terça-feira, fevereiro 14, 2006

Filosofia Wittgensteiniana: continuando o debate

Continuando o debate com o César:

1. Witt diz que problemas filosóficos -- TODOS os problemas, pois senão o desafio seria fácil -- se originam de uma 'imagem' ligada ao nosso uso da linguagem.

Na verdade fiz questão de salientar que nem todos os problemas filosóficos surgem devido à influência de imagens -- o que sustentei é que todos se originam de alguma confusão no uso da linguagem. Mas W. aponta várias confusões desse tipo, e, como eu disse, não nos dá nenhuma ``receita de bolo'' que nos ensine como detectá-las. O que ele apresenta são vários diagnósticos pontuais das causas de posições filosóficas problemáticas. Por vezes tais posições surgem devido à influência de imagens, por outras se originam de um certo descontentamento do filósofo com a linguagem ordinária -- que pode ser de pelo menos dis tipos: ou bem o filósofo  gostaria que a linguagem marcasse melhor algumas distinções que lhe parecem importantes, ou, pelo contrário, ele passa por cima de certas distinções que não lhe parecem relevantes, dado o desejo de alcançar homogeneidade e generalidade na análise.

Mas, em se tratanto da posição de W., realmente penso que é mais produtivo não levar a discussão apenas nesse nível abstrato, e justamente por isso usei o exemplo do problema da identidade, e apontei como uma de suas possíveis causas a influência da imagem que apresentei. Para tentar esclarecer as coisas vou fornecer um novo exemplo que ilustra como uma outra posição filosófica problemática -- o solipsismo -- surge do descontentamento do filósofo em relação à linguagem -- mais especificamente, do desejo de marcar certas distinções com mais força.

Uma diferença importante que existe em nossa linguagem ordinária é a que vige entre o emprego de enunciados (auto-)atributivos de estados mentais (etc.) em primeira pessoa, e os enunciados atributivos correspondentes em terceira pessoa. O exemplo preferido de W. para tratar de tal diferença é o da dor.  É óbvio, poder-se-ia dizer, que quando eu digo que estou com dor não o faço baseado no tipo de evidência que outros teriam para dizer isso a meu respeito. Paralelamente, é óbvio que eu não posso ter o mesmo tipo de acesso à dor que os outros sentem --- i.e., para colocar mais claramente, eu não posso sentir a dor deles.
 
Pois bem. Segundo W., o solipsista é o sujeito que se dá conta dessa diferença importante, mas não está contente com o modo como a marcamos em nossa linguagem. O enunciado ``Eu tenho dor de dente'' se parece demais com o enunciado ``Eu tenho um dente de ouro''. Mas a impossibilidade de sentir a dor de outra pessoa é muito diferente da impossibilidade de ter o dente de ouro da outra pessoa. A primeira é uma impossibilidade metafísica, poder-se-ia dizer, e a última é meramente empírica. Justamente visando impedir a confusão entre esses dois casos, o solipsista nos propõe uma ``nova notação'', um ``novo simbolismo'', no qual a expressão ``dor de dente'' (ou, pelo menos, ``dor de dente real'') só faria sentido em seu uso auto-atributivo, i.e., em primeira pessoa. Nessa linguagem o máximo que um falante poderia dizer ao me ver com dor de dente é que eu me comporto como ele próprio se comporta quando sente dor de dente, ou algo do genero. Ou seja, ele precisa fazer uma inferência para concluir algo acerca de uma experiência privada que a mim se apresenta imediatamente. Na verdade, se essa notação fosse tomada até suas últimas consequências, nem mesmo essa inferência poderia ser feita, pois seria simplesmente absurdo que um outro sujeito empregasse expressões que fizessem referência às minhas experiências. Temos assim o primeiro passo para se chegar à idéia de uma linguagem logicamente privada para tratar das experiências. Bem, daí para a tese de que a única experiência real é a minha experiência, e dessa última para a de que o mundo é meu mundo, é só um pulinho (ou dois :-) ).

Veja bem: W. não defende que esse é o único e nem mesmo o principal motivo que leva alguém a sustentar uma posição solipsista. Não é assim que a dialética wittgensteiniana funciona. O contexto no qual ele apresenta esse caso, no Blue Book, é um em que ele está analisando várias causas possíveis e em geral interligadas para essa posição. O que há de comum entre elas é simplesmente o fato de que todas tem a ver com alguma incompreensão da linguagem ordinária, que gera o ``impulso revisionista'' do filósofo.

Acerca da influência das ``imagens'' (pictures no inglês, não images) tu notas que:

2. 'Imagem' é um termo metafórico, logo obscuro e pouco útil como explicador de coisas inexplicadas. O que é uma imagem? Pelo que entendi, a 'imagem' é a extrapolação do que funciona em casos paradigmáticos para todos os casos. No exemplo de Kant, tomo como 'imagem' ou caso paradigmático de entidade, de coisa, de objeto, as entidades delimitadas no tempo e no espaço. Depois me fodo, quando tento empregar tal paradigma para todos os casos, inclusive dores.
3. Witt diz que refletimos sobre noções filosóficas a partir de determinada imagem. Eis a origem do problema filosófico. Penso na identidade a partir de certa imagem e me fodo, fico cheio de problemas filosóficos.
 
Bem, no que toca às `imagens', não estou pensando apenas em usos puramente metafóricos do termo. De fato, no exemplo de Kant há algo de metafórico -- mas metáforas também devem guardar algo do uso normal dos termos. Ora, se me convenço de que a identidade é uma noção que se aplica primariamente a coisas, objetos espaço-temporais, etc., posso me prender a essa imagem quando reflito sobre caso das experiências psicológicas, dos fenômenos mentais, etc.,  e tentar aplicá-la ao ``mundo mental'' (mais uma metáfora), e assim ``me fodo''. Em suma: a imagem do ``teatro mental'' é uma imagem num sentido bastante concreto do termo, nao achas?

4. O que precisamos pensar criticamente, se é que o que eu disse acima faz o mínimo de justiça à posição de Witt, é se tal teoria faz o mínimo de justiça ao que é a filosofia. Você pede para mim apresentar ao menos um caso de problema filosófico que não possa ser reduzido ao esquema da imagem. Bom, se o esquema tem a ver com o que disse acima, meu problema é o oposto: achar ao menos um problema filosófico que caiba no mesmo. Não consigo ver nenhum.

Espero ter indicado com um pouco mais de precisão quais são as linhas gerais da posição de W. com o que disse acima. E indiquei um problema que cabe no esquema: o do solipsismo. Isso obviamente não basta para justificar a concepção wittgensteiniana da filosofia. Mas quanto a fazer justiça ao que é a filosofia: ora, para determinarmos isso precisamos de um critério independente do que seja essa atividade. Arriscas algum? Eu particularmente não penso que exista um conjunto fechado de condições necessárias e suficientes para definir a natureza dessa atividade. Uma coisa é fundamental: há certos problemas que não são de ordem empírica e que precisam de uma solução que não seja de ordem empírica. Certamente é preciso muito mais que isso para uma definição, mas essa para mim é uma condição não negociável. Um expediente que me parece útil, ao invés de buscar uma definição, é tentar relacionar as concepções que outros filósofos tinham da natureza da filosofia ao longo da história. E um exemplo claro, para nao fugir da regra, é o da filosofia crítica kantiana: obviamente Kant não usava o jargão ``lingüístico'', mas sim o jargão metafísico, epistemológico, ou até mesmo, segundo alguns, psicologista; mas os objetivos da filosofia crítica e da filosofia  ``terapeutica'' de W. claramente guardam muitas semelhanças: para ambos, há certos modelos filosóficos (realismo transcendental, idealismo empírico, solipsismo) que precisam ser extirpados; para ambos isso significa investigar e indicar a origem última desses modelos, ao invés de apontar erros ou falsidades nas teses mesmas que os caracterizam; mas para Kant isso implica investigar a nossa faculdade de conhecimento a priori, as regras de seu funcionamento, e as condições para que empreguemos certos conceitos fundamentais dela derivados legitimamente -- enquanto que para W. isso implica investigar nossas práticas lingüísticas, nossa gramática, as regras de seu funcionamento, e as condições para o emprego legítimo (com sentido) de certos termos.

5. Vejamos o caso atribuído a Kant. Não sei se o Kant histórico cabe em tal exemplo, isto é, se ele tem problemas com a identidade do mental porque extrapola o paradigma do objeto físico para a entidade mental. Não importa. Se ele faz tal extrapolação, ele realmente tem um problema, e se trata de um problema filosófico, sem dúvida.
6. O problema de Kant seria a 'imagem,' o paradigma muito curto? Acho que essa seria uma maneira estranha de explicar o que se passa. Não seria melhor dizer que Kant tem um conceito de objeto muito restrito?

Não tenho certeza de ter entendido a observação (5). Em todo caso, vale deixar claro que não quis dizer que o próprio Kant se prende à imagem da identidade dos objetos físicos, para depois tratar da identidade dos ``objetos'' (fenômenos) mentais. Na verdade disse apenas que, no que toca à identidade dos objetos físicos, Kant e Strawson concordam que as características espaço-temporais dos mesmos são essenciais, e sugeri que aceitássemos isso como uma análise correta e suficiente da identidade de objetos físicos para fins de argumentação. O meu ponto depois consistiu em mostrar como alguém poderia prender-se demais a esse paradigma no tratamento dos ``objetos'' mentais, e ``se foder''.  Strawson claramente procede assim. Já no caso de Kant as coisas são mais complexas. O que é certo é que ele se tentou mostrar, especialmente na seção da Refutação do Idealismo, que a determinação da identidade dos estados mentais é parasitária das condições de identidade dos objetos externos. Resumidamente, o argumento dele é o seguinte:

(a) o tempo é a forma do ``sentido interno'';
(b) a ordenação temporal (objetiva) de qualquer evento depende da determinação de um padrão de mensuração;
(c) tal padrão depende da determinação de algo permanente;
(d) só experienciamos a permanência no caso da experiência de objetos externos, espaciais;
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Ergo: a determinação objetiva das experiências do sentido interno depende da determinação objetiva dos objetos do sentido externo -- em outras palavras, não seria possível conhecer (objetivamente) os fenômenos mentais a não ser que tivéssemos experiências do mundo externo.

7. Dizer que o conceito é inadequado não é o mesmo que dizer que uma imagem ruim gerou um problema. Em um caso se supõe que um conceito mais adequado pode tratar melhor a situação. Em outro se supõe, ao que parece, que outro conceito, o 'mais adequado,' seria apenas outra imagem, e geraria problemas, tal como o primeiro.

Concordo, mas não defendi a equivalência entre conceito inadequado / conceito gerado a partir de uma imagem ruim. Estava apenas dando um exemplo de uma origem de um  ``conceito idadequado''. O critério último para a adequação ou não de um conceito, para W., consiste na possibilidade de fornecermos um sentido a esse conceito -- N.B., W. nem mesmo exige, como muitos costumam pensar, que para um conceito ser adequado ele precisa ser parte da linguagem ordinária. Podemos inventar conceitos -- e até mesmo jogos de linguagem completos, como o próprio W. faz inúmeras vezes em sua argumentação. Não há impedimento de princípio quanto à criação de ``novas notações''. A ciência faz isso o tempo todo, e não ha problemas com isso. O problema do filósofo é que ele por vezes propõe notações às quais ele pensa que deu um sentido, mas que ele não consegue justificar, i.e., não consegue fornecer regras claras para as empregarmos. 

8. Enfim, acho que esse negócio de 'imagem' não é uma boa maneira de retratar a filosofia.

Acho que você deu peso demais ao exemplo que usei. Não quis retratar a filosofia como sendo apenas uma atividade que nos livra de certas imagens. Mas continuo achando que essa é uma de suas funções, e que é importante.

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