conhecimento ao qual o sujeito chega através de um processo de introspecção. Tal conhecimento é distinto do conhecimento dos objetos percebidos através de nossos sentidos, pois trata de um objeto (o sujeito) com certas características especiais.

A subsequente argumentação visa diagnosticar alguns dos principais problemas ou confusões filosóficas subjacentes às definições acima, e para tanto procederá do seguinte modo: na seção I apresentar-se-ão os principais argumentos de Elisabeth Anscombe e Anthony Kenny contra a definição (1); na seção II tratar-se-á da necessidade de auto-atribuições diretas de ações ou estados de consciência por parte de um sujeito para a posse de autoconsciência. Na seção III introduzir-se-á outro critério importante para a autoconsciência, que é uma função de nosso uso do pronome 'eu'. Na seção IV estabelecer-se-á a ligação existente entre auto-atribuições diretas e este último uso de 'eu', mostrando assim quais são as efetivas relações entre as noções de 'eu' e autoconsciência, e, consequentemente, a insatisfatoriedade da interpretação da definição (2) avançada em (2.1).

Vale salientar que minha presente opiniao eh a de que, apesar de a definicao (1) ser insuficiente para explicar a funcao do pronome de primeira pessoa em nossas praticas linguisticas, ela nao esta errada. De fato, penso que ela esgota a funcao semantica do `eu', mas o que ela nao faz eh contemplar a dimensao pragmatica de seu uso, que eh mais relevante ou fundamental do ponto de vista da compreensao da ligacao entre o uso desse pronome e a natureza da autoconsciencia.

Ideias para uma Introducao historica da tese: Wittgenstein vs. toda a historia da filosofia?

Anscombe, Malcolm e Hacker, defensores da leitura nao referencial do
pronome de primeira pessoa (ppp), apresentam a posicao de Wittgenstein
como sendo um contraponto a toda a tradicao filosofica, na medida em
que toda essa tradicao teria suposto a tese de que o ppp possui uma
funcao referencial. Segundo esses interpretes, Descartes pensava que o
ppp ('eu') faria referencia a uma substancia imaterial, distinta da
substancia corporea. Ja Hume nega que o ppp possa fazer referencia a
uma tal substancia, pois, dados seus compromissos empiristas, uma vez
que nao ha nenhuma `impressao' do `self', nao ha como se saber que
esse `self' seja o referente do ppp. Mas Hume continua aceitando a
tese referencial, na medida em que defende que o ppp refere a um
`feixe de percepcoes' (Tratado, Livro I, Secao VI). Reid parece sustentar nao apenas que `eu' eh referencial, mas que funciona como um `nome logicamente proprio' (no sentido que essa nocao possui em Russell, e no Tractatus de Wittgenstein).

Anthony Kenny, seguindo a linha de argumentacao de Elisabeth Anscombe, defende que muitas das confusoes presentes no tratamento filosófico da nocao de sujeito (the self) "é um exemplo de contra-senso dos filósofos produzido por um entendimento incorreto do pronome reflexivo" (Anthony Kenny, "The First Person", In: The Legacy of Wittgenstein, Basil Blackwell, Oxford, 1984, p. 81). Dado esse diagnostico, e natural esperar que um entendimento correto do pronome reflexivo possa elucidar o tratamento da nocao de sujeito, e eh justamente isso que, segundo esses interpretes, deve-se buscar na obra madura de Wittgenstein. Peter Hacker chega mesmo a afirmar em Insight and Illusion (1989) que Wittgenstein fornece uma "refutacao elegante e compreensiva do solipsismo e do idealismo" em sua "fase madura" (cf. p. 216). O locus classicus para essa "refutacao" seriam os paragrafos 398--410 das IF.

Parece-me, contudo, que Wittgenstein nao precisa negar a tese da referencialidade
--- o que seria extremamente contra-intuitivo --- para fornecer uma
alternativa em relacao ao tratamento tradicional do sujeito. O que eh
(talvez) inovador em sua filosofia eh a indicacao de que enunciados
`auto-atributivos' acerca de estados, eventos e /ou atitudes mentais,
feitos em primeira pessoa do singular, no presente do indicativo,
possuem um carater expressivo antes que descritivo. Mas para
explicar esse carater nao eh necessario negar a concepcao referencial. Discordo tambem que Wittgenstein forneca uma "refutacao" do solipsismo nos paragrafos 398--410. Mas a justificacao dessas opinioes sera tema para uma outra ocasiao.