Curioso trecho: As pessoas continuam falando que a filosofia não progride realmente, que continuamos ocupados com os mesmos problemas filosóficos que preocupavam os gregos. é porque nossa linguagem permaneceu a mesma e continua nos seduzindo a perguntar as mesmas questões. Até quando continuar existindo um verbo `ser' que parece funcionar do mesmo modo que o verbo `comer' e `beber', até quando continuarmos tendo os adjetivos `idêntico', `verdadeiro', `falso', `possível', até quando continuarmos a falar de um rio do tempo, de uma porção (expanse) do espaço, etc. etc., as pessoas continuarão tropeçando sobre as mesmas dificuldades enigmáticas e encontrar-se-ão olhando fixamente para algo que nenhuma explicação parece capaz de clarificar.
Nunca vi os problemas filosóficos desta maneira, e encontro dificuldade em achar justificação para tal visão. "Com licença, você está dizendo que problemas filosóficos são efeitos colaterais da linguagem?" A idéia me parece absolutamente injustificada. Me parece difícil ver como o problema da identidade pode ser reduzido a um problema lingüístico, só para dar um exemplo. Quero saber o que é, para uma coisa, ser uma coisa. O que isso tem a ver com a linguagem?
Isso pra não falar noutro ponto: Como assim a filosofia não progride? Olha, só pra dar um exemplo, do Descartes que acredita em graus do ser a nós que nos livramos disso houve muito progresso.
O exemplo que deste é perfeito, o da identidade. Ora, como chegamos a ter algum problema com relação à noção de identidade? Uma resposta wittgensteiniana poderia ser: começamos a refletir sobre a noção de identidade a partir de uma determinada imagem, e depois tentamos aplicar essa mesma imagem à totalidade dos casos nos quais empregaríamos o conceito em pauta (de identidade). Um exemplo concreto: começamos a pensar na identidade de objetos físicos. Depois de refletirmos um pouco sobre as condições de identidade desses objetos, podemos concluir que dentre elas figuram especialmente as características espaço-temporais dos mesmos. Strawson faz isso em Individuals, e Kant antes dele, e muitos outros antes de Kant certemente concordariam com isso. Para fins de argumentação, suponhamos que essa análise esteja correta e seja suficiente. Assim, podemos concordar que só reconhecemos duas instâncias de objetos que percebemos como sendo ou não o mesmo dependendo da satisfação de condições tais como uma relativa permanência, etc,, que permite reidentificá-lo(s). Tudo ok até aqui. Aí podemos partir (como o próprio Strawson fará) para a análise da identidade de estados mentais, digamos, dores. Como sabemos se minha dor de dente atual é igual ou diferente da que tive ontem, ou da sua dor de dente? Nós certamente por vezes falamos em dores iguais ou diferentes, certo? (Ou seja, certamente a noção de identidade é empregada nesses casos). Posso por exemplo achar que hoje minha dor está muito mais forte que a de ontem, ou que parece igual, ou ainda que hoje a dor está numa parte mais profunda do dente, etc. Mas agora ficamos num embaraço: como exlicar que a dor que eu tenho pode ser igual da que tu tens? Alguém dirá que não podemos ter absoluta certeza disso, mas simplesmente fazer inferências a partir do comportamento dos outros, comparando-o com o nosso próprio quando temos dores. Outra atitude seria dizer que isso é simplesmente absurdo! Eu só posso sentir minhas dores, você as suas, e jamais poderíamos compará-las.
Wittgenstein argumenta que nesse tipo de juízo está embutida a semente para o solipsismo. Mas não é isso que importa, e sim o diagnóstico de como chegamos a pensar que tais respostas parecem (e elas realmente parecem, não?) plausíveis. Se abandonarmos a imagem inicial acerca das condições de identidade -- aquela que se fundamenta na análise dos objetos físicos -- e percebermos que nossa linguagem efetiva para falar de identidade de estados mentais (como dores) é completamente diferente, não sentiremos esse embaraço. De fato, dores não possuem "identidade numérica" e "identidade qualitativa", como os objetos físicos. Duas dores qualitativamente identicas, i.e., com a mesma fenomenologia, mesma intensidade, na mesma parte do corpo em duas pessoas, etc., são duas dores idênticas, são a mesma dor. Falar em uma ou duas dores aqui não faz sentido -- N.B., isso não é falso, mas absurdo. Argumentar nesses termos seria como dizer que dois peões num jogo de xadrez não possuem exatamente as mesmas funções, não são a mesma peça, simplesmente porque cada um é numericamente distinto do outro.
Bem, isso é só um exemplo tosco e rápido para tentar mostrar como nosso apego a uma imagem do uso de uma certa noção nos faz cair em paradoxos e teses filosóficas muito absurdas. Mas vale salientar que essa não é o único tipo de problema colocado pela linguagem. W. não nos fornece nenhuma receita de bolo simples para diagnosticar as origens dos problemas filosóficos, mas fornece inúmeros exemplos particulares, e mostra como cada um deles nasce de algum tipo de confusão lingüística. Meu desafio aqui é ad hominem: me apresente um problema que claramente não se deve a uma tal confusão.
Sobre o segundo ponto, o progresso da filosofia: W. não está dizendo categoricamente que a filosofia não progride. Ele certamente acha que fez progressos importantes indicando as confusões de vários filósofos: a visão agostiniana da linguagem, o argumento da linguagem privada, etc. O que ele quer é antes chamar atenção para o fato de que, uma vez que nossa linguagem continua basicamente a mesma, ela sempre voltará a engendrar os mesmos problemas para diferentes pessoas, bastando que elas parem para refletir. Quem nunca leu filósofo algum na vida pode muito bem chegar a fazer as quesões que eles fizeram, e mesmo chegar às conclusões (por vezes absurdas) que eles chegaram. Se uma catástrofe detruir a obra de Descartes e tudo que veio depois dele, pessoas poderão voltar a ter aquela mesma idéia de "graus de ser". Certamene algumas ainda concordam com isso! O fato é que não há como acabar de vez com os problemas filosóficos, garantindo que será uma solução definitiva. Mas certamente há avanços na história da filosofia -- pelo menos eu assim penso, e por isso a estudo! A lição central de W. é que cada um de nós precisa passar por um esforço de "pensar por si mesmo", como ele nos diz na introdução das IF, para "curar-se" de tais problemas.
2 comentários:
Ok, vamos ser se entendi o primeiro problema, o do desafio ad hominem:
1. Witt diz que problemas filosóficos -- TODOS os problemas, pois senão o desafio seria fácil -- se originam de uma 'imagem' ligada ao nosso uso da linguagem.
2. 'Imagem' é um termo metafórico, logo obscuro e pouco útil como explicador de coisas inexplicadas. O que é uma imagem? Pelo que entendi, a 'imagem' é a extrapolação do que funciona em casos paradigmáticos para todos os casos. No exemplo de Kant, tomo como 'imagem' ou caso paradigmático de entidade, de coisa, de objeto, as entidades delimitadas no tempo e no espaço. Depois me fodo, quando tento empregar tal paradigma para todos os casos, inclusive dores.
3. Witt diz que refletimos sobre noções filosóficas a partir de determinada imagem. Eis a origem do problema filosófico. Penso na identidade a partir de certa imagem e me fodo, fico cheio de problemas filosóficos.
4. O que precisamos pensar criticamente, se é que o que eu disse acima faz o mínimo de justiça à posição de Witt, é se tal teoria faz o mínimo de justiça ao que é a filosofia. Você pede para mim apresentar ao menos um caso de problema filosófico que não possa ser reduzido ao esquema da imagem. Bom, se o esquema tem a ver com o que disse acima, meu problema é o oposto: achar ao menos um problema filosófico que caiba no mesmo. Não consigo ver nenhum.
5. Vejamos o caso atribuído a Kant. Não sei se o Kant histórico cabe em tal exemplo, isto é, se ele tem problemas com a identidade do mental porque extrapola o paradigma do objeto físico para a entidade mental. Não importa. Se ele faz tal extrapolação, ele realmente tem um problema, e se trata de um problema filosófico, sem dúvida.
6. O problema de Kant seria a 'imagem,' o paradigma muito curto? Acho que essa seria uma maneira estranha de explicar o que se passa. Não seria melhor dizer que Kant tem um conceito de objeto muito restrito?
7. Dizer que o conceito é inadequado não é o mesmo que dizer que uma imagem ruim gerou um problema. Em um caso se supõe que um conceito mais adequado pode tratar melhor a situação. Em outro se supõe, ao que parece, que outro conceito, o 'mais adequado,' seria apenas outra imagem, e geraria problemas, tal como o primeiro.
8. Enfim, acho que esse negócio de 'imagem' não é uma boa maneira de retratar a filosofia.
Está muito legal o teu blog, Jônadas. Comecei um e acabei largando. Se retomar, o teu será um dos meus modelos. Abraço.
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