sexta-feira, janeiro 26, 2007

O mundo como o grande besouro na caixa do solipsista

Ocorreu-me um paralelo inusitado entre o famoso "argumento do besouro na caixa" apresentado por Wittgenstein nas IF (#293) e o "argumento" (se é que se pode dar esse nome) tractariano segundo o qual o solipsismo levado às últimas conseqüências "coincide com o puro realismo" (TLP, #5.64).

Vamos primeiro ao texto das IF:

Suponhamos que cada um de nós tivesse uma caixa com algo dentro dela: nós chamamos isso de um "besouro". Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um besouro apenas a partir da visão do seu besouro. --- Poderia ser que cada um tivesse algo diferente em sua caixa. Poderíamos mesmo imaginar que tal coisa se modificasse continuamente. --- Mas, e se a palavra "besouro" tivesse um uso para essas pessoas? --- Neste caso, não seria o de designar uma coisa. A coisa da caixa não pertence, de modo nenhum, ao jogo de linguagem nem mesmo como um algo: pois a caixa poderia também estar vazia. --- Não, pode-se 'abreviar' a coisa na caixa[*]; seja o que for, é suprimido. (IF, #293)
Como é sabido, esse argumento visa demonstrar a vacuidade da teoria filosófica que interpreta a "gramática das expressões de sensação segundo o modelo de 'objeto e designação'". Mas não é isso que me importa salientar agora. Antes quero esboçar o paralelo entre a análise desse jogo de linguagem e a análise da "verdade do solipsismo" no TLP. A idéia é mais ou menos a seguinte: assim como a "coisa" na caixa seria irrelevante para o uso da palavra "besouro" no jogo acima, o "ponto de vista" do "eu metafísico" seria completamente irrelevante na descrição do mundo. É por isso que esse "eu" não constaria no livro O mundo tal como o encontro (TLP, 5.631). Mas é também por isso que "o solipsismo, levado às últimas conseqüências, coincide com o puro realismo"; levar o solipsismo às últimas conseqüências, como W. afirma na sequencia, implica que "o eu do solipsismo reduz-se a um ponto sem extensão e resta a realidade coordenada com ele". O que estou sugerindo é que devemos levar ao pé da letra a afirmação de que esse suposto "eu" vira um ponto sem extensão --- ele vira um nada, algo que podemos "abreviar", como a "coisa" na caixa.

Na verdade o paralelo não parecerá tão inusitado se tivermos em mente o contexto do argumento de
IF (#293): o sujeito com o besouro na caixa é cada um de nós, vistos do ponto de vista de um defensor da privacidade das sensações, e o "besouro" são justamente essas sensações, observáveis apenas do nosso próprio ponto de vista. Essa imagem da "privacidade" é uma das forças que impelem o filósofo em direção ao solipsismo. Pode-se dizer que W. está fazendo em ambos os casos é "cortar o barato" do filósofo candidato a solipsista logo de saída: no caso do argumento das IF, mostrando que o que ele queria resgardar com seu modelo do 'objeto e designação' -- a "sensação privada" -- acaba sendo suprimido num (possível) contexto efetivo de uso da "notação" que ele propõe; no caso do TLP mostrando que isso que parecia tão bacana e importante -- a perspectiva privilegiada do sujeito metafísico -- não é na realidade prespectiva nenhuma.

Mas se é assim, então o mesmo deve valer para o "mundo como totalidade limitada" que é apresentado ao final do TLP como o objeto de contemplação mística do "eu metafísico" (cf. TLP 6.431 e seguintes). Ou seja, o uso da palavra "mundo" nessas proposições deve ser tomado como análogo ao da palavra "besouro" no argumento das IF . Seja qual for esse uso, ele não designa nada.

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[*] Nota referente à tradução: tanto a edição brasileira da coleção Pensadores quanto a da Vozes tornam essa frasesem-sentido. Ambas adotam "abreviar" como tradução de "gekürzt werden" -- que na tradução de Anscombe ficou "divide through". Não há problemas com a escolha desse termo, contanto que se compreenda o que ele quer dizer no contexto: podemos "atalhar", esquecer a coisa na caixa. Mas as construções frasais de ambas as edições citadas obscurecem (para dizer o mínimo) esse sentido. Na dos Pensadores lemos: "Não, por meio desta coisa na caixa, pode-se 'abreviar'"; já na da Vozes lemos: "Não, pode-se 'abreviar' por meio desta coisa na caixa";

5 comentários:

Anônimo disse...

Já leste “Does Bismarck Have A Beetle in His Box”, de Cora Diamond?

Anônimo disse...

Que Wittgenstein tinha um propósito terapêutico no Tractatus não é controvérsia. E tu procuras mostrar como podemos ver isso sendo feito em uma passagem do texto. Mas a controvérsia reside na questão sobre se essa terapia está ou não baseada em algum tipo de acesso não teórico à essência da realidade, da linguagem, do pensamento e do sujeito.

Cé S. disse...

Postagem bem bacana.

Acho que, levando a conversa em direção a Descartes, o meditador da Terceira Meditação concordaria, mais ou menos, que levar o solipsismo às últimas conseqüências seria chegar a algo como o "realismo puro" -- isto é, à identidade indubitável entre o que aparece ao sujeito e o que é. Mas o meditador, nessa Meditação e nas outras, enquanto luta para estabelecer bases sólidas para a ciência, vê-se longe de tal "realismo puro", e isso ocorre, em parte, porque o meditador sabe que a hipótese do solipsismo puro é absurda. No jargão descartista, tal hipótese equivaleria à hipótese que o sujeito é Deus (o Deus único do monoteísmo filosófico). Mas a análise metafísica das próprias idéias leva o meditador a reconhecer a existência de um outro, Deus, o único ente que poderia ser a causa da idéia de Deus (ver o parágrafo 22 da Terceira Meditação).

O tema é bastante explorado por autores que tratam da divindade como alteridade, como por exemplo Lévinas.

Jônadas disse...

Caros Alexandre e Cesar, obrigado pelos comentários.

Alexandre: li o artigo que indicaste, mas não estou com ele muito "fresco" na memória e nem tinha pensado nele quando escrevi isto. Quem sabe seja um bom momento para relê-lo -- o que lembro é que o achei bem difícil.

Acho que tua questão é realmente crucial: se a "terapia [do TLP] está ou não baseada em algum tipo de acesso não teórico à essência da realidade, da linguagem, do pensamento e do sujeito". Esse "acesso nào teórico" seria aquela "intuição" ou "contemplação mística do mundo como um todo limitado", certo?

Conheces o artigo "“Rethinking” the Preface of the Tractatus", de Bruce Howes (Philosophical Investigations 30:1 January 2007). Se quiseres te mando. Nele o autor defende uma maneira até onde sei nova e peculiar de responder afirmativamente à questão acima.

César: interessante a comparação com Descartes. Mas no caso do TLP as coisas ficam realmente muito complicadas... num certo sentido, não há problema com a alteridade, pois tudo é alteridade -- o sujeito vira um mero "ponto inextenso", do tipo aperecepção trancendental kantiana. Por isso não se precisa de Deus para chegar ao "realismo puro" tractariano -- precisa-se apenas de uma análise correta da lógica de nossa linguagem. Acho um caminho muito mais elegante, hehehe. Só falta entendê-lo!

Abraçào!

Giovani Felice disse...

Oi Jônadas
Tá lá no meu blog, no meu comentário ao teu comentário, uma breve resposta. Tem mais pela frente.
Abraço,
Giovani.