quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Texto do César: comentário 1

Estou lendo o texto que o César publicou no blog dele, que é um rascunho da apresentação para o Encontro da Anpof. Vou comentá-lo por partes, a começar pela seção denominada "Davidson e o ponto de vista tradicional sobre a mente". Cito a parte que me interessa, sem me preocupar muito em marcar o que deixei de fora ou adaptei:
Para Davidson, as dúvidas acerca da conciliação entre externalismo e conhecimento de si emergem de dois pressupostos implícitos da concepção tradicional de mente:

(i) o pensamento é identificado independentemente da relação com algo que está fora da mente.
(ii) se o pensamento fosse identificado por algo mais do que aquilo que é abrangido ou compreendido pela mente, então a mente não poderia capturá-lo ou compreendê-lo.

A solução de Davidson para (i) é aceitar que, sob certa descrição, o mental está 'na' cabeça, embora, sob outra descrição, não esteja. O mesmo objeto pode ser descrito de diversas maneiras, e cada descrição acarreta compromissos lógicos distintos. Caso um homem seja descrito como pai, filhos são pressupostos. Mas se o mesmo homem é descrito como homem, filhos não são pressupostos. A solução para (ii) é rejeitar a metáfora do mental que o motiva. A rejeição da metáfora do mental é uma maneira negativa de conciliar externalismo e conhecimento de si. A teoria do autoconhecimento básico é uma maneira positiva de realizar tal conciliação.
Nunca gostei muito dessa solução de Davidson para (i). A tese fundamental que motiva essa solução é a de que "Estados e eventos individuais não pressupõem conceitualmente nada neles mesmos; algumas de suas descrições, entretanto, podem [pressupor isso]" (Ludlow e Martin, 1998, p. 103). A meu ver, essa tese marca uma discordância fundamental entre a posição de Davidson, e uma posição anti-individualista que realmente mereça esse título. Penso que se há um resultado que Kripke, Putnam, Burge e os demais defensores do anti-individualismo deveriam ter obtido com suas análises, é que os estados mentais pressupõem sim, conceitualmente, uma referência a fatores externos. Para Davidson, entretanto, os estados mentais pressupõem fatores externos do mesmo modo que efeitos pressupõem causas, e, por conseguinte, de maneira contingente — afinal, dados os compromissos quineanos de sua análise, segue-se que não há necessidade (conceitual) alguma que não seja segundo uma descrição.

(Grande parêntese: Penso que se um defensor do anti-individualismo concordar com essa análise causalista, então ele estará de fato sujeito à crítica davidsoniana esboçada acima. Autores como Peter Hacker, por exemplo, defendem explicitamente que a "tese causal [...] continua servindo os escritos de 'externalistas' contemporâneos tais como Putnam, Burge e Davidson", pois, segundo ele, tais autores explicariam a conexão entre "as pessoas e o mundo" por meio de "interações causais" (Hacker 1998, p. 540). Mas se as leituras causalistas estão corretas, pior para os defensores do anti-individualismo, pois aceitar essa análise significa trazer para o interior do modelo anti-individualista um resquício da imagem contra a qual esse modelo deveria fornecer uma alternativa — que é a da mente separada do 'mundo', ou dos 'objetos'. Apenas supondo-se essa imagem faz sentido pensar em uma ligação contingente entre estados mentais e os objetos que fornecem seus conteúdos. Um 'anti-individualismo' nesses moldes causalistas, portanto, não passaria de um individualismo envergonhado.

No mesmo artigo mencionado acima (Hacker 1998), Hacker contrasta o caráter contingente e 'externo' das relações causais com o caráter necessário das relações 'internas' (gramaticais), ilustradas com o caso da relação entre a palavra 'vermelho' e as coisas vermelhas (cf. especialmente p. 547). Assim como Hacker, penso que o tipo de relação envolvido em casos de definições ostensivas (sem falar nos demais casos de 'definição' ou, colocando em termos mais adequados ao presente contexto, 'fixação de referência') não é causal, e, por conseguinte, está sendo mal compreendido por Davidson. Mas cabe salientar também, como faz Hacker, que a indicação de tais relações internas não equivale ao fornecimento de uma 'prova' do almejado contato entre 'linguagem' e 'realidade' — como se essas fossem esferas isoladas que precisassem ser conectadas (por definições ostensivas, ou de qualquer outra espécie). Dada a radicalidade de um movimento filosófico como o de Wittgenstein, obtém-se como conseqüência a tese de que a linguagem simplesmente não precisa ser "ancorada à realidade" pois, num certo sentido, ela é "auto-contida e autônoma" (ibid., p. 548). É claro que, num outro sentido (esse a meu ver não suficientemente destacado por Hacker), a própria linguagem fundamenta-se sim no 'mundo', na medida em que nosso pertencimento a esse mundo fornece o próprio pano de fundo compartilhado frente ao qual nossas práticas lingüísticas serão desenvolvidas — apenas para dar um exemplo, é porque todos nós compartilhamos de um mesmo tipo de aparato perceptual, que regularmente funciona de maneira homogênea em todos nós, que podemos concordar (ou discordar) acerca da aplicação de termos como 'vermelho'. Essa, portanto, é uma contribuição do 'mundo' que é assimilada em nossa linguagem. Resumindo o ponto: relações entre linguagem e mundo são mútuas, e, mais importante do que isso, mutuamente constitutivas, e não há prioridade de um em relação ao outro — nem há prioridade da linguagem (ou da 'mente'), como querem os individualistas, e nem do mundo, como parecem querer alguns anti-individualistas, como Davidson (nesse caso melhor descritos como 'externalistas' mesmo.)

O que é problemático na análise de Davidson é que a meu ver ele inverte completamente as prioridades: para ele, defender uma ligação necessária entre estados mentais e seus objetos implica supor que a autoridade da primeira pessoa só se aplica a "conteúdos [que] podem ser descritos sem referência a fatores externos" , ou seja, apenas a estados psicológicos 'em sentido exíguo' — suposição esta que, por sua vez, derivaria da aceitação de uma "imagem defeituosa do mental" — a "metáfora dos objetos ante a mente" da qual o César fala em (ii). Uma vez abandonada essa imagem, argumenta Davidson, o problema da autoridade da primeira pessoa poderia ser facilmente solucionado:

Quando nos tivermos livrado da suposição de que pensamentos devem possuir objetos misteriosos, podemos ver como o fato de nossos estados mentais como normalmente os concebemos serem identificados em parte por sua história natural não apenas impede que se toque no caráter interno de tais estados, ou que haja problemas com a autoridade da primeira pessoa; ele também abre o caminho para uma explicação da autoridade da primeira pessoa. A explicação surge quando percebemos que o que as palavras de uma pessoa significam depende nos casos mais básicos dos tipos de objetos e eventos que causaram a pessoa a sustentar que essas palavras eram aplicáveis; similarmente para o que os pensamentos de uma pessoa são sobre. Um intérprete das palavras de outras pessoas deve depender de informação dispersa, treino bem sucedido, e conjetura imaginativa para vir a compreender o outro. O agente ele mesmo, contudo, não está em posição de se questionar sobre se em geral está usando suas próprias palavras de modo a aplicá-las aos objetos e eventos corretos, uma vez que seja o que for ao que ele regularmente as aplique será o que dará às suas palavras o significado que elas possuem e aos seus pensamentos os conteúdos que eles possuem. É claro que, em qualquer caso particular, ele pode estar errado naquilo que ele acredita sobre o mundo; o que é impossível é que ele esteja errado na maior parte do tempo. A razão é aparente: a menos que haja uma presunção de que o falante saiba o que ele significa, i.e., está usando sua própria linguagem corretamente, não haverá nada para o intérprete interpretar. Para colocar o assunto de outro modo, nada poderia contar como alguém regularmente aplicando incorretamente suas próprias palavras. A autoridade da primeira pessoa, o caráter social da linguagem, e os determinantes externos do pensamento e do significado vão todos naturalmente juntos, uma vez que tenhamos abandonado o mito do subjetivo, a idéia de que pensamentos requerem objetos mentais. (Ludlow e Martin 1998, pp. 108--109)

Concordo com muito do que Davidson afirma nessa passagem — especialmente com o caráter pressuposicional da autoridade da primeira pessoa, e com a impossibilidade de erro na maior parte do tempo por parte do sujeito, acerca dos conteúdos de seus próprios estados e eventos mentais (um tipo de 'argumento transcendental'). O que me incomoda é a suposição de Davidson de que a "presunção" em pauta — a de que o sujeito sabe o que significa com suas palavras, e "está usando sua própria linguagem corretamente" — é conseqüência do fato de que o sujeito usa suas palavras para referir-se ao que regularmente causou os estados e eventos mentais relevantes. Afinal, que razão Davidson oferece para a tese de que o agente ele próprio "não está em posição de se questionar sobre se em geral está usando suas próprias palavras de modo a aplicá-las aos objetos e eventos corretos", senão o fato de que esse sujeito, e nenhum outro, esteve em contato causal com os objetos aos quais se acostumou a aplicar suas palavras? Ora, se tudo o que resta para explicar a autoridade da primeira pessoa é o acesso privilegiado do sujeito à causa de seu próprio estado ou evento mental, então essa explicação ainda não se distancia suficientemente da imagem individualista. A meu ver, se essa autoridade deve ser explicada em termos efetivamente anti-individualistas, então deve ser explicada por meio da indicação de uma função especial dos enunciados auto-atributivos nas práticas lingüísticas humanas — e não apelando para uma diferença detectável apenas do ponto de vista do próprio sujeito, de uma forma quase (quase mesmo? qual outra senão?) perceptual. A análise causalista, portanto, não passa de uma maneira conveniente de preencher uma lacuna explicativa no argumento de Davidson, e, nessa medida, é no mínimo separável — mas possivelmente incompatível — com o que me parece ser a parte interessante desse argumento.

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Referências:

HACKER, P. M. S. Davidson on Intentionality and Externalism. Philosophy, n. 73, p. 539–552, 1998.
LUDLOW, P.; MARTIN, N. (Ed.). Externalism and Self-Knowledge. Standford, California: CSLI Publications, 1998.

12 comentários:

Anônimo disse...

Acho que sua crítica à solução de Davidson ao primeiro pressuposto da concepção tradicional de mente é pertinente. Na verdade, com os devidos reconhecimentos e agradecimentos, pretendo incluir tal crítica na minha apresentação do argumento de Davidson.

Sua crítica, em resumo: Davidson diz que pensamentos podem ser descritos ora como relativos, ora como não relativos, mas externalistas deveriam dizer que pensamentos são relativos.

Trata-se de um ponto sobre o qual pouco pensei e estudei até o momento.

Anônimo disse...

Outro ponto importante da sua crítica, você pergunta sobre a modalidade da seguinte tese:

(E) Pensamentos são relativos ao ambiente.

São consideradas duas alternativas:

(E') Necessariamente pensamentos são relativos ao ambiente.

(E") Contingentemente pensamentos são relativos ao ambiente.

Você atribui (E') a Kripke, Putnam e Burge, e (E") a Davidson.

Simpatizo com (E'), mas me falta uma visão mais clara do que está em jogo.

Anônimo disse...

Seu parêntese sobre a crítica de Hacker aos externalistas me parece importante, e peço mais detalhes, posts etc. sobre o mesmo. Você diz:

(1) Externalistas explicam a conexão entre mente e mundo por interações causais unidirecionais: Estados do mundo causam estados da mente, mas estados mentais não causam de maneira análoga estados do mundo.

(2) Tal análise traz para o interior do externalismo resquícios do modelo tradicional segundo o qual a mente está separada do mundo.

(3) Somente a partir do modelo tradicional faz sentido pensar em uma ligação contingente entre estados da mente e estados do mundo.

(4) Um externalismo que preserva elementos do modelo tradicional não é um externalismo.


Meu problema é entender como (1) se relaciona a (2). Por que supor que o mundano causa o mental, mas não vice versa, é supor o modelo tradicional de explicação do mental?

Anônimo disse...

Acho que aquilo que você espera das 'relações internas' de Hacker também pode ser alcançado através do 'adágio' davidsoniano que casos isolados de erro pressupõem um pano de fundo de acertos massivos.

Davidson diz que erros são exceções, pois os objetos sobre os quais pensamos são os mesmos que serviram para nosso aprendizado das palavras que empregamos nos pensamentos.

A palavra 'vermelho' e as coisas vermelhas não estão ligadas de maneira necessária, mas estão ligadas de maneira causal-histórica. É porque aprendemos a nomear coisas vermelhas do jeito que aprendemos que pensamos nas mesmas, quando nas mesmas pensamos. Mas trata-se de uma relação causal.

Anônimo disse...

A fixação da referência de 'vermelho' não é causal, isto é, não é nomeando coisas vermelhas que se fixa a referência de 'vermelho'? Teoria peculiar. Se o oposto genérico da mesma é o agostinianismo sobre os nomes, sou agostiniano.

Anônimo disse...

Bom, tudo o que não quero é uma linguagem autocontida e autônoma. Quem acompanhou ainda que de longe os debates sobre o já putrido mas ainda insepulto pós-modernismo sabe no que isso dá.

(Uma piada sobre pós-modernos: Certa vez um teórico pós-moderno disse que certo povo nunca gozou, pois a palavra 'orgasmo' não faz parte do seu vocabulário. Eles só respiravam porque a palavra 'oxigênio' fazia parte do mesmo.)

Anônimo disse...

Agora, algo curioso sobre a visão de Hacker e o externalismo:

(A) Para Hacker a ligação entre palavras simples como 'vermelho' e coisas simples como as superfícies vermelhas é 'interna'.

(B) Para Hacker a linguagem é autocontida, nada deve para o mundo exterior.

Bom, me parece que (A) e (B) são, justamente, aquilo que os externalistas chamam de visão tradicional da mente. Eis o que os filósofos vêm chamando de 'cartesianismo', embora Descartes talvez nada tenha a ver com isso.

Anônimo disse...

Mas, para ser mais justo: a visão tradicional trata da mente individual, da alma imortal de cada um, enquanto Hacker trata da linguagem, essa coisa intersubjetiva, creio eu. A diferença entre uma e outra é grande.

Anônimo disse...

Acho que a história sobre narrow content é um pouco mais complexa, mas fico devendo (ficarei devendo por meses e meses).

Anônimo disse...

Veja bem, o sujeito não chega a lugar nenhum se perguntando se é vermelho o que ele chama de vermelho porque, no seu vocabulário, as duas ocorrências de 'vermelho' se referem à mesma coisa, ao menos na interpretação usual das palavras do sujeito. Mas outra pessoa pode chegar a algum lugar ao ver que alguém usa vermelho para falar de vermelho, magenta etc.

O sujeito usualmente não sai da sua própria pele. Acho que o ponto de Davidson tem algum parentesco com o ponto de Moran que te interessa. (Não tenho como desenvolver a idéia.)

Anônimo disse...

Acho que aqui há um mal-entendido, pois o sujeito não tem acesso privilegiado à causa do seu estado mental. O acesso privilegiado é restrito ao estado mental.

Se tivéssemos acesso privilegiado à causa dos nossos estados mentais, poderíamos provar a priori a existência de tudo aquilo que pensamos empiricamente. Mas isso é absurdo. Logo, não temos acesso privilegiado à causa dos próprios estados mentais.

Quando S pensa que a água é molhada, S tem acesso privilegiado ao seu pensamento, mas não à causa do mesmo. Caso posteriormente ela tenha sido transportada à maneira dos experimentos da Terra Gêmea, ela passará a pensar que água-gêmea é molhada, tendo acesso privilegiado ao seu pensamento. Nem no primeiro nem no segundo caso S tem acesso privilegiado ao que causa seu pensamento.

Anônimo disse...

Do ponto de vista do sujeito não há diferença detectável sem investigação do ambiente.