quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Tradução de algumas passagens de Culture and Value

Culture and Value (University of Chicago Press, 1980) é uma coletânea de notas extraídas dos manuscritos de Wittgenstein entre os anos de 1914 e 1951, nas quais ele trata de vários assuntos mais ou menos relacionados à filosofia. Segue a tradução de algumas passagens que achei bem interessantes, divididas em algumas categorias:

Passagens ``kantianas''

Limite da linguagem e do entendimento, inefabilidade

O limite da linguagem é mostrado por ser impossível descrever o fato que corresponde a (é a tradução de) uma frase, sem simplesmente repetir a frase. (Isso tem a ver com a solução kantiana do problema da filosofia.) (CV, p. 10)

As pessoas continuam falando que a filosofia não progride realmente, que continuamos ocupados com os mesmos problemas filosóficos que preocupavam os gregos. é porque nossa linguagem permaneceu a mesma e continua nos seduzindo a perguntar as mesmas questões. Até quando continuar existindo um verbo `ser' que parece funcionar do mesmo modo que o verbo `comer' e `beber', até quando continuarmos tendo os adjetivos `idêntico', `verdadeiro', `falso', `possível', até quando continuarmos a falar de um rio do tempo, de uma porção (expanse) do espaço, etc. etc., as pessoas continuarão tropeçando sobre as mesmas dificuldades enigmáticas e encontrar-se-ão olhando fixamente para algo que nenhuma explicação parece capaz de clarificar.

E mais do que isso, isso satisfaz uma espera pelo transcendente, porque na medida em que pessoas pensam que podem ver os ``limites do entendimento humano'', elas acreditam é claro que podem ver além deles. (CV, p. 15)

Nada que fazemos pode ser defendido absolutamente e de maneira final. Mas apenas por referência a algo mais que não é questionado. [...]Talvez aquilo que é inexprimível (que eu acho misterioso e não sou capaz de exprimir) seja o pano de fundo contra o qual o que quer que eu possa exprimir adquira seu significado. (CV, p. 16)

Confusão ideal (protótipo) / objeto

[P]recisamos ser avisados acerca de qual é o objeto de comparação, o objeto a partir do qual esse modo de ver as coisas é derivado, pois de outro modo a discussão será constantemente afetada por distorções. Porque atribuiremos de maneira tudo ou nada (willy-nilly) as propriedades do protótipo ao objeto que estamos vendo sob sua luz; e afirmaremos ``deve sempre ser ...''.

Isso é porque queremos dar às características do protótipo um poder aquisitivo (a purchase) sobre nosso modo de representar as coisas. Mas uma vez que confundimos o protótipo e o objeto nos encontramos dogmaticamente conferindo ao objeto propriedades que apenas o protótipo necessariamente possui. Por outro lado, nós pensamos que nossa concepção não obterá a generalidade que queremos que ela obtenha se ela é realmente verdadeira apenas de um caso. Mas o protótipo deve ser claramente apresentado pelo que ele é; de modo que ele caracteriza toda a discussão e determina sua forma. Isso o torna o ponto focal, de modo que sua validade geral dependerá do fato de que ele determina a forma da discussão antes que da afirmação de que tudo que é verdadeiro apenas dele também vale para todas as coisas das quais se está discutindo. (CV, p. 14)

A Natureza da Filosofia e dos Problemas Filosóficos

A solução dos problemas filosóficos

A solução dos problemas filosóficos pode ser comparada com um presente num conto de fadas: no castelo mágico ele parece encantado e se você olha para ele do lado de fora à luz do dia não é nada além de um pedaço de ferro ordinário (ou algo do tipo). (CV, p. 11)

Armadilhas da linguagem

A linguagem prepara para todo mundo as mesmas armadilhas; ela é uma imensa rede de fáceis desvios errados. E assim assistimos um homem após outro andando pelos mesmos caminhos e sabemos com antecedência onde ele irá desviar para fora, onde caminhará reto sem notar o desvio lateral, etc. etc. O que eu tenho que fazer então é erguer sinais de trânsito em todas as junções onde há desvios errados de modo a auxiliar as pessoas a passar pelos pontos perigosos. (CV, p. 18)

O poder da linguagem de fazer tudo parecer o mesmo, que é mais claramente evidente no dicionário e que torna a personificação do tempo possível: algo não menos notável do que poderia ter sido a transformação de constantes lógicas em divindades. (CV, p. 22)

Estilo

Eu penso que resumi minha atitude em relação à filosofia quando disse: a filosofia realmente deveria ser escrita apenas como uma composição poética. Deve, parece-me, ser possível apanhar daí o quanto meu pensamento pertence ao presente, futuro ou passado. Pois eu estava desse modo revelando-me como alguém que não pode fazer exatamente o que ele gostaria de ser capaz de fazer. (CV, p. 24)

Expressivismo

A face é a alma do corpo. (CV, p. 23)

Ciência

O que um Copérnico ou um Darwin realmente obtiveram não foi a descoberta de uma nova teoria mas sim de um fértil novo ponto de vista. (CV, p. 18)

3 comentários:

Anônimo disse...

Vou colocar um link pr'estas traduções no artigo Witt da Wikipédia.

Anônimo disse...

Curioso trecho: As pessoas continuam falando que a filosofia não progride realmente, que continuamos ocupados com os mesmos problemas filosóficos que preocupavam os gregos. é porque nossa linguagem permaneceu a mesma e continua nos seduzindo a perguntar as mesmas questões. Até quando continuar existindo um verbo `ser' que parece funcionar do mesmo modo que o verbo `comer' e `beber', até quando continuarmos tendo os adjetivos `idêntico', `verdadeiro', `falso', `possível', até quando continuarmos a falar de um rio do tempo, de uma porção (expanse) do espaço, etc. etc., as pessoas continuarão tropeçando sobre as mesmas dificuldades enigmáticas e encontrar-se-ão olhando fixamente para algo que nenhuma explicação parece capaz de clarificar.

Nunca vi os problemas filosóficos desta maneira, e encontro dificuldade em achar justificação para tal visão. "Com licença, você está dizendo que problemas filosóficos são efeitos colaterais da linguagem?" A idéia me parece absolutamente injustificada. Me parece difícil ver como o problema da identidade pode ser reduzido a um problema lingüístico, só para dar um exemplo. Quero saber o que é, para uma coisa, ser uma coisa. O que isso tem a ver com a linguagem?

Isso pra não falar noutro ponto: Como assim a filosofia não progride? Olha, só pra dar um exemplo, do Descartes que acredita em graus do ser a nós que nos livramos disso houve muito progresso.

Estevao Moreira disse...

Olá César, interessante questão!

No contexto da filosofia de Wittgenstein, se uma coisa disser o que é ser coisa, pode ser que você (ou eu) não entenda o que é este "ser coisa", isto é, o que a coisa quis dizer a respeito de si. Isso pelo fato de que as palavras - e a linguagem - em si mesmas não são absolutas e não tem significado, a menos que estejam contextualizadas (ainda que num contexto intelectual).

A partir desta idéia dos jogos de linguagem, Wittgenstein conduz suas investigações filosóficas para a idéia de modos de vida, num sentido antropológico, apontando para diferentes lógicas - num sentido lato do termo lógica - ao ponto de, por exemplo, a palavra Deus remeter, para além de um arquétipo, a diferentes valores, relações, concepções (ou não-concepções) de tal.

Neste sentido, o "progresso" de se abster da idéia de "graus do ser" (de Descartes) não seria tão evidente. Seria uma petição de princípio crer que uma ou outra está mais ou menos correta. Elas seriam condizentes com o seu contexto histórico, social, filosófico etc.

Neste sentido, seria discutível - em minha opnião - dizer que houve progresso ao se abster de idéias de Platão ou Aristóteles. Compreendo, no entanto, que há mudanças e que, talvez, pode-se incorrer em anacronismo - e num retrocesso - ao se endossar Platão, Aristóteles ou Descartes indiscriminadamente. No entanto será um erro o "uso" da idéia, e não a idéia em si, autônoma: ou seja, a idéia em jogo.

É estranho falar em progresso de idéias de filósofos que já morreram e não puderam explicar "o que queriam dizer com..." ou ainda reformular seus projetos.

Mesmo com Wittgenstein que promoveu/sofreu uma mudança radical (das raízes) de seu pensamento filosófico - ilustrados no "primeiro" e "segundo" wittgesntein - fica difícil falar em progresso, tendo em vista que o Tractatus e as Investigações são trabalhos fundamentalmente distintos.

Será que consegui me fazer entender?

Saudações


Att
Estevão Moreira