terça-feira, novembro 29, 2005

A ``doutrina das ideias abstratas'' e a ``concepcao agostiniana da linguagem''

Ha um tempo atras escrevi um texto que poderia ser descrito, ecoando o titulo do livro de Henry Allison sobre o idealismo transcendental de Kant, de ``interpretacao e defesa'' do idealismo de Berkeley. Atraves de uma analise dos argumentos presentes no Tratado Sobre os Principios do Entendimento Humano (TP) e nos Tres Dialogos entre Hylas e Filonous (D), tentei mostrar que um dos principais objetivos de Berkeley ao defender seu "idealismo" foi barrar as ``conseqüências céticas'' acerca da confiabilidade de nossos sentidos, as quais derivariam da adoção de um determinado ideal de conhecimento modelado pela matemática e pela física matemática de seu tempo, que têm em Locke um de seus principais expoentes. Para tanto indiquei aqueles que, segundo Berkeley, teriam sido os três pilares sobre sobre os quais esse ceticismo estaria fundamentado, a saber: (i) a "doutrina das idéias abstratas", (ii) a "doutrina da matéria ou substância material", e (iii) a "suposição dos objetos externos" — i.e., a tese de que haveria "uma diferença entre coisas e idéias", sendo que as primeiras subsistiriam "fora do espírito ou impercebidas". Para esclarecer a critica de Berkeley a cada um desses pontos, alem da analise textual, tracei paralelos com os argumentos de Kant na Critica da Razao Pura, e de Wittgenstein nas Investigacoes Filosoficas. Agora, lendo o Blue Book (BB), fiquei ainda mais convencido da correcao do paralelo com este ultimo autor.

A meu ver, as consideracoes contidas no BB fornecem apoio ao paralelo nos tres casos apresentados acima (i--iii). Mas aqui gostaria de chamar atencao apenas para um caso, que eh o diagnostico de Berkeley acerca de como a "doutrina das idéias abstratas" estaria na origem do "ceticismo" que ele ataca. Cito a mim mesmo:

Desde o momento em que Berkeley começa a tratar desse tema, na Introdução do Tratado, ele deixa claro que o que pretende indicar, por meio da crítica às idéias abstratas, é um tipo de "abuso da linguagem" — abuso esse que seria a "origem principal da dúvida e da complexidade da especulação, como de erros e dificuldades inúmeras em todos os campos do conhecimento"1 . O "abuso" em questão nada mais é, na verdade, do que uma determinada compreensão filosófica do funcionamento da linguagem. A análise das seguintes passagens esclarece qual é o conteúdo dessa compreensão, e o modo como ela teria contribuído para o surgimento da doutrina das idéias abstratas:

Vejamos como as palavras contribuíram para este erro. Primeiro, pensa-se que cada nome deve ter um só significado definido ou preciso, que leva o homem a pensar que há certas idéias abstratas determinadas constitutivas da verdadeira e única significação de cada nome geral; e só por intermédio dessas idéias abstratas pode um nome geral significar uma coisa particular. (TP, Introdução, §18, p. 10)

Mas, para esclarecer como as palavras produziram a doutrina das idéias abstratas, observe-se que na opinião geral a linguagem só tem por fim comunicar idéias, e cada palavra significativa representa uma idéia. Sendo assim e sendo também certo que nomes considerados não inteiramente insignificativos nem sempre indicam idéias particulares concebeis, conclui-se imediatamente que eles representam noções abstratas. (TP, Introdução, §19, p. 10)


Nessas passagens Berkeley apresenta um análogo daquilo que Wittgenstein chamou de "concepção agostiniana da linguagem" 2 no contexto da "teoria das idéias". Essencialmente, segundo essa concepção, palavras são como nomes, e assim como nomes, sua única função é referir a algo — neste caso, dada a suposição da "teoria das idéias", este algo só pode ser uma idéia 3 . Ora, uma vez que há termos gerais, que não referem, obviamente, a nenhuma idéia particular, postula-se a existência de idéias abstratas para servirem de referente dessas palavras.
Tendo diagnosticado o modo como essa concepção "agostiniana" teria fundamentado a doutrina das idéias abstratas, Berkeley tratará de negá-la, mostrando que essa é uma imagem incorreta do funcionamento efetivo da linguagem. Seu argumento para esse fim tem dois estágios: primeiramente ele nos lembra que, mesmo nos casos em que palavras de fato funcionam como "nomes de idéias", não é condição necessária para a comunicação — nem mesmo para os "raciocínios mais estritos" — que elas "despertem na inteligência as idéias que devem representar"4 . Para mostrar isso Berkeley assinala que:

na leitura ou no discurso os nomes pela maior parte usam-se como as letras na álgebra, onde, embora cada quantidade particular seja representada por uma letra, não é preciso para proceder certo que em cada passo cada letra sugira ao pensamento a quantidade particular representada. (TP, Introdução, §19, p. 10)

O que essa analogia com as "letras na álgebra" pretende elucidar é o corriqueiro fenômeno lingüístico da deferência, ou remissão anafórica: do modo como nossas práticas lingüísticas efetivamente funcionam, podemos empregar palavras na comunicação — mesmo quando essas palavras funcionam como nomes para idéias — sem que necessariamente elas evoquem tais idéias nas mentes dos interlocutores, pois deferimos a referência dessas palavras às suas ocorrências iniciais no discurso, seja ele escrito ou falado.
O próximo passo de Berkeley consiste em lembrar que "a comunicação de idéias por palavras não é o fim principal ou único da linguagem"5 . "Há outros fins", continua ele, "como exaltar uma paixão, excitar ou combater uma ação, dar ao espírito uma disposição particular"6. Nesses últimos casos, ainda que inicialmente as palavras devam ter despertado as "idéias próprias para provocar aquelas emoções", ocorre freqüentemente que com o costume tais idéias sejam completamente suprimidas. Para mostrar isso Berkeley pergunta, retoricamente, se "Não podemos [...] ser afetados pela promessa de uma coisa boa, embora sem fazer idéia do que é? ", ou ainda se "Não pode a ameaça de um perigo bastar para causar pavor, embora ignoremos o mal que nos ameace nem formemos idéia de perigo em abstrato? "7 .
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[Notas: 1(TP, Introdução, §6, p. 6). 2(WITTGENSTEIN, 1976, cf. pp. 2--4, par. ŸŸ1--4). 3 Locke, por exemplo, assume claramente alguma espécie do que se poderia chamar de "teoria ideacional do significado", afirmando, por exemplo, que "o uso [...] das palavras é serem marcas sensíveis das idéias; e as idéias pelas quais elas ficam são sua significação própria e imediata." (LOCKE, 1952, p. 253, ŸIII.ii.1); ou ainda que "palavras, em sua significação imediata, são os signos sensíveis das idéias de quem as usa" (ibid. ŸIII.ii.2). 4(TP, Introdução, §19, p. 10). 5(TP, Introdução, §20, p. 10). 6Id. ibid. 7Id. ibid.]


No
Blue Book W. eh ainda mais claro no diagnostico das origens de certas confusoes filosoficas. Sobre as ``ideias abstratas'' (no caso dele, ``termos gerais'') ele afirma o seguinte:

Ha uma tendencia arraigada em nossas formas usuais de expressao, de pensar que um homem que aprendeu a compreender um termo geral, digamos, o termo ``folha'', veio desse modo a possuir um tipo de imagem de uma folha, como oposto a imagens de folhas particulares. Mostou-se a ele diferentes tipos de folhas quando ele aprendeu o significado do termo ``folha''; e mostrar a ele as folhas particulares era apenas um meio para o fim de produzir `nele' uma ideia que podemos imaginar como sendo algum tipo de imagem geral. [...] Estamos inclinados a pensar que a ideia geral de uma folha eh algo como uma imagem visual, mas uma que contem o que eh comum a todas as folhas. [...] Novamente isso se conecta com a ideia de que o significado de uma palavra eh uma imagem, ou uma coisa correlacionada com a palavra. (Isso grosseiramente significa que estamos olhando para as palavras como se elas fossem todas nomes proprios, e entao confundimos o possuidor do nome com o significado do nome).(pp. 17--18)

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Referencias

BERKELEY, G. Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano. In: Os Pensadores: Berkeley Hume. 2a. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 05–44. Tr. Antônio Sérgio.

BERKELEY, G. Três Diálogos entre Hylas e Filonous em Oposição aos Céticos e Ateus. In: Os Pensadores: Berkeley Hume. 2a. ed. S o Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 45–119. Tr. Antônio Sérgio.

LOCKE, J. An Essay Concerning Human Understanding. In: Great Books of the Western World: Locke, Berkeley, Hume. Chicago, London, Toronto, Genova: Britannica, 1952. p. 85–402.

WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Oxford: Basil Blackwell, 1976. Tr. G. E. M. Anscombe.

Um comentário:

Anônimo disse...

Sem entrar em consideração objetiva e emitir opinião sobre o conteúdo do seu Blog; pedindo inclusive desculpas pelo meu objetivo de informar, por meio do seu Blog, à sua pessoa e seus leitores sobre este mesmo assunto visto por outra ótica e também uma leitura objetiva sobre a Doutrina das Idéias; senão: leiam os meus oito Blogs sobre o assunto homossexualidade em atenção ao com endereço que segue: sobre a ADI 4277 e a ADPF 132 e a Resolução 175 do CNJ:
A DOUTRINA DAS IDÉIAS E/OU AS IDÉIAS QUE SE TEM DAS PALAVRAS ─ OITAVO BLOG SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE
www.doutrinadasideiasepalavras.blogspot.com

Atenciosamente JORGE VIDAL