sábado, outubro 27, 2007

Mulhall e a natureza das discussões éticas

Estou lendo um novo artigo de Stephen Mulhall, no qual ele se defende de críticas apresentadas ao livro On Film (que eu recomendo!), e lá pelas tantas encontrei uma passagem muito interessante sobre a natureza das discussões morais. Transcrevo-a:

There is a strong philosophical tendency to think of moral disagreement on the model of opposing opinions about a particular course of action, with each opinion supported by more general ethical principles. But [...] moral disagreement can also be a matter of differing visions of what matters in human life, different conceptions of human flourishing in the world, and so on; and discussion here may well take the form of encouraging one's interlocutor not so much to change her mind about a particular course of action but to look at everything differently—and so to find moral significance where it did not previously seem to exist, as well as to find that what previously seemed highly morally significant was in fact trivial or even essentially illusory. (p. 290)

Gosto da idéia de que às vezes o que é necessário numa discussão ética não é apresentar princípios abstratos e discutir quais são melhores, mas antes tentar fazer com que o interlocutor veja as coisas de outro modo. Penso que boas obras de arte (especialmente cinema e literatura) servem justamente para permitir essa mudança de olhar.

Segue o link para uma lista de novos textos dos Proceedings of Aristotelian Society onde se encontra o artigo de Mulhall (e muito mais artigos interessantes):

http://www.blackwell-synergy.com/toc/pash/107/1pt3
_____________________
Referência:
Mulhall, Stephen. "Film as Philosophy: The Very Idea" In: Proceedings of the Aristotelian Society, Vol. CVII, Part 3, 2007

quinta-feira, outubro 25, 2007

Wittgenstein e a tentação do solipsismo: meu artigo na Barbaroi

Saiu na Barbaroi (Revista da Unisc), meu artigo sobre Wittgenstein e a tentação do solipsismo. Seguem o resumo e o abstract:

RESUMO: Uma preocupação recorrente nos escritos de Wittgenstein é diagnosticar as origens da tentação filosófica do solipsismo. O presente ensaio é uma tentativa de refazer alguns dos principais passos em direção a esse diagnóstico. O ensaio também pretende apresentar os principais passos em direção a uma “cura” para essa tentação. Ele o faz ilustrando o método filosófico receitado por Wittgenstein para tratar de várias outras “doenças do intelecto” que afligem os filósofos.


ABSTRACT:
A recurrent concern in Wittgenstein’s writings is to diagnose the origins of the philosophical temptation of solipsism. The present essay attempts to follow some of the main steps towards such a diagnosis. The essay also attempts to lay out the main steps toward a “cure” for that temptation. It does so by illustrating the philosophical method prescribed by Wittgenstein as remedy for many other “diseases of the intellect” which afflict the philosophers.

[Atualizado em 15/03/2008]



quinta-feira, outubro 11, 2007

Julliet Floyd, Solipsismo no Tractatus

Algumas notas a respeito do ótimo artigo de Julliet Floyd sobre o solipsismo no Tractatus.

A leitura resoluta do solipsismo no TLP:

O TLP não oferece uma teoria (figurativa) da significação, mas visa antes a minar a idéia de uma forma lógica, cuja articulação mais acabada se encontra na obra de Frege e Russell. O TLP é um texto essencialmente dialético (assim como toda obra posterior), e os "limites" que são apresentados a todo momento são degraus de uma escada que deve ser jogada fora. (p. 81-82).
O solipsismo é um dos mais persistentes refúgios do a priori, uma tentativa limitadora de impor um limite sobre o pensamento e a vida. (p. 82)
W. dialeticamente corta pela raiz a noção metafísica de um sujeito pensante no TLP (5.6 ss.) (p. 98-99)

Um dos objetivos do TLP é abandonar a concepção fregeana do modo como a lógica reflete o pensamento; Frege sustenta que os conceitos usados num juízo são precisos, que a lógica dita o caráter definido do sentido para cada pensamento e cada proposição. O pensamento assim compreendido (como algo definido, preciso, determinado, etc. -- por oposição às idéias) é considerado por Frege como condição da comunicação. (p. 99)

Nos NB W. lutou contra essa concepção do caráter definido do sentido, e o solipsismo por vezes parece se mostrar como a única alternativa: se a "análise lógica" não permite encontrar os elementos "simples" -- logicamente indefiníveis -- do pensamento, então a consciência privada é tudo que resta para tornar os pensamentos definidos (p. 99-100).

[cf. NB. p. 69-70; 21-22.6.15]

O que essa passagem dos NB mostra é que, para o olhar não cativo, o sentido de uma proposição como "o relógio está sobre a mesa" está ok, é bem determinado (numa situação concreta de uso) mesmo sem que haja condições gerais fixas e a priori. Apelar ao meu significado (privado) é apenas mais uma tentativa de apresentar condições gerais de sentido. O preço disso seria o solipsismo -- e a posição de Frege é o outro lado da moeda, na medida em que nos obriga a escolher entre pensamentos completamente determinados ou representações completamente privadas. (p. 100-101)

Ética e Suicídio:

Ética para W. (não apenas no TLP) sempre tem a ver com o pessoal por oposição ao público ou teórico (p. 102; cf. n. 23). Tomando-se o caso extremo do suicídio, vemos que W. sempre teve um horror ético a esse respeito (cf. NB p. 91). O suicídio é uma tentativa extrema de limitar o valor e a vida, de torná-los condicionais em relação a um ou outro pensamento ou evento. Cometer suicídio é tratar a vida e o mundo como objetos que podemos aceitar ou rejeitar de acordo com nossa vontade. Ele expressa uma recusa em se deixar absorver ou tornar-se ligado à vida. Mas é dessa conexão que depende toda possibilidade de valor, da ética e do sentido da vida e do mundo. (p. 102)

Um solipsismo diferente no TLP:
Pode-se falar de um outro tipo de "solipsismo", mas que é pessoal, e não metafísico ou transcendental: dar sentido à minha vida é dar sentido ao meu mundo, e isso implica sentir-me ligado ao meu mundo -- e não vê-lo como um tipo de objeto (um entre muitos). [Lembra os NB]

Essa poderia ser a "profunda necessidade" que, para W, seria erroneamente gratificada no idealismo/solipsismo: um desejo por absorção total no mundo e na vida, um sentimento de que não há lacuna entre a linguagem que eu entendo, o mundo que eu contemplo, e a vida que eu vivo. (p. 103) (cf. TLP 5.621 & 5.63)

Assim como o Tractatus nos mostra pensamento e compreensão sem pensamentos (fregeanos) determinados, fixados pela gramática ou lógica, ele também nos mostra uma vida sem nenhuma medida fixa do valor da vida. A noção tradicional de verdade eterna é supérflua (otiose) para a filosofia da lógica. Igualmente, a noção de imortalidade é supérflua para conferir significado à vida. A vida, assim como o campo visual, não tem limite. (TLP 6.4311-12) (p. 103-104)

O solipsismo é uma versão metafísica da solidão -- ou, talvez melhor dizendo, uma tentativa metafísica de sobrepujar a possibilidade da solidão. Se o solipsismo fosse verdadeiro, minha experiência onipresente e meu mundo onipresente seriam um. Eu me encontraria refletido em todas as coisas. (p. 104)

_________________
Referência:
"The Uncaptive Eye: Solipsism in Wittgenstein's Tractatus". In: Loneliness, Notre Dame: Boston University Studies in the Philosophy of Religion, 1998

Colóquio de Filosofia Analítica na UFRGS


segunda-feira, maio 07, 2007

Blade Runner e o problema das outras mentes: resumo da comunicação no cineclube

Blade Runner e o problema das outras mentes à luz das Investigações Filosóficas de Wittgenstein

Jônadas Techio

Resumo:

O que é um ser humano? Como distinguir seres humanos "legítimos" de réplicas que se comportam exatamente como os "originais"? Como sabemos que os indivíduos que nos rodeiam não são tais réplicas? Será que nós mesmos não somos réplicas?


Essas são algumas das questões que constituem o que ficou conhecido em filosofia como "problema das outras mentes". Ao tratar desse problema nas Investigações Filosóficas, Ludwig Wittgenstein (1889-1951) afirma que "apenas de um ser humano e do que se assemelha (comporta-se como) um ser humano vivo pode-se dizer: tem sensações; vê; é cego; ouve; é surdo; é consciente ou inconsciente" (IF, § 281). Mas é claro que essa não pode ser uma resposta para o problema das outras mentes---afinal, ela simplesmente pressupõe o que deveria explicar, a saber: o que conta como "critério de semelhança" para seres humanos? O intrigante é que nenhuma resposta definitiva a essa questão é apresentada ao longo do texto. Inúmeras hipóteses são analisadas e postas de lado, senão descartadas completamente, deixando o leitor com a incômoda sensação de não saber para que direção está sendo levado.

Uma reação análoga é provocada pelo filme Blade Runner, de Ridley Scott (1982). Nele somos confrontados com indivíduos chamados de "replicantes": seres gerados artificialmente (por meio de manipulação genética) que imitam perfeitamente a aparência externa dos humanos, e que, como perceberemos gradualmente, possuem um comportamento tão ou mais complexo que o de seus criadores. A primeira informação que recebemos sobre esses seres é bastante clara e inequívoca: eles são "monstrengos" ("skin-jobs"), e, mais do que isso, monstrengos perigosos, que precisam ser "tirados de circulação", ou "afastados" ("retired"). Essa informação é dada pelo capitão Bryant ao incumbir Deckard da perigosa tarefa de dar cabo dos replicantes. Mas o desenrolar da história se dá de maneira, por assim dizer, pendular, fazendo-nos (a nós e ao próprio Deckard) oscilar entre a atitude de Bryant e sua contrária. Assim, um teste inicialmente apresentado como infalível e conclusivo (devido à base científica que o informa) acaba se mostrando duvidoso (devido à variação no grau de seus resultados)---(será que o desalmado Bryant passaria por tal teste? e o frio caçador de andróides, terá aplicado o tese a si mesmo?); replicantes dotados de poderes "supra-humanos" (e, por conseguinte, não humanos, ou mesmo desumanos) se mostram sensíveis, apaixonados, amedrontados e frágeis---como os vidros de uma vitrine; uma jogada de mestre no xadrez---a qual abre as portas do "paraíso da biomecânica" para uma morte nietzschiana de Deus---indica a perfeição do raciocínio artificialmente desenvolvido, que iguala criador e criatura; uma bela mulher se transforma em autômata sem passado---torna-se "parte do negócio"---para depois reassumir sua autonomia, e transformar-se em amante do caçador de andróides; o caçador por fim torna-se presa, e a (antiga) presa---o (antigo) assassino---seu salvador. Tudo isso contribui para gerar uma atmosfera de dúvida e desconforto---as quais são condições essenciais para o começo da filosofia.

Assim como o trabalho do leitor das Investigações Filosóficas não termina ao final da leitura dessa obra, a tarefa filosófica da platéia de Blade Runner está apenas começando ao final do filme. Em ambos os casos, o que se espera que façamos não é continuar buscando uma resposta definitiva à questão inicial, mas antes uma compreensão das origens de nosso descontentamento com os fatos que nos foram apresentados. Na realidade, o problema todo reside no modo como olhamos para esses fatos, e não nos próprios fatos. A (dis)solução do problema das outras mentes exige que olhemos o mundo e os indivíduos à nossa volta de uma nova maneira, exige que deixemos de procurar o obstáculo a ser removido para possibilitar o reconhecimento do Outro no mundo "lá fora", para passar a procurá-lo dentro de cada um de nós. É por isso que nenhum critério apresentado para que algo conte como um "ser humano" será suficiente para que reconheçamos uma entidade particular como pertencendo à alçada desse conceito. (É por isso, por exemplo, que Rachel pode deixar de ser humana e depois voltar a sê-lo, sem que nada mude nela mesma (a não ser na medida em que ela mesma se toma como observadora de um certo objeto), mas apenas em quem a ). Essa mudança de olhar, a meu ver, é a principal lição a ser extraída tanto do tratamento wittgensteiniano do problema das outras mentes, quanto das boas histórias de ficção científica.


Mais informações no blog do cineclube.

quarta-feira, março 21, 2007

Wittgenstein sobre a natureza e método da filosofia

Segue a tradução de uma passagem das Cambridge Lectures na qual Wittgenstein trata da natureza e método da filosofia:

A filosofia pode começar com o bom senso, mas ela não pode permanecer no bom senso. Para dizer a verdade, a filosofia não pode começar com o bom senso porque a tarefa da filosofia é livrar-nos daquelas perplexidades que não surgem do bom senso. A nenhum filósofo falta bom senso na vida cotidiana. Por isso os filósofos não devem tentar apresentar posições idealistas ou solipsistas, por exemplo, como se elas fossem absurdas---indicando a alguém que apresenta essas posições que ele não se pergunta realmente se o bife é real ou se é uma ideia em sua mente, se sua esposa é real ou se apenas ele é real. É claro que ele não faz isso, e essa não é uma objeção adequada. Não se deve tentar evitar um problema filosófico apelando ao bom senso; ao invés disso, deve-se apresentá-lo de modo que ele surja com força máxima. Você deve deixar-se arrastar para a lama, e sair dela. Pode-se dizer que a filosofia consiste em três atividades: ver a resposta de bom senso, ingressar tão profundamente no problema que a resposta de bom senso se torne inaceitável, e voltar dessa situação à resposta de bom senso. Mas a resposta de bom senso em si mesma não é uma solução; todos sabem disso. Não se deve em filosofia tentar curto-cirtcuitar os problemas. (Wittgensteins Lectures: Cambridge 1932--1935; pp. 108--109)

sexta-feira, março 02, 2007

Wittgenstein sobre a dificuldade da filosofia

Como eu disse várias vezes, a filosofia não me leva a nenhuma renúncia, posto que não me abstenho de dizer nada, mas apenas abandono uma certa combinação de palavras como sem sentido. Em outro sentido, contudo, a filosofia requer uma resignação, mas que é do sentimento e não do intelecto. E talvez seja isso que a torna tão difícil para muitos. Pode ser difícil não usar uma expressão, assim como é difícil segurar as lágrimas num acometimento de raiva. (PO, p. 161)

[...] O que torna um assunto difícil de entender – se ele é significativo, importante – não é que alguma instrução especial sobre coisas abstrusas seja necessária para compreendê-lo. Trata-se antes do contraste entre o entendimento do assunto e o que a maioria das pessoas quer ver. Por causa disso as coisas que são mais óbvias podem se tornar as mais difíceis de compreender. O que devemos sobrepujar não é uma dificuldade do intelecto, mas da vontade. (PO, p. 161)

O trabalho em filosofia é [...] mais como uma espécie de trabalho em si mesmo. Na própria auto-concepção de cada um de nós. No modo como vemos as coisas. (PO, p. 161-3)

Uma das maiores dificuldades que encontro ao explicar o que quero dizer é esta: você está inclinado a colocar nossa diferença de um modo, como uma diferença de opinião. Mas não estou tentando persuadir você a mudar sua opinião. Estou apenas tentando recomendar uma espécie de investigação. Se há uma opinião envolvida, minha única opinião é que essa espécie de investigação é imensamente importante e muito contrária à inclinação [against the grain] de alguns de vocês. (WLFM, p. 103 -- trecho de um diálogo com Turing)

___________
REFERÊNCIAS:

(PO) Philosophical Occasions: 1912-1951. Indianapolis and Cambridge: Hackett, 1993.
(WLFM) Lectures on the Foundations of Mathematics. From the notes of R.G. Bosanquet, Norman Malcolm, Rush Rhees, & Yorick Smythies. Cora Diamond (ed.). Chicago: University of Chicago Press, 1975.As Investigações Filosóficas de Wittgenstein

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Wittgenstein sobre o método filosófico

Wittgenstein sobre o método filosófico:
Uma das tarefas mais importantes é expressar todos os falsos processos de pensamento de uma maneira tão característica que o leitor diga, "Sim, é exatamente isso que eu queria dizer". Para traçar a fisionomia de todo erro.
De fato só podemos convencer outra pessoa de que está equivocada se ela reconhece que essa é realmente a expressão de seu sentimento. [...]*

Essa afirmação está bem alinhada com a maneira como Stanley Cavell descreve, em The Claim of Reason, o que ele considera como uma crítica filosófica eficaz (e que ele atribui a Wittgenstein):

Uma crítica formidável do ceticismo -- bem como de qualquer filosofia séria -- terá que descobrir e alterar sua própria concepção de si mesma (p. 38)

É também nessa linha que os proponentes da leitura "revisionista" do Tractatus (penso aqui especificamente em Cora Diamond e James Conant) defendem que devemos compreender a idéia da "escada" a ser escalada e jogada fora pelo leitor dessa obra. Sem entrar no mérito "global" dessa leitura, penso que ela se sustenta pelo menos em relação ao tratamento do solipsismo no Tractatus (do qual falei neste post).
_______________________
*Excerto da seção 87 do texto publicado com o título "Philosophy", em Philosophical Occasions (Klagge & Norman (eds.), Hackett, Cambridge, 1993, pp. 161-199). Esse texto foi extraído do chamado "Big Typescript", seções 86-93)

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Jogando o bebê fora com a água do banho...

Peter Hacker, em WAS HE TRYING TO WHISTLE IT?:
"Throwing away the ladder is one thing, throwing away the baby together with the bathwater is another." (p. 20)

terça-feira, janeiro 30, 2007

Pensamentos e dúvidas sobre a leitura "revisionista" do Tractatus

(Texto organizado a partir de uma troca de emails com meu orientador, e de coisas que discuti com o Alexandre e o Giovani)

Uma das teses que mais me empolgaram na leitura proposta por Cora Diamond e James Conant para o Tractatus é a de que:

A tentação de imaginar que nós assumimos um ponto de vista do qual inspecionamos a linguagem como um todo (e avaliamos o que pode e o que não pode ser expresso na linguagem) subjaz a cada uma das outras tentações filosóficas que Wittgenstein aborda no Tractatus. (Conant, 1990: p. 349)


Mostrar que essa "perspectiva a partir de lugar algum" (PAPLA) é uma pseudo-perspectiva é algo que sempre me interessou, e é algo que guia minha leitura de vários autores além de Wittgenstein, dentre os quais Kant -- vejo o idealismo transcendental justamente como uma tentativa nesse mesmo sentido. Também gosto muito da tese de que, para obter esse resultado, o leitor do Tractatus precisa antes ser "picado pelo bixinho da filosofia" -- deve-se, por assim dizer, "dar corda para que ele se enforque". Citando Conant de novo:

O Tractatus visa mostrar que [...] "eu não posso usar a linguagem para ir para fora da linguagem" [...]. Ele alcança esse objetivo encorajando-me [i.e., ao leitor] primeiro a supor que eu posso usar a linguagem de tal forma, e então permitindo-me manejar as (aparentes) conseqüências dessa (pseudo)suposição, até encontrar o ponto no qual minha impressão de haver uma suposição determinada (cujas conseqüências eu estive explorando até aqui) se dissolve ante mim. (Conant, 2002: pp. 421-422)


A ilusão da PAPLA deve ser "explodida a partir de dentro", quando compreendemos como nossa linguagem efetivamente funciona e percebemos o sem-sentido das (pseudo-)proposições que tentam expressar essa (pseudo-)possibilidade. Para tanto é necessário seguir os passos do Tractatus, aceitando seu ponto de partida e fazendo um esforço para acompanhar a (aparente) cadeia de teses organizadas dedutivamente que levam a até a PAPLA.

Isso tudo é muito vago, mas é algo que penso que "tem futuro". Algo que acho muito mais complicado é compreender a distinção entre a "moldura" e o "corpo" da do Tractatus -- o que é simples sem-sentido (einfach Unsinn), e o que são proposições a respeito do método da obra (são essas as únicas que não são einfach Unsinn?). Estou certo de que essa não pode ser uma caracterização, por assim dizer, intrínseca, das proposições do Tractatus -- como se houvessem duas categorias exaustivas e autoexcludentes, dentro das quais pudéssemos jogar um número definido de proposições tractarianas. Um ensimamento que me parece central no Tractatus é que nenhuma proposição é intrinsecamente com ou sem sentido (cf. e.g. 3.326). É a relação do leitor com as proposições dessa obra que as torna uma coisa ou outra. Uma espécie de "mudança de aspecto" deve ser operada por cada um de nós visando a uma compreensão correta da lógica da nossa linguagem -- por contraposição ao einfach Unsinn que resulta do emprego desses símbolos num ambiente em que "a linguagem saiu de férias".

Operar essa mudança é compreender como as "minhas [de Wittgenstein] proposições elucidam" (6.54). Tomando um exemplo concreto: em 3.3 W. afirma que: "Só a proposição tem sentido; é só no contexto da proposição que um nome tem significado"; numa certa leitura, penso que mesmo do ponto de vista das Investigações Filosóficas não há nada a se objetar quanto a essa proposição -- a não ser, talvez, pelo fato de ela não ir longe o suficiente: proposições também não tem sentido isoladamente, mas apenas quando são usadas num contexto específico, num jogo de linguagem efetivo. Por outro lado -- segundo uma outra leitura -- tudo nela é objetável: para economizar palavras, ela parece sugerir uma teoria filosófica a respeito da linguagem que se assemelha muito à "descrição de Agostinho" (IF #1). Isso porque, antes de mais nada, 3.3 só fala de nomes -- e não de palavras em geral; somando-se isso à (pseudo-?)teoria de fundo do Tractatus, segundo a qual nossas proposições devem decompor-se em nomes simples, os quais nomeiam (denotam) objetos simples, será que não caberia a observação de W. em IF1 segundo a qual "as demais espécies de palavras [i.e., além dos nomes] tomarão conta de si mesmas"? Ou seja, a análise uma hora ou outra vai mostrar que no fundo essa redução é possível, o que faz da relação de nomeação algo essencial para que nossa linguagem tenha sentido.

(Isso não quer dizer que a crítica à "concepção agostiniana" dirige-se imediatamente contra o Tractatus, nem contra nenhum filósofo ou posição filosófica efetiva defendida no decorrer da história da filosofia. Se bem a compreendo, essa crítica se dirige contra uma espécie de imagem geral e "proto-teórica", por assim dizer, a respeito do funcionamento da nossa linguagem -- a qual subjaz a muitas "teorias do significado". Ora, se o Tractatus almeja efetuar em cada um de nós uma certa "terapia" lingüística, porque não pensar que a "teoria da linguagem" nele apresentada visa justamente a dar o máximo de carne e de plausibilidade a essa imagem?)
____________________
Referências:

Conant, James. "Throwing Away the Top of the Ladder" (The Yale Review, Vol. 79, no. 3 (Nov. 1990))

____. "The Method of the Tractatus" (Reck E. (ed), From Frege to Wittgenstein: Perspectives on Early Analytic Philosophy, Oxford UP, 2002);

sexta-feira, janeiro 26, 2007

O mundo como o grande besouro na caixa do solipsista

Ocorreu-me um paralelo inusitado entre o famoso "argumento do besouro na caixa" apresentado por Wittgenstein nas IF (#293) e o "argumento" (se é que se pode dar esse nome) tractariano segundo o qual o solipsismo levado às últimas conseqüências "coincide com o puro realismo" (TLP, #5.64).

Vamos primeiro ao texto das IF:

Suponhamos que cada um de nós tivesse uma caixa com algo dentro dela: nós chamamos isso de um "besouro". Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um besouro apenas a partir da visão do seu besouro. --- Poderia ser que cada um tivesse algo diferente em sua caixa. Poderíamos mesmo imaginar que tal coisa se modificasse continuamente. --- Mas, e se a palavra "besouro" tivesse um uso para essas pessoas? --- Neste caso, não seria o de designar uma coisa. A coisa da caixa não pertence, de modo nenhum, ao jogo de linguagem nem mesmo como um algo: pois a caixa poderia também estar vazia. --- Não, pode-se 'abreviar' a coisa na caixa[*]; seja o que for, é suprimido. (IF, #293)
Como é sabido, esse argumento visa demonstrar a vacuidade da teoria filosófica que interpreta a "gramática das expressões de sensação segundo o modelo de 'objeto e designação'". Mas não é isso que me importa salientar agora. Antes quero esboçar o paralelo entre a análise desse jogo de linguagem e a análise da "verdade do solipsismo" no TLP. A idéia é mais ou menos a seguinte: assim como a "coisa" na caixa seria irrelevante para o uso da palavra "besouro" no jogo acima, o "ponto de vista" do "eu metafísico" seria completamente irrelevante na descrição do mundo. É por isso que esse "eu" não constaria no livro O mundo tal como o encontro (TLP, 5.631). Mas é também por isso que "o solipsismo, levado às últimas conseqüências, coincide com o puro realismo"; levar o solipsismo às últimas conseqüências, como W. afirma na sequencia, implica que "o eu do solipsismo reduz-se a um ponto sem extensão e resta a realidade coordenada com ele". O que estou sugerindo é que devemos levar ao pé da letra a afirmação de que esse suposto "eu" vira um ponto sem extensão --- ele vira um nada, algo que podemos "abreviar", como a "coisa" na caixa.

Na verdade o paralelo não parecerá tão inusitado se tivermos em mente o contexto do argumento de
IF (#293): o sujeito com o besouro na caixa é cada um de nós, vistos do ponto de vista de um defensor da privacidade das sensações, e o "besouro" são justamente essas sensações, observáveis apenas do nosso próprio ponto de vista. Essa imagem da "privacidade" é uma das forças que impelem o filósofo em direção ao solipsismo. Pode-se dizer que W. está fazendo em ambos os casos é "cortar o barato" do filósofo candidato a solipsista logo de saída: no caso do argumento das IF, mostrando que o que ele queria resgardar com seu modelo do 'objeto e designação' -- a "sensação privada" -- acaba sendo suprimido num (possível) contexto efetivo de uso da "notação" que ele propõe; no caso do TLP mostrando que isso que parecia tão bacana e importante -- a perspectiva privilegiada do sujeito metafísico -- não é na realidade prespectiva nenhuma.

Mas se é assim, então o mesmo deve valer para o "mundo como totalidade limitada" que é apresentado ao final do TLP como o objeto de contemplação mística do "eu metafísico" (cf. TLP 6.431 e seguintes). Ou seja, o uso da palavra "mundo" nessas proposições deve ser tomado como análogo ao da palavra "besouro" no argumento das IF . Seja qual for esse uso, ele não designa nada.

______________________
[*] Nota referente à tradução: tanto a edição brasileira da coleção Pensadores quanto a da Vozes tornam essa frasesem-sentido. Ambas adotam "abreviar" como tradução de "gekürzt werden" -- que na tradução de Anscombe ficou "divide through". Não há problemas com a escolha desse termo, contanto que se compreenda o que ele quer dizer no contexto: podemos "atalhar", esquecer a coisa na caixa. Mas as construções frasais de ambas as edições citadas obscurecem (para dizer o mínimo) esse sentido. Na dos Pensadores lemos: "Não, por meio desta coisa na caixa, pode-se 'abreviar'"; já na da Vozes lemos: "Não, pode-se 'abreviar' por meio desta coisa na caixa";

Leituras de sexta #2: Uma conversa imaginária entre Wittgenstein e Sraffa

The Golden BoughExtraído de: De Zengotita, "On Wittgenstein's Remarks on Frazer's Golden Bough", Cultural Anthropology, V. 4 N. 4, (Nov. 1989), pp. 390-398.
Um dia, um jovem economista italiano com interesse em filosofia fez uma visita a Wittgenstein. A conversa esquentou. "Que me diz disso", o jovem indagou, raspando sua mão voltada para fora debaixo do queixo num gesto italiano característico de desacato, "que me diz disso? Isso é linguagem?" Por um momento o Mestre olhou para a mão do jovem. Seu olhar aos poucos se tornou introspectivo; [...] a mão sendo raspada era desacato. "Meu Deus", suspirou Wittgenstein, "eu estava errado". A lógica sublime que amarrava o mundo (além de toda "nebulosidade empírica", a "coisa mais dura que há", "o mais puro cristal") vergou como um fio de teia de aranha e se fundiu com o mundo vivido. (p. 392)
Gosto do tom da passagem, mas prefiro a versão que conta que a pergunta de Piero Sraffa foi "E qual é a forma lógica disso?"

Leituras de sexta #1: Confúcio, "The Great Learning"

Confucius The Great LearningResumo tosco: se quiser conhecer a si mesmo, conheça o mundo primeiro. Externalismo puro.

Things have their root and their branches. Affairs have their end and their beginning. To know what is first and what is last will lead near to what is taught in the Great Learning.

The ancients who wished to illustrate illustrious virtue throughout the kingdom, first ordered well their own states. Wishing to order well their states, they first regulated their families. Wishing to regulate their families, they first cultivated their persons. Wishing to cultivate their persons, they first rectified their hearts. Wishing to rectify their hearts, they first sought to be sincere in their thoughts. Wishing to be sincere in their thoughts, they first extended to the utmost their knowledge. Such extension of knowledge lay in the investigation of things.

Things being investigated, knowledge became complete. Their knowledge being complete, their thoughts were sincere. Their thoughts being sincere, their hearts were then rectified. Their hearts being rectified, their persons were cultivated. Their persons being cultivated, their families were regulated. Their families being regulated, their states were rightly governed. Their states being rightly governed, the whole kingdom was made tranquil and happy.

quarta-feira, janeiro 24, 2007

The Origins of Selves, de Daniel C. Dennett

Link:  The Origins of Selves


Referência do original: "The Origins of Selves", Cogito, 3, 163-73, Autumn 1989. Reprinted in Daniel Kolak and R. Martin, eds., Self & Identity: Contemporary Philosophical Issues, Macmillan, 1991.

domingo, janeiro 21, 2007

Links para alguns guias de estudo sobre Wittgenstein, no SparkNotes

O link para o guia mais geral, sobre Wittgenstein, é este. Há também guias mais específicos, tais como os seguintes:
Tudo isso está no Sparknotes, um serviço muito interessante. Todos os guias podem ser baixados em formato pdf, por valores bem razoáveis.

The "Wittgenstein on Rules and Private Language" Ultimate HomePage

An electronic companion to Saul Kripke's classic text, Wittgenstein on Rules and Private Language. Link here.

sábado, janeiro 20, 2007

First-Person Knowledge: Wittgenstein, Cavell, and ‘Therapy’

Meyer, Thomas (2002) First-Person Knowledge: Wittgenstein, Cavell, and ‘Therapy’. In Kanzian, Christian and Quitterer, Josef and Runggaldier, Edmund, Eds. Proceedings Wittgenstein Symposium Kirchberg X, pages pp. 159-161, Kirchberg am Wechsel. Full text available as PDF here.

Textos de G. E. M. Anscombe online


  • "The First Person" (Publicado em: Samuel Guttenplan (ed.), Mind and Language (Oxford: Clarendon Press, 1975), pp. 45-65.)

terça-feira, janeiro 02, 2007

Cavell sobre o autoconhecimento em Wittgenstein

Uma passagem de Stanley Cavell sobre o "autoconhecimento" em Wittgenstein --- extraída de "The Availability of Wittgenstein's Later Philosophy" (In: Shanker, Stuart (Ed.), Ludwig Wittgenstein: Critical Assessments, Vol. II; Routledge, 1996).
Outros filósofos, eu creio, estão sob a impressão de que Wittgenstein nega que podemos saber o que nós pensamos e sentimos, e mesmo que podemos conhecer a nós mesmos. Essa ideia extraordinária se origina, sem dúvida, de observações de Wittgenstein tais como: "Eu posso saber o que outra pessoa está pensando, não que eu estou pensando" ([IF] II, p. 222); "Não se pode dizer a meu respeito de modo algum (exceto, talvez, como uma brincadeira) que eu sei que estou com dor" ([IF] #246). Mas o "pode" ou "não pode" nessas observações são gramaticais; eles querem dizer "não faz sentido dizer essas coisas" (do modo que pensamos que faz); igualmente, portanto, não faria nenhum sentido dizer a meu respeito que eu não sei no que eu estou pensando, ou que eu não sei que estou com dor. A conseqüência não é que eu não posso conhecer a mim mesmo, mas que conhecer a si mesmo --- ainda que radicalmente diferente do modo como conhecemos aos outros --- não é uma questão de conhecer (classicamente, "intuir") atos mentais e sensações particulares . (p. 54 -- negrito adicionado)