terça-feira, novembro 29, 2005

A ``doutrina das ideias abstratas'' e a ``concepcao agostiniana da linguagem''

Ha um tempo atras escrevi um texto que poderia ser descrito, ecoando o titulo do livro de Henry Allison sobre o idealismo transcendental de Kant, de ``interpretacao e defesa'' do idealismo de Berkeley. Atraves de uma analise dos argumentos presentes no Tratado Sobre os Principios do Entendimento Humano (TP) e nos Tres Dialogos entre Hylas e Filonous (D), tentei mostrar que um dos principais objetivos de Berkeley ao defender seu "idealismo" foi barrar as ``conseqüências céticas'' acerca da confiabilidade de nossos sentidos, as quais derivariam da adoção de um determinado ideal de conhecimento modelado pela matemática e pela física matemática de seu tempo, que têm em Locke um de seus principais expoentes. Para tanto indiquei aqueles que, segundo Berkeley, teriam sido os três pilares sobre sobre os quais esse ceticismo estaria fundamentado, a saber: (i) a "doutrina das idéias abstratas", (ii) a "doutrina da matéria ou substância material", e (iii) a "suposição dos objetos externos" — i.e., a tese de que haveria "uma diferença entre coisas e idéias", sendo que as primeiras subsistiriam "fora do espírito ou impercebidas". Para esclarecer a critica de Berkeley a cada um desses pontos, alem da analise textual, tracei paralelos com os argumentos de Kant na Critica da Razao Pura, e de Wittgenstein nas Investigacoes Filosoficas. Agora, lendo o Blue Book (BB), fiquei ainda mais convencido da correcao do paralelo com este ultimo autor.

A meu ver, as consideracoes contidas no BB fornecem apoio ao paralelo nos tres casos apresentados acima (i--iii). Mas aqui gostaria de chamar atencao apenas para um caso, que eh o diagnostico de Berkeley acerca de como a "doutrina das idéias abstratas" estaria na origem do "ceticismo" que ele ataca. Cito a mim mesmo:

Desde o momento em que Berkeley começa a tratar desse tema, na Introdução do Tratado, ele deixa claro que o que pretende indicar, por meio da crítica às idéias abstratas, é um tipo de "abuso da linguagem" — abuso esse que seria a "origem principal da dúvida e da complexidade da especulação, como de erros e dificuldades inúmeras em todos os campos do conhecimento"1 . O "abuso" em questão nada mais é, na verdade, do que uma determinada compreensão filosófica do funcionamento da linguagem. A análise das seguintes passagens esclarece qual é o conteúdo dessa compreensão, e o modo como ela teria contribuído para o surgimento da doutrina das idéias abstratas:

Vejamos como as palavras contribuíram para este erro. Primeiro, pensa-se que cada nome deve ter um só significado definido ou preciso, que leva o homem a pensar que há certas idéias abstratas determinadas constitutivas da verdadeira e única significação de cada nome geral; e só por intermédio dessas idéias abstratas pode um nome geral significar uma coisa particular. (TP, Introdução, §18, p. 10)

Mas, para esclarecer como as palavras produziram a doutrina das idéias abstratas, observe-se que na opinião geral a linguagem só tem por fim comunicar idéias, e cada palavra significativa representa uma idéia. Sendo assim e sendo também certo que nomes considerados não inteiramente insignificativos nem sempre indicam idéias particulares concebeis, conclui-se imediatamente que eles representam noções abstratas. (TP, Introdução, §19, p. 10)


Nessas passagens Berkeley apresenta um análogo daquilo que Wittgenstein chamou de "concepção agostiniana da linguagem" 2 no contexto da "teoria das idéias". Essencialmente, segundo essa concepção, palavras são como nomes, e assim como nomes, sua única função é referir a algo — neste caso, dada a suposição da "teoria das idéias", este algo só pode ser uma idéia 3 . Ora, uma vez que há termos gerais, que não referem, obviamente, a nenhuma idéia particular, postula-se a existência de idéias abstratas para servirem de referente dessas palavras.
Tendo diagnosticado o modo como essa concepção "agostiniana" teria fundamentado a doutrina das idéias abstratas, Berkeley tratará de negá-la, mostrando que essa é uma imagem incorreta do funcionamento efetivo da linguagem. Seu argumento para esse fim tem dois estágios: primeiramente ele nos lembra que, mesmo nos casos em que palavras de fato funcionam como "nomes de idéias", não é condição necessária para a comunicação — nem mesmo para os "raciocínios mais estritos" — que elas "despertem na inteligência as idéias que devem representar"4 . Para mostrar isso Berkeley assinala que:

na leitura ou no discurso os nomes pela maior parte usam-se como as letras na álgebra, onde, embora cada quantidade particular seja representada por uma letra, não é preciso para proceder certo que em cada passo cada letra sugira ao pensamento a quantidade particular representada. (TP, Introdução, §19, p. 10)

O que essa analogia com as "letras na álgebra" pretende elucidar é o corriqueiro fenômeno lingüístico da deferência, ou remissão anafórica: do modo como nossas práticas lingüísticas efetivamente funcionam, podemos empregar palavras na comunicação — mesmo quando essas palavras funcionam como nomes para idéias — sem que necessariamente elas evoquem tais idéias nas mentes dos interlocutores, pois deferimos a referência dessas palavras às suas ocorrências iniciais no discurso, seja ele escrito ou falado.
O próximo passo de Berkeley consiste em lembrar que "a comunicação de idéias por palavras não é o fim principal ou único da linguagem"5 . "Há outros fins", continua ele, "como exaltar uma paixão, excitar ou combater uma ação, dar ao espírito uma disposição particular"6. Nesses últimos casos, ainda que inicialmente as palavras devam ter despertado as "idéias próprias para provocar aquelas emoções", ocorre freqüentemente que com o costume tais idéias sejam completamente suprimidas. Para mostrar isso Berkeley pergunta, retoricamente, se "Não podemos [...] ser afetados pela promessa de uma coisa boa, embora sem fazer idéia do que é? ", ou ainda se "Não pode a ameaça de um perigo bastar para causar pavor, embora ignoremos o mal que nos ameace nem formemos idéia de perigo em abstrato? "7 .
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[Notas: 1(TP, Introdução, §6, p. 6). 2(WITTGENSTEIN, 1976, cf. pp. 2--4, par. ŸŸ1--4). 3 Locke, por exemplo, assume claramente alguma espécie do que se poderia chamar de "teoria ideacional do significado", afirmando, por exemplo, que "o uso [...] das palavras é serem marcas sensíveis das idéias; e as idéias pelas quais elas ficam são sua significação própria e imediata." (LOCKE, 1952, p. 253, ŸIII.ii.1); ou ainda que "palavras, em sua significação imediata, são os signos sensíveis das idéias de quem as usa" (ibid. ŸIII.ii.2). 4(TP, Introdução, §19, p. 10). 5(TP, Introdução, §20, p. 10). 6Id. ibid. 7Id. ibid.]


No
Blue Book W. eh ainda mais claro no diagnostico das origens de certas confusoes filosoficas. Sobre as ``ideias abstratas'' (no caso dele, ``termos gerais'') ele afirma o seguinte:

Ha uma tendencia arraigada em nossas formas usuais de expressao, de pensar que um homem que aprendeu a compreender um termo geral, digamos, o termo ``folha'', veio desse modo a possuir um tipo de imagem de uma folha, como oposto a imagens de folhas particulares. Mostou-se a ele diferentes tipos de folhas quando ele aprendeu o significado do termo ``folha''; e mostrar a ele as folhas particulares era apenas um meio para o fim de produzir `nele' uma ideia que podemos imaginar como sendo algum tipo de imagem geral. [...] Estamos inclinados a pensar que a ideia geral de uma folha eh algo como uma imagem visual, mas uma que contem o que eh comum a todas as folhas. [...] Novamente isso se conecta com a ideia de que o significado de uma palavra eh uma imagem, ou uma coisa correlacionada com a palavra. (Isso grosseiramente significa que estamos olhando para as palavras como se elas fossem todas nomes proprios, e entao confundimos o possuidor do nome com o significado do nome).(pp. 17--18)

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Referencias

BERKELEY, G. Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano. In: Os Pensadores: Berkeley Hume. 2a. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 05–44. Tr. Antônio Sérgio.

BERKELEY, G. Três Diálogos entre Hylas e Filonous em Oposição aos Céticos e Ateus. In: Os Pensadores: Berkeley Hume. 2a. ed. S o Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 45–119. Tr. Antônio Sérgio.

LOCKE, J. An Essay Concerning Human Understanding. In: Great Books of the Western World: Locke, Berkeley, Hume. Chicago, London, Toronto, Genova: Britannica, 1952. p. 85–402.

WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Oxford: Basil Blackwell, 1976. Tr. G. E. M. Anscombe.

Wittgenstein e a natureza do `significado' no Blue Book

O Livro Azul (Blue Book --- abreviacao: BB) eh uma selecao de notas ditadas por Witgenstein aos seus alunos de Cambridge no periodo letivo de 1933-34, e eh assim chamado simplesmente porque o primeiro lote de copias possuia uma capa azul. Numa carta a Russell, junto com a qual W. enviou uma copia do BB, ele (W.) afirmou que tinha ditado essas notas aos seus pupilos ``para que tenham algo para levar para casa com eles, em suas maos se nao em seus cerebros''. O fato eh que esse livro apresenta a primeira tentativa sistematica de organizar os pensamentos da fase madura de W, antecipando muitos pontos que serao tratados depois, especialmente nas Investigacoes Filosoficas (IF). Dada a natureza informal e um pouco mais didatica dessa primeira apresentacao, ela serve como uma otima introducao ao estudo da filosofia madura de W.

O livro comeca com a (famigerada) questao ``O que eh o significado de uma palavra?" (p. 1) Em resposta a essa questao, W. faz uma observacao metodologica que sera crucial para sua filosofia dai por diante: ao inves de investigar diretamente a netureza do ``significado'', eh melhor tentar compreender como funciona uma explicacao de significado. Com isso trazemos a questao do significado "de volta para a terra'' ( down to earth), e, sobretudo, nos livramos da tentacao filosofica de buscar algum tipo de objeto que corresponda ao substantivo "significado" (claramente um adiantamento da critica `a ``concepcao agostiniana da linguagem'', que eh o tema inicial das IF).

W. afirma que explicacoes de significado podem ser grosseiramente divididas em duas especies: verbais e ostensivas (p. 1). Uma vez que definicoes verbais soh nos levam de uma expressao a outra, aparentemente ficamos mais proximos de compreender o significado investigando as explicacoes ostensivas. W. toma como exemplo para a analise dessas definicoes a ordem "Traga-me uma flor vermelha" (p. 3). A pergunta aqui eh como o sujeito pode cumprir essa ordem, uma vez que soh lhe damos uma palavra (`vermelho'). A sugestao que surge naturalmente eh que o sujeito possui um tipo de imagem mental da cor vermelha, e a compara com as flores ateh encontrar a certa. W. assume que isso de fato eh possivel, mas de modo algum necessario , uma vez que poderiamos ao inves disso imaginar que o sujeito simplesmente carrega consigo um cartao de amostras de cor (como aqueles que vemos em lojas de tintas), e compara a cor das flores com as cores impressas no cartao. E aqui temos (sem o uso explicito da expressao) a primeira aparicao de um ``jogo de linguagem'' inventado para clarificar nossas proprias praticas linguisticas. A vantagem de se imaginar isso eh que nos livramos da tentacao de pensar em ``processos mentais ocultos'' por tras do uso da inguagem. A tentacao eh a de analisar a linguagem como sendo composta de duas partes, uma ``inorganica'' (o manuseio de sinais) e uma ``organica'', que eh o entendimento desses sinais, seu significado, interpretacao, etc. (p. 3) Sem esse segundo elemento ``os sinais parecem nao ter vida'' (p. 4). W. esta de acordo com isso, mas sugere que devemos compreender essa "vida" dos sinais nao como sendo dada por um processo mental, e sim pelo uso dos mesmos (p. 4). Para tanto eh importante adotar o metodo de substituir o apelo a processos mentais ou feitos da imaginacao por atos de observar objetos externos reais em explicacoes de significado. Uma vez substituida a imagem mental do vermelho por uma amostra real, pintada no cartao, facilmente percebemos que essa mera imagem nao da vida alguma `a palavra `vermelho'. Ora, mas se eh assim, entao por que deveriamos pensar que a imagem mental o faria?

``O sinal (a frase) adquire seu significado do sistema de sinais, da linguagem `a qual pertence. Grosseiramente: compreender uma frase significa compreender uma linguagem'' (p. 5). Essa afirmacao de W. aponta um tanto obliquamente para algo que sera posteriormente melhor explicado, a saber, a natureza da compreensao gramatical, do conjunto de regras que governam o uso de nossas expressoes. Uma frase soh possui vida como parte do ``sistema da linguagem''. W. certamente nao tinha neste ponto uma compreensao cristalizada desse sistema como sendo parte constitutiva de uma ``forma de vida'', mas mesmo assim esta claramente tentando se afastar da concepcao agostiniana, de pensar em palavras como nomes que referem a algo (um objeto), e frases como meras combinacoes de nomes.

Referencia: The Blue and Brown Books (Harper Torchbooks, US / Basil Blackwell UK, 1960, segunda edicao)

terça-feira, novembro 22, 2005

Hacker: a `refutacao do solipsismo' de Wittgenstein

Ao final do cap. VIII de Insight and Illusion Hacker apresenta uma reconstrucao do argumento de Wittgenstein contra o solipsismo. Primeiramente, ele assinala tres formulacoes wittgensteinianas da tese essencial do solipsista ``em ordem de crescente atomicidade'' (p. 230):

  1. Toda vez que algo eh realmente visto, sou sempre eu que vejo;

  2. A unica realidade eh minha experiencia presente;

  3. Sempre que algo eh visto eh isto que eh visto (apontando para o campo visual do sujeito).

Segundo Hacker, ``a estrategia de Wittgenstein eh testar cada elemento individual dessas formulas para descobrir fraquezas, e em ultima instancia mostrar que o emprego daquele elemento pressupoe para sua inteligibilidade a existencia de um conjunto de condicoes que o solipsista repudia'' (ibid.). O paralelo com a estrategia kantiana nao eh mera coincidencia --- afinal, um dos objetivos originais do livro de Hacker era justamente aproximar as analises desses dois filosofos (Kant e W.).

Os``elementos individuais'' das formulas acima que serao analisados por Hacker sao, respectivamente, os 6 seguintes: (1) o termo `presente';(2) o pronome `eu'; (3) a natureza da `posse' do `isto' que eh experienciado; (4) a afirmacao de que eh sempre o sujeito que ve; (5) o sentido de `experiencia', e, por fim, o gesto ostensivo para o campo visual com o fim de indicar a `realidade'.

Segue um breve resumo da analise de cada um dos pontos.

(1) A condicao da temporalidade: o solipsista não traca contraste algum --- nem com o passado nem com ofuturo --- ao empregar o termo `presente'; no maximo esse termo parece ser redundante em sua explicacao. Empregando a metafora do projetor de filmes, W. afirma que nao faz sentido referir ao quadro que esta na lente do projetor como o quadro `presente' a nao ser que ele tenha `vizinhos', i.e., outros quadros o antecedem e o sucedem.

(Segue um paralelo com a Refutacao do Idealismo de Kant, e a necessidade de um permanente para determinar (temporalmente) as representacoes). (cf. pp. 230--231)

(2) Ascondicoes para a identidade pessoal: a quem o solipsista esta se referindo quando fala que ``sou sempre eu que vejo algo''? Nao ha nada dentro de seu campo visual que possa servir de ponte entre o que eh visto e uma pessoa ou sujeito--- ``Se isto eh o que ele ve, entao eh isso que tambem eh visto simpliciter. Como ele poderia apresentar a conexao entre o eu (self) unico e o que eh visto quando `a ideia de uma pessoa nao entra naquilo que eh visto' [?]'' (p. 232).

Uma das principais origens dessa confusao do solipsista reside na compreensao incorreta da gramatica dao pronome `eu'. No Blue Book W. distingue dois usos desse pronome --- o uso como objeto (e.g.,``eu quebrei meu braco'') e o uso como sujeito (e.g., ``euvejo x''). Este ultimo uso eh o que apresenta a imunidade a erro por identificacao incorreta do sujeito: quando emprego o pronome `eu' em frases como ``eu vejo x'', ``eu tenho dor de dente'', etc., nao posso predicar erroneamente essa visao, dor, etc., de mim mesmo--- como num caso em que, per impossibile, seria voce que ve x ou tem a dor que predico de mim mesmo. Mas essa impossibilidade de erro, NB, nao reside no acesso privilegiado ao sujeito da predicacao, e sim, simplesmente, no fato de que nao preciso identificar sujeito algum para fazer esse tipo de enunciacao.O solipsista erra ao inferir dessa nao necessidade de identificar uma pessoa que o `eu' deve referir a outro algo --- como,e.g., uma res cogitans cartesiana (p. 233).

(Nesse contexto Hacker propoe um paralelo com oargumento kantiano no terceiro Paralogismo, o da personalidade, noqual Kant indica o erro do racionalista ao inferir da unidade (formal) da autoconsciencia (apercepcao transcendental) a identidade numerica do sujeito (ou de sua alma, mente, etc.) atraves do tempo)(cf. p. 234)

Resumindo: o problema do solipsista eh que eh logicamente impossivel para ele ``saber o que ele significa por `eu', pois as condicoes sob as quais o uso de `eu' eh significativo sao desconsideradas ou negadas pelo solipsista. Com efeito, ele removeu seu uso de `eu' dos jogos de linguagem que fornecem-lhe um papel''(p. 238)

(3) A condicao da propriedade (ownership): o solipsista constroi seu argumento sobre a afirmacao de que ninguem pode ter a minha dor. Ao fazer isso ele confunde o tratamento da``mesmidade'' (sameness) de objetos e ``mesmidade'' de experiencias. No caso de objetos, podemos distinguir entre identidade qualitativa e identidade numerica: duas cadeiras podem ser qualitativamente identicas, mas numericamente distintas. Mas não fazemos essa distincao em outros casos, tais como, e.g., na identificacao de cores--- se ambas as cadeiras são pintadas com o mesmo tom de cinza entao elas possuem a mesma cor (não faz sentido falar que elas possuem apenas qualitativamente a mesma cor –cf. p. 238). Com pensamentos ocorre o mesmo que com cores: se dois sujeitos, A e B, pensam que p, entao eles dois tem o mesmo pensamento. Eh claro que podemos ter criterios de posse que permitam distinguir, e.g., entre a posse de um mesmo pensamento por parte de A e de B. Mas o solipsista confunde esses criterios de posse com criterios de identidade, i.e., criterios para determinar o proprio conteudo de pensamentos (cf. pp. 238—239).
[Por sinal, esse eh o problema de Strawson tambem ---
vide post anterior].

Na raiz da confusao do solipsista com relacao `a condicao de propriedade esta ``a tentacao de interpretar a gramatica dos verbos psicologicos de primeira pessoa no modelo da terceira pessoa, e de interpretar substantivos (nouns) psicologicos tais como `dor', `intencao',`sentimento' no modelo de nomes de objetos'' (p. 240)

(4) A condicao de continuidade: o solipsista pretende com o uso de`eu' fazer referencia a uma substancia, com algum tipo de identidade. Mas, dada sua falha em atentar para as circunstancias efetivas nas quais essa condicao eh cumprida em nossos jogos de linguagem (para o uso do pronome `eu'), ele acaba sendo levado a abandonar de vez o uso desse pronome. ``Ao inves de dizer `toda vez que algo eh visto, sou sempre eu que vejo isso', ele agora dira `toda vez que algo eh visto, algo sempre eh visto'. O que eh único eh a experiencia; o mundo eh ideia'' (p. 241).

(5) A condicao da experiencia: o solipsista sustenta que um predicado de experiencia pode ser significativo mesmo que sua atribuicao a outros seja inconcebivel --- como se o significado de tais predicados pudesse ser definido simplesmente por referencia `as experiencias do sujeito. Hacker aqui simplesmente assinala o locus classicus para o argumento deWittgenstein contra essa possibilidade, a saber, o famoso `argumento da linguagem privada' (que sera analisado detalhadamente apenas na sequencia do livro). (pp. 241—242)

(6) As condicoes dos gestos ostensivos: o movimento final do solipsista consiste em reformular sua posicao, indicando simplesmente que sempre que algo eh visto eh isto que eh visto (apontando para sei proprio campo visual). Mas esse gesto ostensivo na verdade não serve para pincar uma coisa em contraste com outra. ``O gesto de apontar do solipsista, assim como seu `momento presente', seu `eu', sua `propriedade', não tem vizinhos. Não esta dentro de um espaco, não eh a atualizacao de uma possibilidade entre outras'' (p. 242). ``Em suma, essas expressoes [demonstrativas] pressupoem a existencia de um espaco publico no qual os objetos são localizaveis e reidentificaveis por referencia a seu caminho espacial atraves do tempo'' (pp. 242—243) [mais uma vez, um pontokantiano-strawsoniano].

Hacker, e o desenvolvimento da posicao de Wittgenstein em relacao ao solipsismo

No cap. VIII de Insight and Illusion (referencia no post anterior), Hacker apresenta o desenvolvimento da posicao de Wittgenstein em relacao ao solipsismo, e o divide em tres fases principais.

Inicialmente, Wittgenstein sustentou um tipo de ``solipsismo transcendental'', ou ``schopenhaueriano'', o qual eh expresso especialmente nas proposicoes 5.6.x do Tractatus.

Posteriormente, em sua fase verificacionista (por volta de 1929), W. teria sido levado a um tipo de ``solipsismo metodologico'' --- similar `aquele professado por positivistas logicos, tais como Carnap --- que consiste em partir das experiencias privadas para dai "construir" ou inferir o "mundo externo" e as "outras mentes". Segundo essa concepcao, quando expresso um estado ou evento mental --- e.g., quando digo que "eu estou com dor de dente" --- o que faco eh comparar diretamente um conceito --- aqui, o de ``dor de dente'' --- com a realidade; para verificar essa proposicao nao preciso identificar nenhum proprietario da dor, ao contrario do que ocorre quando afirmo que "ele esta com dor de dente". A gramatica da dor exclui a possibilidade (logica) de outros sentirem minha dor. Nesse sentido, o conceito de "dor de dente" eh equivoco: ele tem um uso em proposicoes de primeira pessoa, e.g., as que descrevem "minha dor de dente" (nas quais, de fato, o possessivo "minha" torna-se redundante), e um outro uso no caso de uma proposicao em terceira pessoa. A diferenca no uso deriva da diferenca no metodo de verificacao dessas proposicoes --- no caso da primeira pessoa, ha uma verificacao direta , mas no caso da terceira pessoa ha necessidade de observacao do comportamento, e fazer inferencias, etc. De fato, dada essa diferenca de sentido, nem mesmo caberia chamar as frases que descrevem as dores de outrem de proposicoes (bona fide), devendo-se antes tratar delas como sendo hipoteses.

Na opiniao de Hacker, nessa fase vrificacionista W. teria dado um primeiro passo na direcao correta --- na medida em que mostrou que o erro do solipsista reside na confusao de um fato da gramatica (``Apenas eu posso sentir minha dor'') com uma necessidade metafisica --- mas depois teria tomado o caminho errado --- chegando `a teoria da nao-propriedade (no-ownership theory) (cf. p. 220). Segundo essa teoria, o uso do pronome `eu' em frases que exprimem estados mentais no tempo presente poderia ser abolido, e "eu tenho dor de dente" seria equivalente a "ha dor de dente".

Apenas nos escritos posteriores a 1933, a comecar pelo Blue Book, W. teria abandonado de vez esse solipsismo metodologico. Nessa ultima fase, W. afirma claramente que o problema do solipsista eh que ele parte de uma confusao gramatical, e, dando-se conta disso ou nao, recomenda uma forma diferente de representacao --- tomando a nossa forma efetiva como sendo inadequada para expressar a posicao especial do sujeito na linguagem. (cf. p. 228). A ``cura'' para o solipsismo consite numa apresentacao cuidadosa da gramatica para falar de estados e eventos mentais, e numa apresentacao cuidadosa dos erros da analise solipsista dessa gramatica.

Solipsismo, Idealismo e Realismo: raizes comuns

No cap. VIII de Insight and Illusion (Thoemes Press, England, 1997 --- reimpressao da edicao revisada e corrigida de 1989), Peter Hacker apresenta uma analise do que ele chama de ``processo pelo qual Wittgenstein gradualmente libertou-se da ilusao metafisica'' do solipsismo, levando por fim `a ``elegante e compreensiva refutacao do solipsismo na sua segunda fase'' (p. 216). Um dos momentos mais interessantes dessa analise eh a apresentacao da origem comum das doutrinas filosoficas do Solipsismo, Idealismo, e Realismo, na concepcao de Wittgenstein. Segue a traducao da passagem na qual Hacker apresenta esse ponto:

Solipsismo, Idealismo e Realismo, Wittgenstein afirmou, sao todos doutrinas metafisicas. O Solipsismo e o Idealismo, lutando futilmente para iluminar a essencia do mundo, para lancar luz sobre a natureza da realidade ou de nossa experiencia da mesma, propoem o que sao com efeito proposicoes gramaticais, i.e., regras de representacao, como se elas revelassem verdades essenciais sobre o que deve ser representado. Alem disso as proposicoes gramaticais que eles propoem enganadoramente nao sao, de forma geral, regras de nosso metodo de representacao. O Realismo concebe a si mesmo como a filosofia do senso comum, pretendendo defender as crencas do senso comum contra o desafio idealista e solipsista por meio de um argumento filosofico. Esse filosofo do senso comum esta, contudo, tao removido do entendimento do senso comum quanto o solipsista e o idealista (BB, p. 48). Nao eh tarefa da filosofia, argumentou Wittgenstein, defender opinioes verdadeiras ou falsas, mas clarificar conceitos e suas relacoes internas. A fortiori nao eh sua tarefa defender crencas do senso comum, mas clarificar o metodo de representacao em termos dos quais aquelas (e outras) crencas sao expressas. O realista tenta justificar nossa gramatica como se essas regras de representacao fossem verdades sobre o mundo. O solipsista e o idealista geram um problema. Seguramente, eles o compreendem mal, e a solucao que eles oferecem eh uma consequencia desse desentendimento. O realista nao resolve os problemas sobre os quais o solipsista e o idealista se debatem. Nao os compreendendo corretamente, ele os desconsidera. O solipsista nao compreende como outro poderia ter uma experiencia. A resposta ingenua do realista consiste em afirmar que nao ha dificuldade alguma aqui, uma vez que para outro ter uma experiencia eh para ele ter o que eu tenho quando tenho experiencia. Isso ele concebe como uma `resposta de senso comum' ao problema. Mas senso comum nao eh filosofia, e filosofia do senso comum eh mah filsosofia . A resposta realista-ingenua nem mesmo parece ver o ponto que o solipsista ve, a saber, que o `sentido interno' nao fornece umc riterio de identidade que poderia tornar inteligivel atribuir experiencias a outros. Aquela explicacao por meio da identidade que o realista ingenuamente sugere nao pode funcionar desse modo. O senso comum genuino, contudo, nao pode resolver dificuldades filosoficas. O senso comum responderia ao solipsista com questoes como `Por que voce nos diz isso se voce nao acredita que realmente ouvimos isso?' (BB, p. 58) ou, como o Dr. Johnson, chutaria uma pedra para refutar o idealismo. O senso comum esta fora de seu ambito quando se volta para a filosofia. A perplexidade do filosofo nao pode ser resolvida por nenhuma informacao que o senso comum possa produzir. (pp. 226--227 --- negrito adicionado)

quinta-feira, novembro 10, 2005

Ryle e o autoconhecimento

Estou relendo ``Self-Knowledge'', o classico artigo de Gilbert Ryle  (In: Self-Knowledge, Quassim Cassam (ed.), Oxford U.P., 1994). Nesse artigo Ryle critica a tese do acesso privilegiado aos conteudos mentais, assumindo uma concepcao behaviourista (comportamentalista) radical, que nega qualquer tipo de assimetria entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoa acerca dos conteudos desses estados mentais. Segundo Ryle, nao ha senao uma ``diferenca pratica'' (p. 22) ou ``de grau, mas nao de tipo'' (p. 29) entre essas perspectivas. No fundo, conhecer nossos proprios conteudos mentais e os conteudos mentais de outros sujeito requer um ``processo indutivo'' (p. 23), que parte da analise de nosso comportamento, e eh ``ordinariamente confiavel'' (ibid.).

Apesar de discordar completamente dessa analise comportamentalista, que a meu ver ``joga fora o bebe'' (da autoridade da primeira pessoa) ``junto com a agua suja do banho'' (o dualismo cartesiano), concordo sem restricoes com a seguinte conclusao (deixo em ingles mesmo para nao perder a beleza quase poetica da passagem com uma traducao descuidada):

No metaphysical Iron Curtain exists compelling us  to be for ever absolute strangers to one another, though ordinary circumstances, together with some deliberate management, serve to maintain a reasonable aloofness. Similarly no metaphysical looking-glass exists compelling us to be for ever completely disclosed and explained to ourselves, though from the everyday conduct of our sociable and unsociable lives we learn to be reasonably conversant with ourselves... (p. 31)

A meu ver essa poderia ser uma excelente epigrafe para o livro de Richard Moran, Authority and Estrangement (Princeton U.P., 2001), que apresenta uma explicacao muito mais sensata e equilibrada dos sucessos e inssucessos do auto-conhecimento --- o bebe fica limpinho, a agua suja do banho eh jogada fora.

Uma resposta griceana as observacoes de Wittgenstein sobre autoconhecimento de estados mentais

Segue uma parafrase, quase citacao literal, de algumas afirmacoes de Quassim Cassam na introducao do livro editado por ele, Self-Knowledge (Oxford U.P, 1994):

Tradicionalmente tem sido sustentado que os conteudos de nossos estados mentais sao peculiarmente transparentes para nos. Isso pode levar `a tese do acesso privilegiado a esses conteudos, que por sua vez pode levar tambem `a tese da incorrigibilidade de enunciados em primeira pessoa no presente do indicativo (enunciados-pp) que os expressam.

Para Wittgenstein, a incorrigibilidade dos enunciados-pp poe em questao a priopria ideia de que o sujeito possa ter conhecimento desses estados --- pois soh faz sentido falar em conhecimento se faz sentido falar em duvida.

Isso convida a uma resposta inspirada em H. P. Grice, segundo a qual ha possibilidade de erro, mas que essa possibilidade eh implicada pragmaticamente pelas reivindicacoes (claims) ao conhecimento; nao se trata de uma condicao necessaria para a verdade literal de tais reivindicacoes. (p. 15).

Sempre me pareceu interessante aplicar as consideracoes griceanas  nesse contexto, confrontando-as com essa tese wittgensteiniana. Fico feliz em saber que nao sou o unico que pensa assim. Mas essa tambem eh uma tarefa para o futuro.

terça-feira, novembro 08, 2005

Anscombe contra o dualismo de Kripke

Ha textos que podem ser lidos dezenas de vezes, por anos a fio, e a cada releitura apresentam-nos novas ideias e insights. Esse eh o caso do artigo "The First Person", de Elisabeth Anscombe (Reimpresso em Self-Knowledge, Quassim Cassam (ed.), Oxford U.P., Oxford, 1994 --- original de 1975). Ha mais de 4 anos venho retomando a leitura de uma copia desse texto. Estou fazendo isso agora, para escrever o esboco do cap. 1 de minha tese. Um argumento em especial nunca tinha me interessado muito (possivelmente por nao conhecer o alvo de sua critica): trata-se de uma critica, sugerida de passagem logo no inicio do artigo, contra a tentativa de Kripke de reestabelecer o dualismo cartesiano, provando a tese da nao-identidade de Descartes com seu proprio corpo. (Cf. Naming and Necessity, p. 144 ss.). O problema do argumento de Kripke, segundo Anscombe, eh que ele negligencia o carater essencialmente de primeira pessoa do argumento original de Descartes. Segundo essa autora:

[...] parece claro que o argumento de Descartes [em prol do dualismo] depende dos resultados da aplicacao do metodo da duvida. Mas por meio desse metodo Descartes deve ter duvidado da existencia do homem Descartes: de qualquer forma daquela figura no mundo de seu tempo, aquele frances, nascido em tal e tal lugar e batizado de Rene; mas alem disso, mesmo do homem --- a nao ser que um homem nao seja uma especie de animal.Se , entao, a nao-identidade dele com seu proprio corpo segue-se de seus pontos de partida, entao igualmente segue-se a nao-identidade dele mesmo com o homem Descartes. `Eu nao sou Descartes' seria uma conclusao tao valida quanto `eu nao sou um corpo'. Formular o argumento na terceira pessoa, substituindo `eu' por `Descartes', eh perder isso. Descartes poderia ter aceitado essa conclusao. Aquele sentido mundano, pratico, corriqueiro no qual teria sido correto para ele dizer `eu sou Descartes' nao tinha relevancia para ele nesses argumentos. Aquilo que era nomeado por `eu' --- aquilo, em  seu livro, nao era Descartes. (pp. 140--141)


O mais interessante eh a explicacao para a possibilidade dessa conclusao. Se a nao identidade em pauta fosse de Descartes com Descartes, entao claramente teriamos uma reducao ao absurdo de sua posicao. Mas a nao identidade relevante deve ser entre entre Descartes e ele mesmo --- ou, para dar um exemplo em primeira pessoa, que seria o mais adequado, entre J.T. e eu mesmo. Essa nao identidade eh possivel devido ao uso peculiar do pronome reflexivo nela constante --- o que Anscombe chama, seguindo um uso da gramatica inglesa, de `reflexivo indireto', ou seja, um pronome reflexivo empregado na fala indireta (voz passiva, oratio obliqua). Ao contrario do uso ordinario do pronome reflexivo --- o qual pode ser sempre substituido, salva significatione e salva veritate, pelo nome proprio do sujeito --- o uso indireto deve ser sempre ``explicado em termos de `eu'''. Anscombe esclarece esse uso por meio do uso de exemplos. Meu exemplo preferido eh o de um sujeito que leva uma pancada na cabeca, desmaia, e acorda pensando (e podendo dizer): ``Eu sou Napoleao Bonaparte''. Nesse caso, o sujeito erra completamente a identidade do sujeito ao qual o pronome de primeira pessoa deveria fazer referencia, sem, contudo, deixar de empregar o pronome em pauta de maneira gramaticalmente correta. Conclusao: o uso do pronome de primeira pessoa, em tais casos, eh compativel com ignorancia da identidade do objeto referido (de fato, Asncombe ira mais longe, e argumentara que essas e outras caracteristicas do uso de `eu' provam que esse pronome nao possui funcao referencial alguma, mas me abstenho desse debate aqui).

Dada essa breve analise, considere a seguinte definicao (referencial) para o uso do pronome de primeira pessoa:

DR: `eu' eh a palavra que cada um de nos usa para falar de si mesmo.

Qual eh o problema com essa definicao, prima facie tao plausivel e intuitiva? Primeiramente, dados os dois usos do pronome reflexivo mencionados acima, DR eh ambigua. Se o uso de `si mesmo' for o ordinario (substituivel pelo nome proprio), entao a definicao nao esta correta, nao da conta de todos os casos --- pois ha casos, como aqueles do sujeito que acorda da pancada, na qual ele nao eh capaz de `falar de si mesmo' nesse sentido ordinario. Claro, ele eh capaz de `falar de si mesmo' num outro sentido (o indireto). Entao imaginemos que a definicao empregue o uso indireto. Nesse caso, argumenta Anscombe, a definicao se torna circular --- ela nao nos diz absolutamente nada, e equivale a algo como

DR' : `eu' eh a palavra que cada um de nos usa para falar sobre eu.

Talvez os fregeanos de plantao preferiram a explicacao que Anscombe da na sequencia.  Imagine que alguem proponha definir `eu' como o termo que alguem usa para falar intencionalmente ou autocoenscientemente de si mesmo. Afnal, ao falar de si mesmo, Smith nao esta falando intencionalmente de Smith?

Pode-se dizer: `Nao no sentido relevante. Todos sabemos que nao se pode substituir qualquer designacao do objeto que ele tencionava falar sobre e manter o enunciado sobre sua intencao verdadeiro'. Mas isso nao eh resposta a menos que o pronome reflexivo ele mesmo fosse indicacao suficiente do modo no qual o objeto eh especificado. E isso eh algo que o pronome reflexivo ordinario nao pode ser. Considere: `Smith da-se por conta (falha em dar-se por conta) da identidade de um objeto que ele chama ``Smith'' consigo mesmo'. Se o pronome reflexivo eh o ordinario, entao ele especifica para nos falantes que ouvimos a frase, um objeto cuja identidade com o objeto que ele chama `Smith'' Smith da-se por conta ou nao. Mas isso nao nos diz que identidade Smith da-se por conta (ou falha em dar-se por conta). Pois, como defendeu Frege, nao ha caminho de volta da referencia para o sentido ; qualquer objeto tem muitos modos de ser especificado, e nesse caso, dada a peculiaridade da construcao, conseguimos especificar um objeto (por meio do sujeito de nossa frase) sem especificar qualquer concepcao na qual a mente de Smith deveria esbarrar (latch on to) . Pois nao queremos dizer que `Smith nao deu-se por conta da identidade de Smith com Smith. / Soh precisamos admitir uma falha na especificacao da identidade pretendida se persistirmos em tratar o reflexivo em `Ele nao deu-se por conta de sua identidade consigo mesmo' como o ordinario. Na pratica nao temos dificuldade alguma aqui. Sabemos o que Smith nao se da por conta. Eh: `eu sou Smith'. Mas se eh assim que compreendemos o reflexivo, ele nao eh o ordinario. Eh um [reflexivo] especial que soh pode ser explicado em termos da primeira pessoa. (p. 142, negritos adicionados por mim)

Fico por aqui. Tarefa para mim mesmo: ligar essa analise com a de John Perry, do indexical essencial, e com a de Kaplan, dos demonstrativos puros.

segunda-feira, novembro 07, 2005

Schulte: Wittgenstein, pato-coelho, percepcao de aspectos, e expressividade

Um dos livros mais interessantes que andei lendo ultimamente sobre a filosofia madura de Wittgenstein eh Experience and Expression, de Joachim Schulte (Oxford U.P., Oxford, 1995). Uma das grandes sacadas do autor, a meu ver, foi ligar o tratamento da `percerpcao de aspectos' --- exemplificado pelo caso da experiencia da imagem do pato-coelho, ora vista como pato, ora como coelho --- com o a discussao sobre o uso expressivo, por contraposicao ao uso descritivo, de alguns enunciados de nossa linguagem. Segundo Schulte, eh apenas porque supomos que enunciados `auto-atributivos' servem para descrever nossas experiencias que somos levados a ``teorizar'', e a buscar uma ``ocorrencia interna'' distintiva em cada situacao (i.e., naquela em que vemos a figura como pato, ou naquela que a vemos como coelho) (p. 55). Dada essa suposicao, eh natural cair na ilusao de tentar isolar dois ``elementos'' dessas experiencias, um puramente sensivel, outro puramente intelectual, e pensar num tipo de processo de ``interpretacao'' do ``dado bruto'' recebido em nossa sensibilidade (que seria o mesmo em ambas as situacoes perceptuais). Contra essa ilusao, Schulte propoe uma analise dos enunciados empregados para expressar percepcao de aspectos (e.g., `Estou vendo essa figura como um pato / como um coelho'), nao omo uma descricao indireta de uma experiencia, mas como uma ` utterance', o que para os presentes fins pode ser traduzido como `expressao (imediata)':

Na visao de Wittgenstein a ideia de que uma expressao ( utterance) da frase `Agora estou vendo isso como um coelho' eh uma descricao de uma experiencia eh devida a uma ilusao similar `aquela que nos faz crer que a queixa `Estou com dor' eh a descricao de uma experiencia e nao sua expressao( utterance). (p. 56)

Na sequencia Schulte ainda faz interessantes observacoes sobre a metodologia empregada por Wittgenstein para tratar de assuntos dificeis como esse. Ao inves de continuar perguntando as mesmas coisas --- como ateh que ponto minha experiencia da figura como x eh fruto de interpretacao, pensamento, etc. --- Wittgenstein toma rotas paralelas (p. 58) e formula questos distintas, partindo de novos pontos de vista sobre o problema. Assim, W. deixa de tentar analisar a experiencia ``internamente'' (p. 60), e passa a considera-la do ponto de vista da terceira pessoa. O novo exemplo apresentado eh o de uma situacao na qual estou caminhando com um amigo, quando repentinamente um coelho atravessa nosso caminho. Eu percebo imediatamente que se trata de um coelho, mas meu amigo nao. De fato, sem saber de que bixo se trata, ele tem certas dificuldades para descrever sua experiencia, e pode ate mesmo recorrer mais a gestos ou desenhos do que a palavras. Temos aqui as mesmas caracteristicas presentes no primeiro exemplo: o proprio objeto percebido nao eh diferente para cada sujeito envolvido, tudo o que muda eh a maneira de expressar a experiencia em cada caso. ``Uma pessoa faz um enunciado simples enquanto a outra expressa sua surpresa, sua atencao, e sua consideracao concentrada do objeto em questao, suas tentativas de interpretar e entender o que ele ve'' (ibid.). Mais uma vez, a inclinacao eh isolar um elemento sensivel e um intelectual, e pensar na diferenca como sendo uma diferenca de interpretacao. Mas a grande vantagem da reapresentacao do caso eh que agora ha criterios intersubjetivos mais facilmente disponiveis para tratar do conteudo da experiencia. A sugestao eh de que devemos buscar tais criterios nas diferencas das ``reacoes das pessoas em relacao ao que elas veem e nas consequencias de ver isso para a reproducao daquilo que foi visto'' (p. 62).

Para clarificar o ponto, mais uma vez, Wittgenstein varia o exemplo: ``Olho para um animal numa gaiola. Perguntam-me: `O que voce ve?' Eu respondo: `Um coelho'. --- Eu estou passeando no campo; rapidamente um coelho atravessa a estrada. Eu exclamo `Um coelho!''' (p. 61). W. analisa esse exemplo propondo um paralelo com o caso da expressao de dor:

Embora `ambas as coisas, tanto o relato quanto a exclamacao, possam ser chamadas expressoes de percepcao e de experiencia visual', nao eh menos verdadeiro que `a exclamacao o eh num sentido diferente do relato; ela [a exclamacao] se impoe sobre nos. Ela se relaciona com a experiencia assim como um grito [de dor] se relaciona com a dor' (p. 62 --- o que esta entre aspas simples eh citacao de WIttgenstein)

O que importa nessa analise eh indicar um ponto no qual simplesmente nao cabe a ideia de uma ``interpretacao'' daquilo que se esta experienciando. O fato de eu perceber uma imagem ou bem como coelho, ou bem como pato, dependendo do caso, eh um tipo de ``fato bruto'', que foge a qualquer tipo de teorizacao --- fato esse que, como tal, pode ser expresso, e nao necessariamente ser descrito por um sujeito --- assim como a dor que ele sente pode ser (mas nao necessariamente sempre sera) simplesmente expressa, e nao descrita. Aanalise filosofica aqui alcanca seu limite ao apontar para a possibilidade de diferentes reacoes naturais em relacao a algo que esta em nosso campo perpceptual, reacoes essas que sao espelhadas num contexto mais amplo de uso de determinadas expressoes ou mesmo de determinadas acoes e gestos dentro de um jogo de linguagem. Essas reacoes sao o ponto de partida sobre o qual nossa linguagem eh fundamentada, ``o ponto de interseccao entre acao e fala, entre conduzir e usar a linguagem'', para fazer uso de uma expressao de Schulte num outro contexto (p. 18). Justamente por isso a indicacao dessa interseccao eh o ponto mais profundo ao qual uma analise filosofica pode chegar. Tentar ir para alem desse ponto seria tentar buscar uma justificacao para nossa forma de representacao, para nossa gramatica, para nosso `jogo de inguagem'. Mas um jogo de linguagem, nos lembra W. em Sobre a Certeza, ``nao eh baseado sobre fundamento algum. Ele nao eh razoavel (ou irrazoavel). / Ele esta ai --- como nossa vida''. ( OC par. 559). A licao metodologica aqui eh a de que nao ha uma receita unica e simples para analisar essas experiencias --- e tambem nao ha necessidade de se buscar uma. Tentar categorizar o fenomeno da percepcao de aspectos empregando as distincoes psicologicas/filosoficas tradicionais (sensivel/inteligivel, etc.) eh um erro, fruto da atitude igualmente errada de se descontextualizar e `desumanizar' as frases e reacoes de um sujeito em relacao ao seu ambiente do ambito mais amplo das praticas linguisticas, dos `jogos de linguagem' nas quais esses `lances' estao inseridos, e adquirem seu sentido.

quinta-feira, novembro 03, 2005

Strawson e o conceito de ‘pessoa’ II --- Apreciacao critica

A meu ver, o capítulo 3 de Individuals tem 2 pontos altos: (i) a critica contra a posição da 'não-propriedade' (que tambem seria um tipo de dualismo), e (ii) o diagnostico do erro fundamental das posições dualistas: querer isolar 'mente' e 'corpo' e buscar critérios completamente independentes de aplicação para os predicados de cada uma destas esferas. Mas há pelo menos dois pontos que merecem um exame mais crítico, pois apontam para duas suposicoes fundamentais da análise strawsoniana que me parecem problematicas: a tese da 'intransferibilidade lógica da posse' de certos estados mentais, que aponta para o carater empirista da metafísica strawsoniana, e a alegação de que usos de sentenças em primeira e terceira pessoa têm uma mesma função em nossas práticas linguísticas, que aponta para a tese da prioridade do discurso em terceira pessoa para a objetividade dos enunciados linguísticos.

Quanto ao primeiro ponto, cabe dizer que o tom utilizado por Strawson para falar da dependência 'lógica' dos particulares privados em relacao `a pessoa eh muito mais causal do que lógico, e a `dependência' que parece relevante é da 'posse' num sentido muito físico do termo, como se a 'pessoa' fosse um tipo de receptáculo causal de tais particulares. Mas, mesmo concedendo que o interesse de Strawson seja mesmo o de indicar a prioridade lógica da `pessoa' para a identidade dos particulares privados, poder-se-ia atacar a posição strawsoniana a partir de uma perspectiva wittgensteiniana, segundo a qual a identidade de `particulares mentais' – como dores, sentimentos, etc. – possui uma natureza completamente diferente da identidade de particulares físicos. No caso de estados mentais, segundo essa perspectiva, nao faz sentido -- ao contrario do caso dos particulares fisicos -- distinguir entre identidade qualitativa e numérica, e, consequentemente, não ha necessidade de se buscar critérios de identidade numérica dependentes da posse por uma pessoa.

Sobre o segundo ponto, concordo com Strawson quando ele diz que predicados empregados para a atribuição de `particulares privados' devem ter um mesmo sentido tanto em auto-atribuições quanto em atribuições em terceira pessoa. Conseqüentemente, concordo com a importância e pertinência de se falar em critérios comportamentais, bem como de se dizer que aprender a usar um tal predicado é aprender a usá-lo nesses dois casos. Mas o problema reside na explicação dada por ele para esse uso, que parece assimilar a objetividade dos enunciados auto-atributivos (em primeira pessoa) à objetividade dos enunciados atributivos em terceira pessoa – como se a objetividade dos enunciados auto-atributivos devesse depender, de alguma forma indireta – que não é fácil entender extatamente qual é -- das atribuicoes em terceira pessoa. Colocando ponto de outra forma: Strawson deseja escapar dos problemas do solipsismo, buscando, para tanto, elucidar o funcionamento ordinário de nossos conceitos. Mas nessa busca ele acaba negando a legitimidade de se usar uma perspectiva na qual há prioridade do `subjetivo', negando a propria autoridade da primeira pessoa em certos contextos linguísticos. É como se o problema do solispismo só pudesse ser resolvido extraindo de nosso esquema a esfera perspectiva da primeira pessoa em relacao a seus proprios estados mentais, substituindo-a pela perspectiva da terceira pessoa, e pelos critérios intersubjetivos empregados na comunidade linguística.

A intenção de Strawson com essa manobra é salvar algo realmente muito importante em nosso esquema conceitual – a manutenção de um mesmo sentido pelos predicados em usos auto-atributivos e "outro-atributivos". Mas ele pensa que para salvar isso os próprios enunciados que fazem uso de tais predicados devem possuir um mesmo sentido, uma mesma função em nossa linguagem – que eh a de descrever estados mentais -- independentemente de serem feitos em primeira ou terceira pessoa. E, para garantir um mesmo sentido a esses dois tipos de enunciado, é necessário que os pronomes de primeira e terceira pessoa tenham uma mesma função, que é, segundo Strawson, de denotar a pessoa à qual o enunciado refere. (De fato, nessa explicação de Strawson parace estar implicita a concepcao que Wittgenstein denomina de "agostiniana" da linguagem).

Neste ponto pode-se indicar a ligacao entre a análise lógica dos enunciados de atribuição de experiências com a metafísica dos particulares mentais de Strawson: para conseguir mostrar que enunciados em primeira e terceira pessoa tem um mesmo sentido, ele acaba sendo obrigado a dar um sentido muito "estranho" aos predicados utilizados em tais enunciados, como se o conceito de 'dor x' referisse tanto à dor x particular que eu tenho, e à dor x particular que tu tens, e que são, portanto, numericamente distintas mas qualitativamente idênticas. Dessa forma, nosso conceito de 'dor X' compreenderia sob si, nas próprias palavras de Strawson, "o que é sentido, mas não observado, por X, e o que pode ser observado, mas não sentido, por outros que X" (p. 109) , garantindo assim uma linguagem objetiva, não solipsista, que não dê significados subjetivos e talvez incognoscíveis por outros para os predicados. Se, pelo contrário, Strawson tomasse tais predicados como não tendo que fazer referência a particular algum, e simplesmente tendo uma certa função peculiar nas nossas práticas linguísticas,  a questão do solipsismo poderia ser resolvida (ou descartada) de um modo muito mais adequado. Não ha necessidade de se distinguir entre dois sentidos para os predicados em questao (dependendo do uso ser feito em primeira ou terceira pessoa); o que teria um outro sentido – i. e. outra função em nossa linguagem – seriam os próprios enunciados de primeira pessoa, que fizessem uso de tais predicados. Esses enunciados não são enunciados descritivos, mas sim enunciados expressivos, que fornecem criterios (ainda que faliveis) para que os outros sujeitos atribuam e descrevam meus estados mentais.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Strawson e o conceito de ‘pessoa’ I --- Reconstrucao do argumento

O capítulo 3 de Individuals versa sobre o que Strawson denomina de 'questões do solispsismo', i.e., quais são as condições para distinguirmos entre, de um lado, nós e nossos estados de consciência, e, de outro, tudo o que não é nós mesmos ou nossos estados de consciência. Em jargao strawsoniano, o problema eh o de estabelecer as condições de uso para o conceito de `sujeito de experiência' em nosso esquema conceitual.

Visando determinar quais são essas condições, Strawson comeca analisando um esquema conceitual alternativo, o do mundo puramente audível, apresentado no capítulo 2. Strawson pergunta como poderia um som, que é um item dentro da experiência, ser também o sujeito de tal experiência, e como ele poderia estabelecer um contraste entre ele mesmo e os (demais) sons que ele experimenta. Tal procedimento visa introduzir certa "estranheza" com respeito a algo que é o caso mesmo em nosso esquema – a possibilidade de um item dentro da experiência ser também algo que tem experiências. Para investigar essa possibilidade Strawson parte das seguintes questões: (i) por que atribuímos estados de consciência a algo – e não, e.g., simplesmente dizemos que eles existem "por aí", como ``feixes de impressões'' – e mais, (ii) por que atribuir tais estados exatamente à mesma coisa da qual dizemos ter características físicas (espaco-temporais)?

A primeira tentativa de resposta consiste em atentar para o caráter único e fundamental que nosso corpo
tem na produção de nossas experiências e estados de consciência (principalmente os estados perceptivos). Apesar de ser um fato contingente que um só corpo tenha tal função, é realmente um fato crucial para nós. O problema eh que atentar para esse papel fundamental de nosso corpo ainda não responde as perguntas acima. Em primeiro lugar, isso não fornece um motivo para o fato de que tenhamos que atribuir experiências a algo (simpliciter) ao inves de nada. E mesmo se essa questao pudesse ser respondida, e o melhor candidato a possuidor de experiências fosse mesmo nosso corpo --- devido ao papel causal desse corpo na produção das experiencias relevantes --- tal resposta ainda não explicaria por que nós atribuímos características físicas e mentais a exatamente a mesma coisa (dizemos tanto que 'eu estou ferido' quanto que 'eu estou triste'), ao inves de, por exemplo, dizer que o que possui características físicas é um corpo que fica numa relação causal privilegiada com nossos estados mentais.

Essas considerações apontam para algo que Strawson estabelecerá mais adiante: a primitividade, em nosso esquema conceitual, do conceito de 'pessoa', em relação aos conceitos derivados de 'mente' e 'corpo'. A sugestao eh a de que estados mentais dependem, para o estabelecimento de sua identidade, da relação – de posse, por suposto – com um particular primitivo, a 'pessoa'. A primitividade desse particular eh o que fornece o rationale para nossa pratica de atribuir estados de consciência a algo antes que a nada. Já a pergunta sobre por que atribuir estados de consciência à mesma coisa à qual atribuímos características físicas, não é exatamente respondida dada a primitividade do conceito de 'pessoa', mas é mostra-se sem sentido, pois resulta da suposicao tacita de que os conceitos de 'mente' e 'corpo' sao independentes e primitivos em relação ao conceito de 'pessoa'.

O interessante eh que, segundo o diagnostico de Strawson, essa desatenção à primitividade do conceito de 'pessoa' estaria implícita não apenas na posição dualista cartesiana, mas também no que ele denomina de posição da 'não-propriedade' (no-ownership), que ele
atribui a Wittgenstein e a Schlick --- i.e., a posicao que nega que haja um sentido para atribuições de estados mentais a algo, posto que não haveria 'transferibilidade lógica da posse' de estados mentais; grosseiramente, se esses estados não podem ser transferidos, entao eles tambem não podem ser possuídos. Segundo Strawson, essa ultima posicao seria também um tipo de dualismo --- não um dualismo ebtre entre dois sujeitos (uma mente e um corpo), mas sim entre um sujeito e um não sujeito. O dualismo surge, tanto neste caso como no de Descartes, devido `a desatencao da prioridade lógica do conceito de 'pessoa', que leva a buscar critérios distintos e independentes para atribuição de estados mentais e físicos --- critérios estes que Descartes pensaria ter encontrado, enquanto que os partidários da 'não-propriedade' pensariam só os terem encontrado para o caso de propriedades físicas; ora, uma vez que esses ultimos seriam mais "honestos" ;-) quer os cartesianos, eles seriam levados a negar a propria existência de estados mentais qua particulares passíveis de qualquer posse ou atribuição.

O que estas duas posições ``dualistas'' não observariam é que há bons critérios para se atribuir estados de consciência, não para egos, mas para pessoas, e que sao esses mesmos critérios que excluem a `transferibilidade lógica da posse' de tais estados. A falha fundamental do sualismo seria não atentar para o fato de que é condição para que possamos atribuir estados de consciência a nós mesmos que possamos atribuí-los também a outros, i.e., o sentido dos predicados utilizados na atribuição de estados de consciência só é compreendido atentando para os dois aspectos de seu uso: em primeira e em terceira pessoa. Os critérios de que fala Strawson são comportamentais – é observando outros sujeitos que posso dizer deles que estão nesse ou naquele estado mental.

Dada essa analise, o que ainda poderia incomodar um filósofo é o fato de que nem sempre temos que observar nosso próprio comportamento para dizer de nós mesmos que estamos no estado mental X --- o que implicaria que o sentido do predicado não seria o mesmo nos casos de atribuição em primeira e terceira pessoa. Como poderia o sentido ser o mesmo, se os critérios de verificação são tão distintos? Esta pergunta, segundo Strawson, equivale à questão sobre 'como é possível o conceito de 'pessoa'?'. Ou seja, entender satisfatoriamente o papel desse conceito em nosso esquema conceitual implica estar consciente de um fato bastante geral sobre tal esquema: que nós vivemos em uma comunidade de seres humanos, todos com uma certa natureza comum. É por isso que podemos, entre outras coisas, interpretar movimentos de um corpo humano como ações, i.e., como um movimento imerso em um contexto de intenções. Isso significa, para Strawson, simplesmente que

nós vemos [os movimentos dos outros seres humanos] como movimentos de indivíduos de um tipo ao qual também pertence aquele indivíduo cujos movimentos futuros e presentes nós sabemos sem observação [i.e., nós mesmos]; isso quer dizer que nós vemos os outros como auto-atribuidores, não na base de observação, do que nós atribuímos a eles com esta base. (p. 112)

Entender um predicado mental do tipo em questão é entender que ele cobre tanto o que é sentido mas não observado por mim, quanto o que é observado mas não sentido pelos outros. O sentido destes predicados contém estes dois aspectos ao mesmo tempo, e por isso, os predicados não seriam equívocos.

terça-feira, novembro 01, 2005

David Kaplan --- Demonstratives II: Contextos de uso vs. Circunstancias de avaliacao

Kaplan sugere que devemos fazer uma distincao clara entre:
  1. contextos de uso; e
  2. circunstancias de avaliacao.
Todo contexto de uso possui um agente (falante), e isso implica que uma regra de designacao ( RD) para um termo diretamente referencial deveria ser:

(RD): Em todo contexto possivel de uso o dado termo refere ao agente do contexto.

Mas RD nao pode ser usada para fornecer um objeto relevante a cada circunstancia de avaliacao , pois essas, em geral, nao possuem agentes. Assim, suponhamos que eu diga:

Eu nao existo.

Sob que circunstancias, pergunta Kaplan, poderia isso que eu disse ser verdadeiro? Uma boa resposta seria: em circunstancias nas quais nao houvesse agentes (p. 495). Mas parece um contrasenso afirmar que a frase acima seria verdadeira sse o falante da circunstancia nao existe na circunstancia. Se essa fosse a analise correta, seguir-se-ia que:

Eh impossivel que eu nao exista. (p. 498)

A licao aqui eh que, apesar de indexicais possuirem um `conteudo descritivo', esse conteudo eh relevante apenas para determinar um referente num contexto de uso, e nao para determinar um individuo relevante numa circunstancia de avaliacao . Kaplan apresenta explicitamente essa conclusao na sequencia, quando afirma que a analise anterior deveria ter estabelecido o seguinte:

(T1) O significado descritivo de um indexical puro determina o referente do indexical com respeito a um contexto de uso mas ou eh inaplicavel ou irrelevante para determinar um referente com respeito a uma circunstancia de avaliacao.

E seria por essa razao que a seguinte tese (que nao passa de uma versao mais elaborada do Principio 2) obteria suporte:

(T2) Quando o que foi dito ao usar um indexical puro num contexto c deve ser avaliado com respeito a uma circunstancia arbitraria, o objeto relevante eh sempre o referente do indexical com respeito ao contexto c. (p. 500)