quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Externalismo e autoconhecimento de ações

Vou responder rapidamente a dois comentários que o César fez em meu post sobre a posição da O'Brien neste texto.

1. Ao apelar para o que classicamente se chama de "experiência da liberdade," O'Brien explica o que não entendemos pelo obscuro. Tô spinozista.

Na verdade não sei se ela apela à "experiência da liberdade"... não sei o que isso significa. Ela apela a uma experiência física (cinestética): a sensação de movermos um membro voluntariamente. Claro, você poderia argumentar que essa experiência é algo obscuro e não explicativo. Num certo sentido, acho que é mesmo -- mas depende do que você espera de uma explicação filosófica . Minha avaliação provisória é de que essa explicação de O'Brien exemplifica o tipo de "final da linha" da análise filosófica, o momento em que batemos no "leito duro do rio" de nossa linguagem. A idéia é de que há um ponto na análise do modo como nossas práticas lingüísticas funcionam em que simplesmente não faria mais sentido exigir justificação ou esclarecimento ulterior -- a não ser um esclarecimento dos processos empíricos aí operantes. Wittgenstein muitas vezes termina suas análises "gramaticais" quando alcança um ponto no qual apresenta certos fatos acerca de nós mesmo -- fatos que fazem parte de nossa "forma de vida" e que constituem o pano de fundo sobre o qual desenvolvemos nossa linguagem, e que ele por vezes descreve como nossas "reações naturais" ou mesmo "instintivas" -- acerca dos quais não há mais nada a fazer senão indicar sua conexão com nosso uso de jogos de linguagem mais complexos.

Se estou certo, a análise de O'Brien toca num desses "fatos últimos" a partir dos quais desenvolvemos nossos jogos de linguagem. É porque, em casos mais básicos, sentimos que podemos dar origem a certos movimentos, que passamos a distiguir esses movimentos dos demais movimentos que acontecem no mundo, independentemente de nossas intervenções, com um nome especial: "ações". A partir daí desenvolvemos uma linguagem na qual marcamos nossa autoridade em relação a essas ações básicas, e depois a estendemos para ações não tão básicas, que envolvem muitos passos intermediários. Em algum momento passamos a empregar esse tipo de marca distintiva da autoridade da primeira pessoa também ao caso de nossos pensamentos, crenças, atitudes, etc.

É assim que, no momento, encaro a contribuição de O'Brien no debate acerca da autoridade da primeira pessoa, e acho que é uma contribuição relevante. Não tentarei justificar aqui a relevância da própria estratégia geral que esbocei acima.

2. Como O'Brien interpretaria um caso de encubamento, isto é, de colocação do cérebro e sistema nervoso de uma pessoa em uma cuba?

Aqui você propõe uma objeção (a forma de pergunta é mera retórica ;-) ) que para mim é um exemplo típico da inversão de prioridades que os argumentos "céticos" em geral empregam: você me pede como alguém que defende a prioridade da autoridade (e, por conseguinte, do conhecimento) de ações, poderia dar conta da possibilidade do "cérebro numa cuba". Ora, o que eu sugiro é uma inversão do ônus da prova: como garantir a plausibilidade desse tipo de experimento, frente a uma posição como a de O'Brien -- e, diria eu, frente a nossa concepção ordinária do mundo? A meu ver argumentos que põem em questão a confiabilidade de nossa experiência ordinária "em bloco" -- ou seja, não se trata de questionar um ou outro juízo perceptual específico -- são simplesmente insustentáveis e incoerentes. Tais argumentos pressupõem certas condições para o emprego dos conceitos relevantes para formular certos "desafios epistêmicos" -- nesse caso, noções como as de "experiência", "percepção", etc. -- e ao mesmo tempo impossibilitam a satisfação daquelas condições, dadas suas restrições metafísicas, conceituais, lingüísticas, ou como quer que as queiramos caracterizar. (Aprendi com tio Kant ;-)  )

É claro que você poderá questionar a cogência ou legitimidade de "argumentos transcendentais" como esse que esbocei, mas obviamente não tentarei defender isso num post.

8 comentários:

Anônimo disse...

Vou continuar o debate fazendo vários comentários isolados. Leio lá, volto aqui e escrevo.

Anônimo disse...

Meus primeiros comentários tem a ver com o final do seu primeiro post sobre o trabalho de Lucy O'Brien.

1. Concordo que não temos nada a perder com tal tipo de investigação, e talvez tenhamos bastante a ganhar.

2. Lá você disse que o caminho foi mais trilhado no passado do que agora, e aqui realmente me pergunto se tal avaliação não seria diferente caso considerássemos também estudos de orientação merleau-pontyana, tais como os de Alva Nöe, e mesmo certos trabalhos na fronteira da psicologia genética de Piaget. Talvez valha a pena buscar 'enbodyment' (talvez eu esteja escrevendo errado) no CrossRef ou no Google Acadêmico e ver o que aparece.

3. Acho que um problema fundamental em todo o debate atual é a inflação e uso acrítico do termo 'autoconhecimento.' Trata-se de um termo técnico, ou ao menos de um termo pouco usual. Mas nós, os especialistas, estamos usando o termo de maneira acrítica, e até mesmo inflacionando o termo. Talvez estudos que envolvam propriocepção, tais como o de O'Brien, ajudem a esclarecer as fronteiras do autoconhecimento, e mesmo a remapear e corrigir a direção dos estudos.

Anônimo disse...

Uma questão sobre a 'gramática' das sensações proprioceptivas (mover um braço etc.): O caso não é como o da dor? A teoria sobre o conhecimento da própria dor não se aplicaria à sensação de mover um membro?

Anônimo disse...

Aqui está o nó, o ponto onde precisamos alguma luz: Você diz "a sensação de movermos um membro voluntariamente."

Entendo o que seja a sensação de mover um braço. É uma sensação.

Entendo o que é mover. É um acontecimento físico.

Entendo o que é mover voluntariamente um membro. É se comportar de acordo com metas representadas, mover-se de acordo com as percepções etc. É um comportamento.

Mas não entendo o que seria uma sensação-de-movimento-voluntário. O que seria isso?

Acho que não seria nada. Tô pressionando o ponto que me parece frágil: O que o 'voluntariamente' acrescenta à teoria em tela? O que se explica com 'voluntariamente' que não se explica sem 'voluntariamente'?

Talvez esse seja um ponto menor. No fundo essa era minha observação 1.

Anônimo disse...

Eis, de novo, o que não entendo: "[...] sentimos que podemos dar origem a certos movimentos [...]." Que tipo de sensibilidade seria essa?

Só para comparar: O boxeador diz, antes de entrar no ringue, "Sinto que posso nocauteá-lo." Aqui nós temos algo semelhante? Se ele está dizendo que pode dar origem a certos movimentos no seu próprio corpo que causam a perda da consciência do adversário, sim. Mas o que o 'sinto' acrescenta a "Posso nocauteá-lo", sem "Sinto que..."? Parece não acrescentar nada.

Anônimo disse...

Concordo que casos de encubamento são implausíveis, mas pode ser interessante testar a teoria com experimentos mentais envolvendo tais casos. Minha pergunta era apenas para saber se tal tipo de teste já havia sido feito. Alguém fará.

Anônimo disse...

Quanto aos argumentos transcendentais, acho que não há problema em aplicá-los ao experimento do encubamento. Putnam fez isso, não?

Minha única crítica aos mesmos é estatística, e nada tem a ver com nosso debate: Deveriam ser usados com mais parcimônia. Atualmente os argumentos transcendentais são objeto de abuso por alguns filósofos, verdadeiros alcoólatras das condições de possibilidade.

Anônimo disse...

Oi Jônadas,
dei uma olhada no teu trabalho e estás realmente de parabéns pela qualidade e quantidade da produção. Vou me informar e tentar entrar no debate, o qual está muito interessante.
Grande abraço,
Fabian