Num comentário a um post anterior, o César fez as seguintes ``provocações'' acerca da tese wittgensteiniana de que o significado de uma palavra é, grosseiramente, o seu uso numa linguagem:
HACKER, P. M. S. Davidson on Intentionality and Externalism. Philosophy, n. 73, p. 539–552, 1998.
Curiosa essa tese de Hacker, "o significado de uma palavra é seu uso". O que é 'uso'? Pra lembrar do experimento de Burge. Bert usa 'artrite' para designar sua dor na coxa. Isso significa, para Hacker, que o significado de 'artrite' é 'aquilo que causa a dor na coxa de Bert'? Não é assim que costumamos falar em significado, eu acho. Isso é coisa de filósofo.
A importância de apresentar essas ``provocações'' do César é que penso que elas surgem espontaneamente para um leitor não acostumado ao tipo de tratamento dado por Wittgenstein, e por isso mesmo tentar esclarecê-las constitui um exercício bastante instrutivo.
Começo esclarecendo que a tese em pauta --- a de que "o significado de uma palavra é seu uso" --- não é de Hacker (que foi o autor citado em meu post), mas é explicitamente defendida pelo próprio W. em vários contextos (além de estar implícita em muitos outros). Apenas para dar alguns exemplos:
- ``Se tivermos que dar um nome a algo que dá a vida a um sinal, devemos dizer que é o seu uso'' ( Blue Book, p. 4);
- ``O significado de uma expressão para nós é caracterizado pelo uso que fazemos dela. O significado não é um acompanhante mental da expressão'' (ibid., p. 65);
- ``Para uma grande classe de casos --- ainda que não para todos --- nos quais empregamos a palavra ``significado'' ela pode ser definida assim: o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem.'' ( IF, sec. 43).
Frente a essas afirmações, naturalmente surge a questão feita pelo César acima: ``O que é 'uso'?''. Bem, em resposta a essa questão vale salientar, antes de mais nada, que, dado o procedimento argumentativo de W., não há nada mais errado do que buscar na obra desse autor uma definição, em sentido estrito, das noções de `significado' ou de `uso'. De fato, não há nada mais distante de seu projeto filosófico do que tentar fornecer definições, no sentido de forencer condições necessárias e suficientes para o emprego de um termo. O objetivo de W. na verdade é sobretudo negativo: trata-se de mostrar os problemas inerentes a várias assimilações feitas pelos filósofos na explicação do significado. Os principais exemplos de tais assimilações criticados por W. são:
i. o significado é o referente das palavras, i.e., a própria coisa que elas nomeiam (subjacente a essa tese está a chamada concepção agostiniana da linguagem, segundo a qual palavras funcionam como nomes);
ii. o significado é um tipo de acompanhamento mental (um processo, um sentimento, imagem mental, etc.) do uso das palavras.
Não é por acaso que no Blue Book, imediatamente após apresentar a questão sobre ``O que é o significado de uma palavra?'', ele toma um caminho indireto, e nos pede para ``Atacar a questão perguntando, primeiro, o que é uma explicação do significado de uma palavra; como a explicação do significado de uma palavra se parece?'' ( BB p. 1 --- cf. post anterior). Explorar o modo como aprendemos o significado de uma palavra é investigar como aprendemos a usá-la. É justamente com a intenção de livrar o filósofo da tentação de fazer assimilações apressadas como aquelas apresentadas acima (i--ii) que W. chamará atenção para certas analogias que existem, por exemplo, entre o uso das palavras e o uso de ferramentas (cf. IF sec. 11ss.), ou de peças em um jogo (cf. IF sec. 31ss.). Compreender o significado de uma palavra é saber empregá-la dentro de um sistema de regras, assim como saber usar uma peça num jogo de xadrez é saber movê-la conforme o sistema de regras desse jogo. Nesse sentido, a comparação da linguagem com um jogo tem a vantagem de deixar clara essa característica ``holística'' do uso das palavras; mas ela também serve a um outro propósito importante: o de ``dar proeminência ao fato de que falar uma linguagem é parte de uma atividade, ou de uma forma de vida'' (IF, sec. 23). Justamente por ser parte de uma forma de vida, a compreensão da gramática de nossa linguagem efetiva fornece um critério de correção e de significatividade para ``convenções'' alternativas, propostas pelos filósofos. Não há nenhuma razão última para não se propor novas convenções, novos ``jogos de linguagem'' --- a ciência e a matemática, por exemplo, na opinião de W., estão sempre fazendo isso (cf. e.g., IF, sec. 18). Mas na medida em que tais convenções se afastam mais da nossa forma de vida , elas vão gradualmente tornando-se incompreensíveis e sem sentido para nós.
Respondendo à observação sobre o experimento de Burge. Claro que Hacker não diria que `` o significado de 'artrite' é 'aquilo que causa a dor na coxa de Bert' ''. Uma resposta nesses termos causalistas pressupõe justamente a imagem que W. quer negar, a saber, a de que a palavra `artrite' fica por algo --- um tipo de ``objeto'' --- que seria o referente da mesma. Ninguem mais do que W. (e, por conseguinte, Hacker, na esteira dele) seria mais contrário a uma análise causal do significado, nessas linhas que sugeriste. O significado de `artrite' para W. e para Hacker, seria o mesmo que é para Burge, creio eu, e seria dado, grosseiramente, pela regra de uso do termo em nossa comunidade lingüística. Claro, isso não esclarece completamente o assunto, mas espero ao menos ter afastado a leitura causalista, mostrando como há mais proximidade entre W. e Burge, neste ponto. Cabe salientar, contudo, que a meu ver há uma grande distância separando externalistas contemporâneos e W. Tratei disso no post original comentado pelo César, e espero esclarecer isso numa oportunidade futura.
__________________________________
REFERÊNCIAS:
REFERÊNCIAS:
HACKER, P. M. S. Davidson on Intentionality and Externalism. Philosophy, n. 73, p. 539–552, 1998.
LUDLOW, P.; MARTIN, N. (Ed.). Externalism and Self-Knowledge. Standford, California: CSLI Publications, 1998.
WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Oxford: Basil Blackwell, 1976. Tr. G. E. M. Anscombe.
_______.The Blue and Brown Books. Harper Torchbooks, US / Basil Blackwell UK, 1960 (segunda edição)
3 comentários:
Apenas um teste para ver se foi desabilitada a confirmaçao por imagem.
Duas observações.
Primeiro, há proximidades entre Wittgenstein e o externalismo social. Vale a pena explorá-las.
Segundo, você faz bem quando apresenta duas distinções. Primeiro, entre 'nome' e 'sinal'. Segundo, entre 'explicação do significa' e 'teoria da referência'.
Sobre o externalismo social, é importante notar que esta não é a forma fundamental de externalismo. O externalismo mais básico é o externalismo perceptual, talvez mais próximo de Kant e mais distante de Wittgenstein.
Distinguir entre nomes e sinais em geral é importante. A teoria de Kripke nos trouxe luz sobre a identidade dos nomes, mas não necessariamente sobre a identidade dos sinais em geral. A teoria de Putnam nos trouxe luz sobre a identidade de termos, partículas semânticas subproposicionais. Quem foi mais longe foi Burge, o único, creio eu, a tentar iluminar o problema da identidade das palavras em geral. Mas o significado permanece um mistério, mesmo após Kripke, Putnam e Burge.
Concordo que vale a pena explorar as similaridades entre o externalismo social e o de W., e fazer as distinções que indicaste.
Sobre o externalismo social não ser a forma mais fundamental, bem, em que sentido uma ou outra espécie de externalismo pode ser dita fundamental? Sempre compreendi as diferenças como sendo mais de ênfase que qualquer outra coisa, e como complementando-se, no fim das contas. Justamente por isso costumo não tratar especificamente de uma ou outra forma, mas pensar na idéia geral do externalismo --- a de que o conteúdo de nossos pensamentos (etc.) não pode ser individuado por uma análise de características intrínsecas, não relacionais, ou ``internas'' dos mesmos --- quando comparo essa posição com as de Kant ou W. Mas, dito isso, também penso que na medida em que o externalismo perceptual flerta com uma teoria causal da percepção (TCP) --- e esse me parece ser o caso por exemplo em Kripke, Putnam, Davidson, Garret e muitos outros --- ele está tão longe de Kant quanto de W. No limite, supor uma TCP é supor a imagem que o externalismo deveria ter dissolvido, a saber, a da separação e isolamento entre mente e mundo. Por isso mesmo a concepção agostiniana da linguagem, que é fruto da suposição dessa imagem, parece combinar tão bem com essas formas de externalismo.
Postar um comentário