terça-feira, janeiro 30, 2007

Pensamentos e dúvidas sobre a leitura "revisionista" do Tractatus

(Texto organizado a partir de uma troca de emails com meu orientador, e de coisas que discuti com o Alexandre e o Giovani)

Uma das teses que mais me empolgaram na leitura proposta por Cora Diamond e James Conant para o Tractatus é a de que:

A tentação de imaginar que nós assumimos um ponto de vista do qual inspecionamos a linguagem como um todo (e avaliamos o que pode e o que não pode ser expresso na linguagem) subjaz a cada uma das outras tentações filosóficas que Wittgenstein aborda no Tractatus. (Conant, 1990: p. 349)


Mostrar que essa "perspectiva a partir de lugar algum" (PAPLA) é uma pseudo-perspectiva é algo que sempre me interessou, e é algo que guia minha leitura de vários autores além de Wittgenstein, dentre os quais Kant -- vejo o idealismo transcendental justamente como uma tentativa nesse mesmo sentido. Também gosto muito da tese de que, para obter esse resultado, o leitor do Tractatus precisa antes ser "picado pelo bixinho da filosofia" -- deve-se, por assim dizer, "dar corda para que ele se enforque". Citando Conant de novo:

O Tractatus visa mostrar que [...] "eu não posso usar a linguagem para ir para fora da linguagem" [...]. Ele alcança esse objetivo encorajando-me [i.e., ao leitor] primeiro a supor que eu posso usar a linguagem de tal forma, e então permitindo-me manejar as (aparentes) conseqüências dessa (pseudo)suposição, até encontrar o ponto no qual minha impressão de haver uma suposição determinada (cujas conseqüências eu estive explorando até aqui) se dissolve ante mim. (Conant, 2002: pp. 421-422)


A ilusão da PAPLA deve ser "explodida a partir de dentro", quando compreendemos como nossa linguagem efetivamente funciona e percebemos o sem-sentido das (pseudo-)proposições que tentam expressar essa (pseudo-)possibilidade. Para tanto é necessário seguir os passos do Tractatus, aceitando seu ponto de partida e fazendo um esforço para acompanhar a (aparente) cadeia de teses organizadas dedutivamente que levam a até a PAPLA.

Isso tudo é muito vago, mas é algo que penso que "tem futuro". Algo que acho muito mais complicado é compreender a distinção entre a "moldura" e o "corpo" da do Tractatus -- o que é simples sem-sentido (einfach Unsinn), e o que são proposições a respeito do método da obra (são essas as únicas que não são einfach Unsinn?). Estou certo de que essa não pode ser uma caracterização, por assim dizer, intrínseca, das proposições do Tractatus -- como se houvessem duas categorias exaustivas e autoexcludentes, dentro das quais pudéssemos jogar um número definido de proposições tractarianas. Um ensimamento que me parece central no Tractatus é que nenhuma proposição é intrinsecamente com ou sem sentido (cf. e.g. 3.326). É a relação do leitor com as proposições dessa obra que as torna uma coisa ou outra. Uma espécie de "mudança de aspecto" deve ser operada por cada um de nós visando a uma compreensão correta da lógica da nossa linguagem -- por contraposição ao einfach Unsinn que resulta do emprego desses símbolos num ambiente em que "a linguagem saiu de férias".

Operar essa mudança é compreender como as "minhas [de Wittgenstein] proposições elucidam" (6.54). Tomando um exemplo concreto: em 3.3 W. afirma que: "Só a proposição tem sentido; é só no contexto da proposição que um nome tem significado"; numa certa leitura, penso que mesmo do ponto de vista das Investigações Filosóficas não há nada a se objetar quanto a essa proposição -- a não ser, talvez, pelo fato de ela não ir longe o suficiente: proposições também não tem sentido isoladamente, mas apenas quando são usadas num contexto específico, num jogo de linguagem efetivo. Por outro lado -- segundo uma outra leitura -- tudo nela é objetável: para economizar palavras, ela parece sugerir uma teoria filosófica a respeito da linguagem que se assemelha muito à "descrição de Agostinho" (IF #1). Isso porque, antes de mais nada, 3.3 só fala de nomes -- e não de palavras em geral; somando-se isso à (pseudo-?)teoria de fundo do Tractatus, segundo a qual nossas proposições devem decompor-se em nomes simples, os quais nomeiam (denotam) objetos simples, será que não caberia a observação de W. em IF1 segundo a qual "as demais espécies de palavras [i.e., além dos nomes] tomarão conta de si mesmas"? Ou seja, a análise uma hora ou outra vai mostrar que no fundo essa redução é possível, o que faz da relação de nomeação algo essencial para que nossa linguagem tenha sentido.

(Isso não quer dizer que a crítica à "concepção agostiniana" dirige-se imediatamente contra o Tractatus, nem contra nenhum filósofo ou posição filosófica efetiva defendida no decorrer da história da filosofia. Se bem a compreendo, essa crítica se dirige contra uma espécie de imagem geral e "proto-teórica", por assim dizer, a respeito do funcionamento da nossa linguagem -- a qual subjaz a muitas "teorias do significado". Ora, se o Tractatus almeja efetuar em cada um de nós uma certa "terapia" lingüística, porque não pensar que a "teoria da linguagem" nele apresentada visa justamente a dar o máximo de carne e de plausibilidade a essa imagem?)
____________________
Referências:

Conant, James. "Throwing Away the Top of the Ladder" (The Yale Review, Vol. 79, no. 3 (Nov. 1990))

____. "The Method of the Tractatus" (Reck E. (ed), From Frege to Wittgenstein: Perspectives on Early Analytic Philosophy, Oxford UP, 2002);

Um comentário:

Alexandre N. Machado disse...

Gostei muito desse post. Compartilho contigo tuas desconfianças com relação a uma perspectiva de lugar nenhum, embora esso seja uma maneira desfavorável de apresentar a tese em questão, pois nessa formulação a tese é francamente contraditória. Uma perspectiva é uma perspectiva justamente porque é de algum lugar e não dos demais. Mas talvez esse seja o caminho para mostrar a vacuidade dessa tese: tentar reformulá-la e constatar que não há formulação satisfatória.

Mas tenho reservas com relação à seguinte observação: "Um ensimamento que me parece central no Tractatus é que nenhuma proposição é intrinsecamente com ou sem sentido (cf. e.g. 3.326). É a relação do leitor com as proposições dessa obra que as torna uma coisa ou outra". Eu acho que daquele ensinamento não se segue nada de substancial com relação à controvérsia revisionista. Além disso, por que o leitor tem esse privilégio? Por que não é a relação do autor com as proposições dessa obra que as torna uma coisa ou outra? Se tem alguém privilegiado aqui, trata-se do autor. Suponha que um comandante de um batalhão enviasse uma mensagem a um soldado sobre o que fazer com os prisioneiros. A mensagem diz: "Soltar não matar" (sem vírgula). O comandante quiz dizer "Soltar, não matar" e o soldado a interpreta como se dissesse "Solta não, matar". Nesse caso, o soldado estará simplesmente errado. É claro que, ao interpretá-las como fez, o soldado deu sentido àquelas palavras da mensagem, que, em si mesmas, não o têm. Mas sua interpretação está errada, pois não é essa interpretação que comandante queria que o soldado fizesse de suas palavras. Por que o caso do TLP é diferente?

É claro que há a possibilidade de sinais serem usados propositalmente desprovidos de sentido. Mas se essa foi a intenção do emissor, então qualquer sentido que um receptor (que pode ser o próprio emissor) der a esses sinais será a expressão de falta de entendimento do seu uso, isto é, do uso feito pelo emissor dos sinais.

Há uma terceira possibilidade? O uso de sinais pode ser indiferente aos propósitos de dizer alguma coisa ou de não dizer coisa alguma?