sexta-feira, junho 30, 2006

Link para o texto de Ryle sobre "O Pensador"

Link para o texto de Gilbert Ryle, THE THINKING OF THOUGHTS: WHAT IS 'LE PENSEUR' DOING?

http://lucy.ukc.ac.uk/CSACSIA/Vol11/Papers/ryle_1.html

Capes lança base virtual com obras completas do século XVIII

Livros, ilustrações, revistas, cartuns, debates e idéias de importantes pensadores do século 18 (muitos deles filósofos) já podem ser acessados pela comunidade acadêmica, por meio da Internet.

Tais obras estão disponíveis no Portal de Periódicos ( http://www.capes.gov.br/capes/portal/) da Capes.

A Coleção Capes de Humanidades é constituída de 150 mil livros publicados no século 18. As obras são da Biblioteca Nacional Britânica, localizada em Londres, e foram digitalizadas por editora internacional para ser acessadas por meio eletrônico.

São 33 milhões de páginas, com obras de literatura, artes, história, geografia, ciências sociais, religião, filosofia e medicina.

Cora Diamond, The Realistic Spirit, Berkeley e WIttgenstein

Lendo The Realistic Spirit: Wittgenstein, Philosophy, and the Mind (Representation and Mind), de Cora Diamond (MIT Press, 2001). Gostei do paralelo traçado por ela entre o uso de Berkeley e de Wittgenstein da imagem dos "óculos" do "filósofo", na seguinte passagem:

[...] Berkeley is concerned to show us that matter in the philosophical sense will be seen by the realistic spirit to be nothing but a philosophical fantasy. In the Three Dialogues, Hylas is portrayed exactly as someone who has to be brought back to the modes of thinking of the realistic spirit, has to be helped to remove the false glasses that have been so painfully obstructing his vision of reality.That image, of glasses painfully obstructing which we do not see that we can remove, is in Wittgenstein too, used by him in somewhat different ways, but there are important similarities. Hylas has taken himself all along to be like someone wearing distorting spectacles: he has (or so he has thought) only the dimmest grasp of things as they really are, independent of perception, because he knows them only indirectly, through perception. The removal of the glasses is the recognition, through philosophical discussion, that his perceptions never were something between him and the real: he has all along (unbeknownst to his bemused self) been what is real. With the 'removal' of the glasses he is able to take a totally different view of the reality of what he perceives; he no longer peers vainly for something beyond it.

In Wittgenstein's use of the image, the philosopher who takes himself to be wearing irremovable glasses does not take these to be distorting his view. The 'glasses' here are the underlying logical order of all thought, the philosopher the author of the Tractatus. Because he is convinced that all thought must have this order, he is convinced that he is able to see it in the reality of our actual thought and talk, even though the ways we think and speak do not (to what he takes to be a superficial view ) appear to exhibit such an order.
[...]
What is common to both uses of the image of the glasses is that the philosopher who takes himself to be in them misrepresents to himself the significance of what is before his eyes, and takes himself to be concerned rather with the real nature of something , where that real nature is not open to view. The removal of the glasses is his being able to see properly what always was before him; what stood in the way of his removing them was a confused understanding of language. (pp. 43--44)

Realismo vs. idealismo, Descartes, Kant e Wittgenstein, e o papel da filosofia: debate com o Flávio

Segue a discussão que o Flávio e eu iniciamos no nosso grupo de email, a partir dos meus comentários sobre o texto do prof. Paulo.
 
Eu ainda não li o texto do Paulo, mas gostei muito dos teus comentários, entre outras coisas, pois apontam na direção correta (que também o Alexandre apresenta no final do texto dele) para o entendimento da relação entre idealismo e realismo. Estou lidando com isso em minha tese. O meu problema não diz respeito diretamente a Wittgenstein, mas acredito que W. pode ajudar a pensar uma resposta para o problema. Vou formulá-lo do modo que me parece mais fácil e talvez voce possa me ajudar a ver algo que não estou vendo.

Que bom que achas que estamos indo na mesma direção. É bom discordar e discutir temas filosóficos, mas de vez em quando um acordozinho não faz mal nenhum! Vou fazer comentários pontuais ao que dizes e ao final vejo se consigo elaborar algo mais sistemático sobre o tema.

Voce sabe que Descartes distingue entre "uso da vida" e "investigação da verdade". Numa possível interpretação dessa distinção (muito frouxa) poderia ser dito que, no que respeito ao uso da vida, as condições para dizer que "sabemos" algo podem ser entendidas como determinadas ou informadas pelos nossos interesses e propósitos práticos. De outra parte, na investigação da verdade, o que buscamos é a determinação das condições sob as quais é possível dizer que "sabemos" algo, de um ponto de vista puramente lógico ou racional, alheio ao que costumamos fazer com nossas palavras.

Concordarias em "traduzir" essa distinção cartesiana entre "investigação da verdade"  e "uso da vida" em termos da distinção kantiana entre os níveis "transcendental" e "empírico"de análise do conhecimento? No primeiro caso, o da reflexão filosófica ou transcendental, o que buscamos é definir um padrão para determinar o que conta como conhecimento, ou seja, mais especificamente, determinar quais são as condições fundamentais para que algo se candidate a conhecimento  -- no caso específico de Kant, o resultado dessa análise filosófica seria a indicação das condições transcendentais da experiência, que são as formas de nossa sensibilidade e as formas do nosso entendimento, gerando os princípios sintéticos a priori, etc., etc.. Já no segundo caso, o do registro empírico, simplesmente supomos a adequação de nosso conhecimento àquele padrão transcendental mínimo, sem nos preocupar em justificar ou mesmo refletir acerca dele, partindo para a satisfação de nossos interesses práticos, o que se dá, no caso mais extremo, por meio da elaboração de teorias científicas.

Não sei como colocar isso direito, mas acho que posso dizer que o filósofo quando pergunta se "sabemos" algo e nas condições mediante as quais podemos dizer que "sabemos" quer, como resultado, a descoberta de algo como " o que é saber" e não das condições sob as quais "dizemos, em virtude de nossas finalidades etc., que sabemos".  

Ok, acho que o que disse acima condiz com essa sua maneira de apresentar o interesse do filósofo, em contraposição aos nossos interesses práticos -- ou não?
 
Por outro lado, como voce mesmo disse, não podemos conceder muito ao idealismo, pois podemos terminar rompendo com o princípio da "sanidade mental' do Guerzoni, isto é, com a idéia de que aquilo que dizemos é verdadeiro ou falso não em função de nossos desejos, mas em virtude das propriedades do mundo.

Claro, esse é o problema metodológico (e exegético também, pelo menos no caso da análise das posições de Kant e Wittgenstein) fundamental com o qual venho me debatendo ultimamente. E como se faz isso? No caso de Kant, atentando para o que ele tem a dizer acerca da contribuição de certos fatos contingentes acerca do mundo, e de nós mesmos nele incluídos como sujeitos empíricos, para dar conteúdo a nossos conceitos, mesmo aos categoriais. No caso de Wittgenstein, atentando ao papel de nossas reações naturais na formação de jogos de linguagem básicos, e também à contribuição do mundo como expressa em Sobre a Certeza. Falei um pouco mais detidamente desses pontos na mensagem anterior, e não irei retomar isso aqui.

 Ademais, também não podemos conceder muito ao realismo, pois senão o resultado é algum compromisso com o ceticismo (como mostra o livro do Bernard Williams). 

De pleno acordo. Um outro livro que apresenta muito bem essa implicação "realismo metafísico" -> "ceticismo" é "Expressing the World: Skepticism, Wittgenstein and Heidegger", do Anthony Rudd (Open Court, Chicago, 2003). Aqui só quero notar que é exatamente esse ponto que Kant também defende ao dizer que o realismo transcendental leva inevitavelmente ao idealismo empírico.

Minha pergunta é então: como devemos responder a pergunta pelas condições sob as quais é possível saber algo? Eu estou tentando tratar esse problema numa direção meio idealista (inspirada em Travis, Putnam e Conant), mas o Faria já me disse que concedo demais ao idealismo.

Repetindo um pouco o que eu já disse acima, e (ab)usando mais uma vez do jargão kantiano e wittgensteiniano -- especialmente por economia de palavras -- eu responderia: bem, há duas maneiras de fazer isso, no nível "transcendental" de análise, e dependendo de qual delas você escolher, terá certas conseqüências para a "vida cotidiana", ou o nível  "empírico". Se, no nível transcendental, optas por deixar um papel importante ao "sujeito" (digamos, no caso de Wittgenstein, à autonomia da gramática), então é possível explicar a normatividade de nossa linguagem, ou, no caso de Kant, o caráter necessário e a priori de certos princípios do conhecimento humano, e assim o "homem comum" e especialmente o cientista, que não passa de um "homem comum" um pouco mais fodão, poderão fazer o trabalho deles em paz, sem se preocupar com o cético. Se, por outro lado, supuseres que nossa linguagem e o mundo são coisas completamente distintas, e que à primeira não cabe mais do que "imitar" o segundo, então não terás uma garantia a priori de "acordo" entre os dois, e estarás sempre sujeito aos ataques céticos.

Sei que isso é muito esquemático, mas de todo modo penso que sua questão é muito importante para poder ser tratada adequadamente aqui. O que tentei fazer foi indicar as linhas gerais de como encaro o problema em pauta, e às quais cheguei depois de muito me bater lendo Kant e Wittgenstein. Ainda não estou completamente satisfeito com os detalhes, mas acho que não seria fácil me convencer a abrir mão dessas linhas gerais.

(A propósito, Wittgenstein tem uma passagem belíssima, que é citada no livro do Schulte-não lembro onde ela aparece-, onde ele compara o trabalho do filósofo com o de um botânico que tenta mostrar que a rosa é algo para ser entendido "puramente" como um flor de um tipo tal, e não que ela pode ser usada na lapela, como um gesto de amor e atenção, etc.)  

Também gosto dessa passagem, e do livro do Schulte como um todo.

Tem uma imprecisão na minha mensagem: onde digo "A segunda formulação (na última frase entre aspas) é uma formulação idealista, pois faz que as condições de verdade de nossos conceitos repousem ou tenham alguma sorte de vinculação com nossas práticas (forma de vida, acho que W. diria)". Eu gostaria de dizer: A segunda formulação não é necessariamente idealista, depende de como entendemos a contribuição de nossas práticas.

Pois é, o problema é achar que "idealismo" e "realismo" são denominações auto-explicativas, quando o que acontece é exatamente o contrário. É pouco produtivo ficar discutindo se uma posição é ou não "idealista", sem antes ter clareza sobre o conteúdo da mesma. Mas, supondo que conhecessemos o conteúdo da posição kantiana, por exemplo, aí teríamos que distinguir pelo menos dois sentidos de "realismo" e "idealismo" -- o transcendental e o empírico -- sendo que essa posição seria idealista no primeiro sentido, e realista no segundo.
 
Aguardo suas manifestações a respeito!

Abraço!

Jônadas

quinta-feira, junho 29, 2006

Texto do prof. Paulo Faria sobre McManus: algumas picuinhas

Estou lendo o texto em que o prof. Paulo Faria comenta o artigo do McManus citado num post anterior . Logo nos parágrafos iniciais me deparo com teses que acho muito importantes, e que gostaria de comentar:
1. I suppose I don't stray too far away from the core of McManus' criticism of some (unfortunately widespread) readings of Wittgenstein if I describe its main thrust thus: if we want to reclaim a social-critical use for Wittgenstein's thought, one thing todo is perhaps to try and get used to take (the very idea of) "the autonomy of grammar" with a grain of salt. In other words, we should not grant (not, anyway, without some serious qualification) that, as Peter Winch (quoted by McManus) puts it, `reality is not what gives language sense'.
2. To be sure, concepts are, as Wittgenstein tirelessly reminds us, the expression of our interests, concerns and desires. But then ­ -- and this goes against the grain of many a philosophical picture of concept-formation, from Kant through Carnap and Goodman down, dare I say, to Baker-and-Hacker's Wittgenstein ­ -- we don't choose the objects of our desires: concepts are not just an expression of what Kant called the `spontaneity of the understanding'.

Uma primeira ressalva que me parece importante fazer é que esse modo de apresentar a posição de Kant acerca da formação de conceitos é injusta: primeiro, porque ele não defende que todos os nossos conceitos são formados meramente pela espontaneidade do entendimento. Prima facie (mas apenas prima facie , cf. o que digo abaixo) esse seria o caso das categorias, ou "conceitos puros do entendimento", que estão na base da organização de toda nossa experiência -- mas certamente esse não é o caso de nossos conceitos empíricos, especialmente os conceitos técnicos da ciência, como o conceito de "ouro" que Kant usa como exemplo. Tais conceitos também dependem, pace Kant, de nossos interesses, preocupações e desejos. O problema é que o quadro kantiano (como sempre) não é tão simples: para Kant até mesmo nossos interesses, preocupações e desejos, no caso da busca pelo conhecimento teórico, são em última instância movidos por certos ideais regulativos, as idéias transcendentais, e estão, além disso, necessariamente limitados às condições da experiência possível, e, por conseguinte, às categorias (e também às formas da intuição), se devem ter algum sentido.

E não é só isso: eu defendo que, para Kant, nossos conceitos, mesmo as categorias, dependem para sua aplicação e para seu sentido de certos fatos contingentes acerca do mundo. Tomemos um exemplo, o da categoria da substância. Se eu ficar com a mera categoria "pura", tenho apenas uma forma lógica sem conteúdo algum, que me diz para pensar em algo necessariamente como sujeito, e não como predicado. Mas e dai? Ainda não sei o que devo selecionar no mundo para tratar como sujeito, e justamente por isso a metafísica tradicional incorre em erros ao aplicar essa forma vazia além de nossa experiência possível. Bem, passamos então à categoria "esquematizada". Que temos agora? No caso em pauta, da categoria de substância, sei que devo tomar aquilo que é permanente na mudança como substância, e o que muda como acidente. Mas ainda continuo sem saber o que no mundo vai ser permanente! Como não sou onisciente preciso, para determinar isso, sair da minha poltrona e ir ao mundo, experimentá-lo. Apenas assim saberei, por exemplo, que a "substância" última das coisas (dos fenômenos, claro) são seus componentes atômicos, ou a "energia" da física contemporânea, ou o que quer que seja -- conforme nossas teorias científicas avançam, em seu progresso assintótico rumo aos ideais de unidade e coerência cada vez maior.

Menciono de passagem mais um exemplo, esse talvez mais polêmico: o caso da categoria de realidade. Em minha dissertação defendo que, para Kant, é uma condição de possibilidade de uma linguagem (objetiva) para falar acerca de sensações discretas de grandezas intensivas (calor, frio, intensidade de luz, etc.) que possamos gerar algum tipo de padrão de medida público, de modo a atribuir a tais sensações um valor numa escala de grandeza extensiva, e, por conseguinte, possibilitando que as matematizemos. Mas o que importa salientar aqui é que, além de estar supondo essa nossa habilidade de trabalhar com padrões públicos para dar objetividade à categoria de realidade, Kant também precisa supor, no argumento das Antecipações da Percepção, que nossa sensibilidade funciona de maneira homogênea. E este é mais um fato contingente acerca do mundo, que é contemplado na explicação do emprego das categorias.

Passando, até que em fim, a Wittgenstein e McManus. No post em que tratei do texto desse último autor afirmei que "para [Wittgenstein] e também para McManus, que parece aceitar essa concepção, não há como comparar nossas práticas com uma realidade independente e "externa" às mesmas." Eu ainda estou inclinado a defender isso, pelo menos para o caso de W., não obstante crer que, para W., assim como para Kant, e, se o Paulo estiver certo, tb para McManus, o mundo tenha um papel importante na formação de nossos conceitos. Não acho que sejamos "a medida de todas as coisas" ou "world-makers" a la Nelson Goodman. Que W. sustenta isso -- esse "realismo", para usar um termo saco-de-gatos muito problemático e vazio -- fica claro especialmente na análise que ele fornece dos casos de jogos de linguagem mais básicos, nos quais nossas reações naturais -- tais como o comportamento instintivo de dor -- é que dão origem a uma forma mais complexa ou sofisticada de "comportamento lingüístico". Isso também fica claro, a meu ver, na defesa que W. faz em Sobre a Certeza de que há certos fatos (contingentes) acerca do mundo que formam o pano de fundo compartilhado sobre o qual desenvolvemos nossa linguagem.

Em suma: nem tanto ao céu, nem tando à terra! Não é apenas a tese da autonomia da gramática que, a meu ver, deve ser tratada com um grão de sal -- mas também a tese oposta, de que a realidade "está aí" e nossos conceitos -- bem como a linguagem que empregamos para expressá-los -- apenas reflete essa realidade.

Ademais, era justamente disso que eu reclamava, num post anterior, ao mencionar a leitura que Hacker faz de Wittgenstein:

[...] Assim como Hacker, penso que o tipo de relação envolvido em casos de definições ostensivas [...] não é causal [...]. Mas cabe salientar também, como faz Hacker, que a indicação de tais relações internas não equivale ao fornecimento de uma 'prova' do almejado contato entre 'linguagem' e 'realidade' — como se essas fossem esferas isoladas que precisassem ser conectadas (por definições ostensivas, ou de qualquer outra espécie). Dada a radicalidade de um movimento filosófico como o de Wittgenstein, obtém-se como conseqüência a tese de que a linguagem simplesmente não precisa ser "ancorada à realidade" pois, num certo sentido, ela é "auto-contida e autônoma" (ibid., p. 548). É claro que, num outro sentido (esse a meu ver não suficientemente destacado por Hacker), a própria linguagem fundamenta-se sim no 'mundo', na medida em que nosso pertencimento a esse mundo fornece o próprio pano de fundo compartilhado frente ao qual nossas práticas lingüísticas serão desenvolvidas — apenas para dar um exemplo, é porque todos nós compartilhamos de um mesmo tipo de aparato perceptual, que regularmente funciona de maneira homogênea em todos nós, que podemos concordar (ou discordar) acerca da aplicação de termos como 'vermelho'. Essa, portanto, é uma contribuição do 'mundo' que é assimilada em nossa linguagem. [...]

segunda-feira, junho 26, 2006

Como não ler Wittgenstein e Descartes: Bento Prado Jr.

Surpreendo-me ao encontrar uma referência do prof. Bento Prado Jr. a um texto no qual ele defende uma opinião da qual me convenço cada vez mais acerca dos problemas da leitura inglesa de Descartes e especialmente de Wittgenstein:

[...] no ensaio intitulado "Descartes e o Último Wittgenstein: O Argumento do Sonho Revisitado" (revista "Analytica" vol. 3, nº 1, 1998, págs. 219-246) [...] [tentei] mostrar a ligação interna entre a má interpretação de Descartes e uma má leitura do próprio Wittgenstein, imperante entre os discípulos ingleses do filósofo austríaco. O equívoco de ler Wittgenstein como anti-Descartes. E fiquei reconfortado, na ocasião, ao ler um ensaio de Gordon Baker, certamente um dos mais autorizados intérpretes da obra do autor do "Tractatus", no qual afirmava: "Wittgenstein não conhece as obras de Descartes e, aliás, não pensa que as confusões filosóficas de hoje decorrem dos pecados que alguns grandes filósofos teriam cometido ontem... Há portanto razões muito fortes para concluir que Wittgenstein não se empenha numa batalha contra um adversário "cartesiano" mais ou menos bem definido" (cf. "La Réception de l'Argument du Langage Privé", em "Acta du Colloque Wittgenstein", 1988, ed. TER, Paris).

O adversário dos filósofos analíticos é menos o Descartes histórico e sua obra do que um fantasma "baladeur", que atravessa os séculos e que é um produto de um anticartesianismo também "baladeur" (por exemplo, a crítica ao argumento do sonho é o mesmo em Malebranche, Locke, Spinosa, Kant, Sartre, Ryle e Malcolm, mais uma venerável tradição do que uma revolução crítica operada pelo saudável "linguistic turn" da filosofia analítica; é Sartre quem fala do cartesianismo "baladeur" -que passeia- para referir-se a uma visão estereotipada da filosofia de Descartes, que perdura ao longo dos tempos).

Na seqüência Bento Prado ainda comenta e elogia o livro "Descartes' Dualism", de Gordon Baker e Katherine J. Morris (Routledge, 1966). A conclusão que ele apresenta acerca de Descartes nesse contexto não poderia ser melhor expressa:

Justiça é feita ao bom e velho Descartes: se não é o solitário super-herói da filosofia moderna, tampouco será o seu vilão absoluto (nem Super-Homem, nem Lex Luthor, apenas um gentil-homem do Poitou que pensava muito; decididamente, a história da filosofia não tem a estrutura das histórias em quadrinhos). Recuperamos a dimensão histórica da filosofia e o poder hermenêutico da imaginação filosófica contra o cinzento império do entendimento tecno-lógico do "mainstream" da filosofia da mente.

Resta-me ler o artigo de Bento Prado na Analytica.

domingo, junho 25, 2006

Strawson e o "eu" em Entity and Identity -- retomando alguns passos

Lendo Entity and Identity, de Peter Strawson (Oxford: Clarendon Press, 2000), deparei-me com um texto que foi muito importante para mim no passado, mas que não estava lembrando que seria importante reler para a tese -- trata-se do capítulo 15, que intitula-se "Kant's Paralogisms: Self-Consciousness and the 'Outside Observer'". O seguinte trecho da Introdução resume o conteúdo do capítulo:

Kant's brilliant critique in the Paralogisms of the errors of 'rational psychology' has an obvious bearing on later philosophical discussions of self-consciousness. It helps us to see clearly that if, but only if, we unwisely abstract from the platitude that the first personal pronoun 'I', in the thought of any individual human being, refers precisely to that total human being, man or woman, then we may be forced to conclude that in self-ascription in thought of states of consciousness the pronoun either has no reference at all or must be taken to refer to an immaterial substance or soul, a Cartesian ego. The first alternative was briefly favoured by Wittgenstein and later by Miss Anscombe. The second may yet have a lingering appeal for those few, if any, thinkers who continue unfashionably to hanker for such an entity. What is actually demonstrated is the ineptitude of making the aforementioned abstraction. This is not a conclusion that Kant explicitly draws, for his concerns are other; but there is no reason to think he would have resisted it, and some reason to think he would have embraced it.

No ponto de partida do caminho que me levou até o presente projeto de doutorado encontra-se justamente a análise do terceiro Paralogismo de Kant, que foi o tema de meu trabalho de graduação (2002). O título do trabalho foi algo como "A Impossibilidade de Conhecimento do Sujeito de Pensamento no Terceiro Paralogismo de Kant" (eu e os títulos estranhos dos meus textos). Paralelamente a esse estudo sempre me interessei pela polêmica contemporânea acerca da referencialidade do pronome de primeira pessoa. Embora não pretenda tratar disso explicitamente na tese, a relação entre a posição kantiana e a de Wittgenstein acerca do "eu" sempre esteve e estará no meu horizonte, e espero chegar a alguma conclusão a respeito disso.

sábado, junho 24, 2006

O fantasma na máquina: Ryle e Wittgenstein

No primeiro capítulo de The Concept of Mind, Gilber Ryle apresenta o que ele chama de "mito do fantasma dentro da máquina", ou seja, a doutrina segundo a qual viveríamos uma "dupla vida" -- a vida "física", espaço-temporal, e a vida "mental" ou imaterial. Segundo ele, essa doutrina fundamenta-se num erro categorial: seu defensor apresenta os fatos da vida mental como se pertencessem a uma categoria lógica quando na realidade pertencem a outra. O diagnóstico desse erro é apresentado na seguinte passagem:

A representação de uma pessoa como se fosse um fantasma na máquina deriva deste fato. Uma vez que o pensamento, o sentimento e os atos de uma pessoa não podem ser descritos unicamente com a linguagem da física, química e fisiologia, supõe-se que devem ser descritos em termos análogos. Como o corpo humano é uma unidade complexa organizada, a mente humana também deve ser uma unidade complexa organizada, ainda que constituída de elementos e de uma estrutura diferentes. Como o corpo humano, igualmente a qualquer outra porção de matéria, está sujeito a causas e efeitos, também a mente deve estar sujeita a causas e efeitos, mas (Deus seja louvado) de tipo não mecânico.

No Blue Book, Wittgenstein apresenta o caminho que leva alguém a sustentar uma posição solipsista, e chega a um diagnóstico muito similar:

Quando eu disse, sinceramente, que apenas eu vejo, eu também estava inclinado a dizer que por "eu" eu não significava realmente L. W., embora pelo benefício de meus companheiros eu podia dizer "Agora é L. W. que realmente vê", mas isso não é o que eu realmente quero significar. Eu poderia quase dizer que por "eu" eu significo algo que exatamente agora habita L. W., algo que os outros não podem ver. (Eu queria dizer minha mente, mas só podia apontar para ela via meu corpo.) Não há nada errado em se sugerir que os outros deveriam me dar uma posição excepcional na linguagem deles; mas a justificação que eu gostaria de dar para isso: que este corpo é agora o assento daquilo que realmente vive -- é sem sentido. Pois admitidamente isso não é enunciar nada que no sentido ordinário seja uma questão de experiência. ( BB, p. 66)

Assim como há um paralelo no diagnóstico, há um paralelo na solução que ambos os autores irão propor: Ryle tentará "retificar a geografia lógica da mente", expressando as regras lógicas que governam o uso dos conceitos mentais, bem como as relações ou conexões lógicas desses conceitos com conceitos pertencentes a outras "áreas" de nossa linguagem. Do mesmo modo, Wittgenstein tentará nos trazer de volta das "férias" que tiramos de nossa linguagem, lembrando dos usos efetivos de nossos conceitos mentais.

terça-feira, junho 20, 2006

Debate acerca de Wittgenstein, Fetichismo, Realismo, e outras cositas mas...

Eu, o César e o Alexandre, dentre outros, estamos debatendo um ótimo texto de Denis McManus no nosso grupo de email: "Wittgenstein, Fetishism and Nonsense in Practice" (sugestão do César). Nesse texto McManus estende uma idéia de Wittgenstein -- segundo a qual nossos conceitos (ou sistemas de descrição) só têm sentido frente a um pano de fundo compartilhado por nossas práticas (em nossa "forma de vida" efetiva) -- para o caso da crítica política e social. Uma das conclusões interessantes do McManus é que há várias maneiras de descrever uma nova situação gerada por uma mudança nas nossas práticas. Um exemplo concreto que ele fornece para análise é o do "caos de cores", que é descrito assim:

Let us imagine the level of disagreement in color judgments increasing. Color fluctuation becomes epidemic and even our own mastery of the colors is being called into doubt by our neighbors, whom we now see as largely color-blind. But now what are our color terms used for? In one sense, they continue to "work." But in another they don't. Orders like "Five red apples, please" are now pointless. Or one might say that such orders are successful only with the frequency as in our present, actual condition we come across people with whom we share a taste in music. But as a result, we cannot use these terms to do what we currently do with color terms. "Cannot" or "do not"? Let us bear this in mind, when we now ask: "Has the use of color terms become nonsensical?" Neither a "yes" nor a "no" seems right. Nature did not reject our color terms, so to speak. The "logic of color terms" was not violated. But we no longer behave in the same ways, are no longer bothered about the same things. The language of color has fallen silent. One might be tempted to offer an explanation here that asserts that this language has fallen silent because, in terms of our earlier purposes, the use of these terms is now pointless--they are now unusable. But unusable for what? The activities in which those terms played a role have also waned. We no longer argue, for example, over the color to paint a room or over the use of pigment in a picture. Concepts articulate our desires as much as our beliefs, and desires articulated in terms of color have sunk into insignificance. Their satisfaction "makes no difference," one might say. Hence, rather than being "unusable," it seems more appropriate to say that color terms simply aren't used. A whole world--populated by people with particular desires and objects of a certain sort in certain kinds of conditions-- wanes. To adapt a well-known line from On Certainty, light fades gradually over the whole.

O mais relevante para mim na análise desse e dos demais casos similares apresentados por McManus é a indicação da impossibilidade de se optar por uma descrição particular da nova situação gerada em detrimento das demais, uma vez que falta uma "realidade externa" onde se apoiar. Acho esse ponto importante, dentre outras razões, pois tem a ver com o que me parece ser um erro fundamental do externalismo, que é justamente o de supor que exista uma tal "realidade".

Comentando essa minha tese, o César disse o seguinte:

Mas não vi como tratar da realidade como problema segundo o texto de McManus. Ele parece estar adotando o realismo padrão. As coisas estão aí e é delas que pretendemos estar falando.

A meu ver o que ocorre é justamente o contrário: penso que McManus não só não está adotando um tal "realismo padrão" (o que eu preferiria chamar de "realismo metafísico", num sentido que já expliquei em posts anteriores), mas antes está usando a posição de W. como base para criticar tal realismo. Isso fica claro na seguinte passagem do McManus, na qual ele cita o próprio Wittgenstein (o "primeiro" :-) ):

A fundamental strand within [Wittgenstein's] thought, early and late, maintains precisely an opposed view, claiming that one cannot assess the intelligibility of a thought by reference to the reality it represents. In identifying this "reality that it represents" one must presuppose the intelligibility, the meaningfulness, of the thought. One must presuppose its meaning if one is to differentiate the parts of reality that are relevant to that thought and its coherence from the indefinitely large regions of reality that are simply irrelevant. What we are imagining ourselves assessing by reference to its conformity to reality is actually what determines how a proposition is compared with reality:

The method of portrayal must be completely determinate before we can compare reality with the proposition at all in order to see whether it is true or false. The method of comparison must be given me before I can make  the comparison.

How we compare propositions with reality cannot itself be evaluated by comparing it with reality and learning how to compare propositions with reality cannot itself be aprocess of reading something off reality: 

[H]ow is congruence or non-congruence or the like given to us? How can I be told how the proposition represents? Or can this not be said to me at all? And if that is so can I `know' it? If it was supposed to be said to me, then this would have to be done by means of a proposition; but the proposition could only shew it.

Não quero sugerir que a posição de W. nessas passagens seja absolutamente clara, mas uma coisa é certa: para ele e também para McManus, que parece aceitar essa concepção, não há como comparar nossas práticas com uma realidade independente e "externa" às mesmas. Isso para mim é negar o "realismo metafísico" que está por trás do externalismo.