sexta-feira, abril 07, 2006

Como interpretar um clássico?

CRENÇA E CAUSALIDADE:

Aparentemente é difícil fugir da necessidade de percorrer um certo círculo na apresentação dos argumentos de um clássico filosófico. Por um lado, a importância da compreensão do programa, objetivos e metodologia gerais de um autor para a interpretação de qualquer argumento específico contido em sua(s) obra(s) é inegável -- afinal, a distância histórica que nos separa dessas obras torna muito difícil a compreensão do vocabulário e do contexto filosófico no qual estão inseridas. Por outro lado, como poderíamos alcançar uma compreensão geral do programa, sem recorrer aos próprios argumentos que visam levá-lo a cabo?

Diante de um tal problema parece-me que apenas duas atitudes são possíveis. A primeira é a tentativa de quebrar o círculo em questão fornecendo um estudo histórico que apresente satisfatoriamente o contexto no qual a obra em questão se insere, possibilitando algo como uma 'tradução' bem fundamentada do vocabulário técnico-filosófico do autor para um outro mais próximo ao nosso. A segunda consiste em aceitar o engajamento num procedimento circular, visando obter resultados úteis através do confronto entre a estrutura geral da obra, e seus argumentos específicos -- ou seja, visando estabelecer um bom ajuste entre os aspectos macro e micro-estruturais da obra analisada.

Cada uma das opções possui suas vantagens e desvantagens, dependendo do objetivo geral do intérprete. Se o que se quer como resultado é uma compreensão estrita do conteúdo das teses do autor – tratando-as de modo semelhante a achados arqueológicos de uma civilização distante – então certamente a primeira opção deve ser seguida. Se, por outro lado, importar mais ao intérprete utilizar a obra estudada como ponto de partida para sua própria reflexão a respeito de algum tema ou questionamento filosófico, então a segunda opção caberá melhor.

Não pretendo avaliar o mérito de cada um desses pontos de vista – tudo depende, como já disse, dos objetivos e das tendências intelectuais de quem se propuser a segui-los. Mas cabe criticar a tentativa de se esconder por trás de um objetivo puramente exegético e histórico, de apresentação 'neutra' das teses estudadas, simplesmente visando introduzir, implícita e sub-repticiamente, os próprios preconceitos filosóficos do intérprete. Essa atitude prejudica muito o leitor, que acaba aceitando teses e posições filosóficas como se pertencessem aos autores originalmente analisados, quando na verdade não passam de tentativas dissimuladas de apresentar as teses do próprio intérprete; mas ela também prejudica o intérprete que conduz honesta e conscientemente sua análise, de modo a exercitar a própria reflexão sobre um determinado problema filosófico, tomando como base algum tratamento distintivo e importante desse problema na história da filosofia, pois acaba-se criando no meio filosófico um certo temor quanto à legitimidade desse procedimento, dada a ubiqüidade de interpretações presumivelmente 'neutras' e 'históricas'.

CRENÇA E CAUSALIDADE: Em vista disso, e ciente de minhas óbvias limitações para proceder a um estudo histórico minimamente satisfatório, bem como de minhas tendências intelectuais nada neutras, quando analiso um clássico sempre tento me policiar para enfrentar o problema da circularidade de maneira consciente, visando tirar o máximo de proveito da situação, estabelecendo um bom ajuste entre (i) as afirmações do próprio autor a respeito de seu procedimento filosófico, (ii) alguns dos principais argumentos empregados para estabelecer sua posição, e (ii) meus próprios interesses filosóficos. Em outras palavras: se é mesmo verdade que nenhuma análise que não a puramente histórica possa ser efetivada sem que se introduzam alguns preconceitos filosóficos, então cabe ao menos tentar apresentar uma visão que além de ser internamente coerente e plausível em relação ao sistema filosófico abordado, seja também explícita e consciente de seus próprios pressupostos.

Nenhum comentário: