A intenção original dos defensores do anti-individualismo é solucionar vários problemas tradicionalmente ligados à explicação filosófica dos fenômenos mentais — em especial, os problemas céticos em relação à possibilidade de conhecimento de 'outras mentes' e do 'mundo externo'. Mas, independentemente do sucesso em resolver esses problemas, essa posição gera novas dificuldades. Uma das mais relevantes diz respeito à possibilidade de conhecimento direto, autoritativo e `transparente', por parte do sujeito, do conteúdo de seus próprios estados e eventos mentais — o que podemos chamar, seguindo uma denominação proposta por Christopher Peacocke, de 'autoconhecimento psicológico. Nesse sentido — como costuma ser o caso de todas as propostas que surgem como alternativas às ortodoxias na história da filosofia — a posição anti-individualista aparentemente peca pelo extremo oposto ao do individualismo, e, ao salientar demasiadamente as características públicas dos fenômenos psicológicos, leva à conclusão admitidamente absurda de que nenhum desses fenômenos poderia ser conhecido pelo próprio sujeito, indepententemente de algum tipo de investigação empírica do próprio ambiente físico e social que o rodeia.
Não faltam na literatura tentativas de solucionar esse problema. Mas aqui gostaria de mencionar uma em especial que me parece bastante promissora, embora não tenha recebido a atenção que lhe seria devida. Trata-se da proposta de Lucy O'Brien, no capítulo ``On Knowing One's Own Actions'', do livro Agency and Self-Awareness (Johannes Roessler e Naomi Elian (eds.), Clarendon Press, Oxford, 2003, pp. 358--382). O'Brien começa esse capítulo afirmando o seguinte:
Dados os debates recentes acerca do auto-conhecimento e da autoridade da primeira pessoa, é surpreendente que não tenha havido mais discussão sobre nosso conhecimento de nossas ações. Isso é surpreendente porque nosso conhecimento de nossas próprias ações parece, prima facie, compartilhar muitas das características de nosso conhecimento de crenças e percepções que deram origem àquele debate. (p. 359)
De fato, como O'Brien salienta numa nota, especialmente na década de 60, a questão sobre o autoconhecimento de ações voluntárias recebeu uma atenção central por parte dos filósofos, mas acabou sendo colocada de lado no debate contemporâneo. Perguntas tais como `` como sabemos que um movimento de nosso corpo -- como o de levantar meu braço -- é uma ação voluntária minha, antes que simplesmente uma ocorrência física que em nada depende de minha vontade?'' apresentam um problema acerca do autoconhecimento de ações que tem muito a ver com o problema do autoconhecimento psicológico -- como expresso pela pergunta: `` como sabemos que o que estamos vendo água (i.e., H2O) e não água-gêmea (i.e., XYZ)?'' -- pois em ambos os casos o que queremos é uma explicação para a possibilidade de um conhecimento direto, independente de evidência, transparente e autoritativo, acerca de algo no mundo. É claro que tal paralelo supõe uma análise ``externalista'' da própria ação voluntária, e é justamente desse tipo de análise, que reputo wittgensteiniana, que O'Brien parte. (Apenas para confrontar, um tratamento ``internalista'' da ação voluntária seria aquele que a trata como um evento constituído de dois elementos, o (mero) movimento físico no mundo, e a intenção (desejo, etc.), tomado como um elemento ``dentro de nossas cabeças'', que seria a causa daquele movimento). Dada essa suposição, aparentemente não há nenhuma razão de princípio para privilegiar um problema a outro. Como salienta O'Brien: ``ações são fenômenos psicológicos tão primitivos quanto crenças e percepções'' (pp. 358--359).
Mas na sequência do texto O'Brien vai ainda mais longe: ao analisar o caráter consciente do que ela chama de "estados mentais passivos", tais como crenças e percepções, ela argumenta que esse caráter seria parasitário e derivado de uma forma mais fundamental de consciência (aqui poderíamos dizer, de autoconhecimento), que é a consciência de "estados não-passivos", em última instância, do tipo de consciência que temos de algumas de nossas ações voluntárias básicas, e sob certas descrições também tomadas como básicas, tais como a ação de erguer o meu braço — as quais se nos apresentam como sujeitas a um tipo de controle de nossa parte para iniciá-las e pará-las.
Esse tipo de consciência do controle sob ações básicas, argumenta O'Brien, fundamenta as características de autoridade, relativa aprioricidade e transparência do conhecimento de tais ações. Para tratar apenas de um caso, o da autoridade: ``Uma vez que [o agente] não possua evidência contrária'' (note-se aqui o paralelo com a estratégia externalista para solucionar o problema do autoconhecimento psicológico), ``ele está autorizado a supor que seus sistemas motores estão funcionando propriamente e que ele tem, na base de ações passadas, uma apreensão verídica das ações básicas gerais e particulares abertas a ele'' (p. 381). O agente então delibera, e escolhe um curso de ação sobre o qual ele tem autoridade para descrever -- não obstante, N.B., a possibilidade de falhar, como no caso em que seu sistema motor não funciona corretamente, e, por conseguinte, no qual sua suposição inicial é falsa. (Paralelo com o externalismo: o sujeito pode ter sido transportado à Terra-Gêmea sem saber, e nesse caso sua suposição inicial, de que está no mesmo ambiente, é falsa, mas isso (supostamente) não põe em risco a autoridade que ele tem sobre o conteúdo de seus estados mentais quando aquela condição está satisfeita, ou seja, ele está na Terra).
Na pior das hipóteses, o que essa sugestão de O'Brien fornece é um novo e interessante ponto de vista a partir do qual refletir acerca da problemática do anti-individualismo e autoconhecimento.
8 comentários:
A posição tradicional sobre a primeira pessoa e sua autoridade é um objeto de desejo para vários externalistas. Ainda se discute se os casos ideais (aqueles nos quais um pensamento de primeira ordem é herdado por um pensamento de segunda ordem) realizam tal desejo ou não. Creio que sim, realizam, mas são casos tão isolados que, na verdade, temos que dizer, penso eu, que externalismo e conhecimento de si são compatíveis, dados os casos ideais, paradigmáticos, mas tais casos são tão estritos que boa parte do autoconhecimento que achávamos que tínhamos, na visão tradicional, revela-se como ilusório, na visão externalista.
O externalismo nos ensina algo sobre nós mesmos: Somos mais dependentes e vulneráveis frente ao mundo do que imaginávamos. Tal ensinamento me parece um progresso.
O externalismo não é resposta ao problema cético da prova da existência do mundo exterior.
Para ser tal resposta, o externalismo precisaria ser caracterizado como um tipo de argumento transcendental, próximo à "Refutação do Idealismo" de Kant. Tal argumento funcionaria assim:
(1) Se S pensa que água mata a sede, então existe água.
(2) S pensa que água mata a sede.
(3) Existe água.
A premissa (1) é problemática. S pode pensar sobre água por vários motivos, ou melhor, S pode ter vários tipos de contato epistêmico com água:
(a) S percebe água.
(b) S ouve falar de água.
(c) S é bom de química e teoriza sobre uma substância cujas moléculas teriam dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio.
Enfim, a coisa é complexa. Há gente explorando a possibilidade de ver o externalismo como resposta ao ceticismo, mas tais pessoas estão cautelosas. Ver, por exemplo, o debate entre Burge e Stroud em Hahn & Ramberg (eds.), _Reflections and Replies_.
O texto da Lucy O'Brien pode ser encontrado em http://www.homepages.ucl.ac.uk/~uctylfo/On%20Knowing%20One's%20Own%20Actions.pdf
Ou melhor, o texto dela pode ser encontrado aqui.
Acho que o debate sobre externalismo e conhecimento de si demorou (se é que demorou) a envolver a questão do conhecimento das próprias ações porque (1) se buscou o adversário mais forte, no caso o cartesianismo e (2) o atual desprezo pelo behaviorismo.
Me parece bom que tal elemento entre no debate, se ajudar a esclarecer alguma coisa.
O caso de saber se levanto o braço voluntariamente ou não merece uma resposta spinozana:
(1) Consciência é efeito. Ter consciência de ter levantado o braço é efeito do braço ter mudado de posição.
(2) Ter consciência, isto é, conhecer um efeito, não leva a conhecer a causa. Consciência envolve uma boa porção de inconsciência, e o que sabemos envolve uma grossa capa de ignorância.
(3) Dizer que levanto o braço voluntariamente é dizer que não sei o que fez o braço mudar de posição.
Em resumo: consciência de um evento não leva por si só ao conhecimento da causa do evento, e falar em vontade livre é apelar a uma explicação oca, tipo 'virtus quebratícia.'
Moral da história: o conhecimento das próprias ações foi negligenciado no debate sobre externalismo e conhecimento de si, mas Spinoza foi mais negligenciado ainda.
Ao apelar para o que classicamente se chama de "experiência da liberdade," O'Brien explica o que não entendemos pelo obscuro. Tô spinozista.
Como O'Brien interpretaria um caso de encubamento, isto é, de colocação do cérebro e sistema nervoso de uma pessoa em uma cuba?
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