"In a nutshell", o arumento aí é o seguinte: no §10 Descartes interrompe a ordem da argumentação para reexaminar a crença ordinária e natural de que conhecemos as coisas corpóreas mais facilmente que nossa natureza como coisas pensantes. Para fins de argumentação, ele supõe que conhecemos melhor os corpos, e, no §11 sugere que analisemos um caso particular e concreto de percepção de um corpo: este pedaço de cera. No §12 ele argumenta que quando aproximamos tal pedaço de cera do fogo, todas as características que dele recebemos pelos sentidos mudam. Mas, aparentemente e intuitivamente, diríamos que a mesma cera permanece após todas essas modificações. A pergunta é o que é que eu conhecia desta cera com tanta distinção? Uma vez que não pode ser nada que me chega por intermédio dos sentidos, dado que isso tudo mudou, e nem algo que provénha da imaginação (cf. §13: não posso percorrer com a imaginação a infinidade de figuras que essa cera pode receber), isso que se mantém só pode ter sido algo vindo de meu entendimento. Conclusão radical: a percepção daquele pedaço de cera particular e concreto " não é uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação, e jamais o foi, mas somente uma inspeção do espírito [...] " [itálicos e negrito adicionados (nunca demais) :-) ]
Ok, até aí, com MUITA boa vontade exegética, lembrando da natureza da dúvida metódica e hiperbólica, da estuturação analítica do argumento das Meditações, blá, blá, blá, dá para acompanhar Descartes com uma indignação apenas relativa. Mas eis então que no §14 ele explica porque nos enganamos e pensamos que a percepção daquele pedaço de cera foi obra de nossa sensibilidade:
Entretanto eu não poderia espantar-me demasiado ao considerar o quanto meu espírito tem de fraqueza e de pendor que o leva insensivelmente ao erro. Pois, ainda que sem falar eu considere tudo isso em mim mesmo, as palavras detêm-me, todavia, e sou quase enganado pelos termos da linguagem comum; pois nós dizemos que vemos a mesma cera, se no-la apresentam, e não que julgamos que é a mesma, pelo fato de ter a mesma cor e a mesma figura: donde desejaria quase concluir que se conhece a cera pela visão dos olhos e não pela tão-só inspeção do espírito, se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto, que vejo desta janela, senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas? Mas julgo que são homens verdadeiros, e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos. (itálicos adicionados)
Antes de mais nada, vale salientar que esse parágrafo fornece muito material de primeira para um crítico (tal como um Austin ou um Wittgenstein em sua fase final) da atitude "revisionista" de Descartes em relação ao nosso modo de falar e de compreender nossa percepção. Mas gostaria de manter o foco apenas na análise da tese apresentada ao final da passagem, segundo a qual não percebemos direta ou imediatamente homens, mas sim "chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas".
Há, a meu ver, pelo menos duas espécies de problemas que podem ser apontados no exame dessa tese. O primeiro é bastante geral: por trás dela está uma suposição ainda mais fundamental, segundo a qual só temos acesso imediato, por meio da sensibilidade, a certos "dados brutos" (sejam eles chapéus e casacos, sejam os sense-data últimos que constituem aqueles chapéus e casacos), a partir dos quais julgamos ou inferimos qual é o objeto percebido. Não é apenas o conteúdo dessa tese que me parece problemático (a esse respeito, vide a crítica de Austin a esse tipo de "realismo indireto" em Sense e Sensibilia ). Por vários motivos, impressiona-me também o próprio fato de encontrar essa tese nesse contexto. Antes de mais nada, estranha encontrar uma tese característica do empirismo num ambiente racionalista. Mas, pensando bem, percebo que isso não é tão estranho: afinal, é justamente porque compra uma caracterização "empirista" (penso aqui nos empiristas / positivistas lógicos do início do séc. XX) do funcionamento de nossa sensibilidade, desde o início do argumento, que Descartes conseguirá "provar" que os sentidos não são confiáveis -- não são confiáveis, vale dizer, no sentido em que seu argumento, via aplicação da dúvida hiperbólica, exige.
Mas também estranha que Descartes defenda aqui que algo, seja lá o que for, é percebido imediatamente pelos sentidos. Sendo consistente com o argumento apresentado até aqui, a conclusão deveria ser que absolutamente nada me é dado imediatamente pelos sentidos -- afinal, obviamente, chapéus e casacos não podem, pelos mesmos motivos apresentados acima, ser objetos imediatos dos sentidos, mas devem igualmente ser fruto do juízo. E assim por diante, ad infinitum -- ou não? Se não, que razões haveria para pararmos em qualquer ponto da série? Afinal, tudo que tenho acesso até o momento são certas representações das quais me encontro, como questão de fato, de posse. Não cabe aqui a analogia com a pintura (Med. I, § 6), cujos elementos, por mais estranhamente que estejam combinados, precisam ser de alguma forma dados anteriormente. A hipótese do Gênio Maligno já pôs abaixo mesmo a certeza do contato com esses elementos fundamentais, e, apesar de eu já ter começado a escalada em direção à reconstrução do conhecimento, no momento ainda não provei que há uma ponte, via idéia de Deus, com o "mundo externo". Em suma, será que não houve um escorregão aqui?
Imagino que a saída seja apelar para o caráter polêmico do argumento: Descartes não estaria defendendo essa tese, mas simplesmente dando uma forcinha para o objetor, que teima em pensar que "vê algo apenas com seus olhos". Ainda assim, parece-me que neste ponto ele foi longe demais, e defendeu algo inconsistente com sua doutrina. Uma coisa é supor, para fins de argumentação, i.e., para construir uma espécie de redução ao absurdo, que percebemos distintamente algo pelos sentidos (como ele faz nos §§ 11-13); outra coisa é dizer que nossa linguagem ordinária nos engana ao sugerir que vemos diretamente objetos (e.g. homens) quando na verdade só percebemos diretamente um dado bruto qualquer, a partir do qual exercitamos nossa capacidade judicativa determinando qual é o objeto da visão. Um empirista à la Locke, que nega o acesso à essência real das coisas, poderia defender algo nesses moldes. Do mesmo modo Kant, com sua noção de matéria transcendental, de um "mero múltiplo" cuja unidade depende do entendimento (mas também das formas da sensibilidade). Mas essa tese parece muito estranha no ambiente cartesiano, e a meu ver só serve para mostrar qual é a real concepção cartesiana do funcionamento da sensibilidade -- uma concepção aliás bastante corriqueira dada a análise mecanicista, corpuscular, representacional, da percepção, vigente na época. Mas se é assim, então abre-se um flanco que será atacado por autores como Berkeley, que levará ao paroxismo essa concepção da sensibilidade, mostrando que se os objetos imediatos de nossa percepção são tais dados (as "idéias", em sua terminologia), então tudo que percebemos são idéias, e uma vez que para idéias ser é ser percebido, ser é ser percebido -- simpliciter.
Bem, mas, como disse, esse é um primeiro conjunto de problemas com a tese apresentada no final da passagem. Outro conjunto, que na verdade é o que me interessa mais e relaciona-se com o tema de minha tese, surge de uma certa extrapolação, que certamente seria injustificada tomando o argumento das Meditações como um todo, mas que é bastante plausível assim, descontextualizadamente: trata-se da idéia de que, em princípio, poderíamos supor sem maiores problemas que todos os seres humanos são meros "automatos" -- "homens fictícios que se movem apenas por molas". Minha hipótese interpretativa acerca da filosofia de Wittgenstein é a de que esse não é um lance possível em nosso jogo de linguagem. É claro que é possível duvidar de que este homem particular que vejo agora pela janela seja de fato um homem, e não um autômato. Mas não é possível generalizar essa tese. A crença de que os seres que percebemos como homens em geral são homens -- i.e., pessoas, seres racionais, agentes dotados de liberdade, etc., assim como nós mesmos -- faz parte do pano de fundo compartilhado de nossas práticas linguïsticas, da moldura de crenças fundamentais unicamente dentro da qual dúvidas, certezas, erros e acertos empíricos e particulares são possíveis. Nossa gramática depende dessa crença, assim como das crenças na regularidade da natureza, no fato de que percebo minhas mãos à minha frente e elas são mãos reais, etc. (cf. Sobre a Certeza).
Ligando com o tópico de minha tese: parece-me que não há nenhuma razão metafisíca especial para atribuírmos (ou não atribuírmos ) "personalidade", "autoconsciência", etc., a usuários de `eu'. Fazemos isso simplesmente porque trata-se de uma condição de nossas práticas lingüísticas -- mais ou menos nos moldes das "condições da interpretação" de Davidson, embora veja problemas no modo como ele apresenta esse ponto. Não há nada na lógica do uso do pronome de primeira pessoa que implique autoconsciência. (Prefiro chamar isso de uma condição da pragmática de nossa linguagem, mas não vou tratar disso aqui). De qualquer forma, minha tese é que não há uma essência oculta que precisamos "descobrir" (por meio da filosofia, da ciência, ou o que quer que seja) nos usuários que de `eu' dê conta de sua personalidade, autoconsciência, racionalidade, etc. S e no futuro estivermos rodeados de andróides que se comportem exatamente como humanos não teremos motivos "metafísicos" para não os considerarmos pessoas. O filme "O Homem Bicentenario" fornece um bom caso para refletir sobre essas questões. Aquele robô vai se adaptando a vários critérios para se tornar uma pessoa, até mesmo ao critério de ser mortal, e mesmo assim negam a ele esse direito. Por que? Não tenho uma resposta para isso, pois não sou a tal ponto "essencialista". O seguinte aforisma de Wittgenstein para mim diz tudo o que podemos dizer filosoficamente a esse respeito, e o faz com apropriada vagueza:
[A]penas de um ser humano e do que se assemelha (comporta-se como) um ser humano vivo pode-se dizer: tem sensações; vê; é cego; ouve; é surdo; é consciente ou inconsciente. (PI, § 281)
A questão ulterior sobre o que conta como critério de semelhança , a meu ver, não pode ser respondida filosoficamente, mas de várias outras formas -- biologicamente, psicologicamente, juridicamente, religiosamente, etc., depende de nossos interesses.
Um comentário:
Onde é que tu tá dando aula, ex-vizinho?
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