sexta-feira, junho 30, 2006

Realismo vs. idealismo, Descartes, Kant e Wittgenstein, e o papel da filosofia: debate com o Flávio

Segue a discussão que o Flávio e eu iniciamos no nosso grupo de email, a partir dos meus comentários sobre o texto do prof. Paulo.
 
Eu ainda não li o texto do Paulo, mas gostei muito dos teus comentários, entre outras coisas, pois apontam na direção correta (que também o Alexandre apresenta no final do texto dele) para o entendimento da relação entre idealismo e realismo. Estou lidando com isso em minha tese. O meu problema não diz respeito diretamente a Wittgenstein, mas acredito que W. pode ajudar a pensar uma resposta para o problema. Vou formulá-lo do modo que me parece mais fácil e talvez voce possa me ajudar a ver algo que não estou vendo.

Que bom que achas que estamos indo na mesma direção. É bom discordar e discutir temas filosóficos, mas de vez em quando um acordozinho não faz mal nenhum! Vou fazer comentários pontuais ao que dizes e ao final vejo se consigo elaborar algo mais sistemático sobre o tema.

Voce sabe que Descartes distingue entre "uso da vida" e "investigação da verdade". Numa possível interpretação dessa distinção (muito frouxa) poderia ser dito que, no que respeito ao uso da vida, as condições para dizer que "sabemos" algo podem ser entendidas como determinadas ou informadas pelos nossos interesses e propósitos práticos. De outra parte, na investigação da verdade, o que buscamos é a determinação das condições sob as quais é possível dizer que "sabemos" algo, de um ponto de vista puramente lógico ou racional, alheio ao que costumamos fazer com nossas palavras.

Concordarias em "traduzir" essa distinção cartesiana entre "investigação da verdade"  e "uso da vida" em termos da distinção kantiana entre os níveis "transcendental" e "empírico"de análise do conhecimento? No primeiro caso, o da reflexão filosófica ou transcendental, o que buscamos é definir um padrão para determinar o que conta como conhecimento, ou seja, mais especificamente, determinar quais são as condições fundamentais para que algo se candidate a conhecimento  -- no caso específico de Kant, o resultado dessa análise filosófica seria a indicação das condições transcendentais da experiência, que são as formas de nossa sensibilidade e as formas do nosso entendimento, gerando os princípios sintéticos a priori, etc., etc.. Já no segundo caso, o do registro empírico, simplesmente supomos a adequação de nosso conhecimento àquele padrão transcendental mínimo, sem nos preocupar em justificar ou mesmo refletir acerca dele, partindo para a satisfação de nossos interesses práticos, o que se dá, no caso mais extremo, por meio da elaboração de teorias científicas.

Não sei como colocar isso direito, mas acho que posso dizer que o filósofo quando pergunta se "sabemos" algo e nas condições mediante as quais podemos dizer que "sabemos" quer, como resultado, a descoberta de algo como " o que é saber" e não das condições sob as quais "dizemos, em virtude de nossas finalidades etc., que sabemos".  

Ok, acho que o que disse acima condiz com essa sua maneira de apresentar o interesse do filósofo, em contraposição aos nossos interesses práticos -- ou não?
 
Por outro lado, como voce mesmo disse, não podemos conceder muito ao idealismo, pois podemos terminar rompendo com o princípio da "sanidade mental' do Guerzoni, isto é, com a idéia de que aquilo que dizemos é verdadeiro ou falso não em função de nossos desejos, mas em virtude das propriedades do mundo.

Claro, esse é o problema metodológico (e exegético também, pelo menos no caso da análise das posições de Kant e Wittgenstein) fundamental com o qual venho me debatendo ultimamente. E como se faz isso? No caso de Kant, atentando para o que ele tem a dizer acerca da contribuição de certos fatos contingentes acerca do mundo, e de nós mesmos nele incluídos como sujeitos empíricos, para dar conteúdo a nossos conceitos, mesmo aos categoriais. No caso de Wittgenstein, atentando ao papel de nossas reações naturais na formação de jogos de linguagem básicos, e também à contribuição do mundo como expressa em Sobre a Certeza. Falei um pouco mais detidamente desses pontos na mensagem anterior, e não irei retomar isso aqui.

 Ademais, também não podemos conceder muito ao realismo, pois senão o resultado é algum compromisso com o ceticismo (como mostra o livro do Bernard Williams). 

De pleno acordo. Um outro livro que apresenta muito bem essa implicação "realismo metafísico" -> "ceticismo" é "Expressing the World: Skepticism, Wittgenstein and Heidegger", do Anthony Rudd (Open Court, Chicago, 2003). Aqui só quero notar que é exatamente esse ponto que Kant também defende ao dizer que o realismo transcendental leva inevitavelmente ao idealismo empírico.

Minha pergunta é então: como devemos responder a pergunta pelas condições sob as quais é possível saber algo? Eu estou tentando tratar esse problema numa direção meio idealista (inspirada em Travis, Putnam e Conant), mas o Faria já me disse que concedo demais ao idealismo.

Repetindo um pouco o que eu já disse acima, e (ab)usando mais uma vez do jargão kantiano e wittgensteiniano -- especialmente por economia de palavras -- eu responderia: bem, há duas maneiras de fazer isso, no nível "transcendental" de análise, e dependendo de qual delas você escolher, terá certas conseqüências para a "vida cotidiana", ou o nível  "empírico". Se, no nível transcendental, optas por deixar um papel importante ao "sujeito" (digamos, no caso de Wittgenstein, à autonomia da gramática), então é possível explicar a normatividade de nossa linguagem, ou, no caso de Kant, o caráter necessário e a priori de certos princípios do conhecimento humano, e assim o "homem comum" e especialmente o cientista, que não passa de um "homem comum" um pouco mais fodão, poderão fazer o trabalho deles em paz, sem se preocupar com o cético. Se, por outro lado, supuseres que nossa linguagem e o mundo são coisas completamente distintas, e que à primeira não cabe mais do que "imitar" o segundo, então não terás uma garantia a priori de "acordo" entre os dois, e estarás sempre sujeito aos ataques céticos.

Sei que isso é muito esquemático, mas de todo modo penso que sua questão é muito importante para poder ser tratada adequadamente aqui. O que tentei fazer foi indicar as linhas gerais de como encaro o problema em pauta, e às quais cheguei depois de muito me bater lendo Kant e Wittgenstein. Ainda não estou completamente satisfeito com os detalhes, mas acho que não seria fácil me convencer a abrir mão dessas linhas gerais.

(A propósito, Wittgenstein tem uma passagem belíssima, que é citada no livro do Schulte-não lembro onde ela aparece-, onde ele compara o trabalho do filósofo com o de um botânico que tenta mostrar que a rosa é algo para ser entendido "puramente" como um flor de um tipo tal, e não que ela pode ser usada na lapela, como um gesto de amor e atenção, etc.)  

Também gosto dessa passagem, e do livro do Schulte como um todo.

Tem uma imprecisão na minha mensagem: onde digo "A segunda formulação (na última frase entre aspas) é uma formulação idealista, pois faz que as condições de verdade de nossos conceitos repousem ou tenham alguma sorte de vinculação com nossas práticas (forma de vida, acho que W. diria)". Eu gostaria de dizer: A segunda formulação não é necessariamente idealista, depende de como entendemos a contribuição de nossas práticas.

Pois é, o problema é achar que "idealismo" e "realismo" são denominações auto-explicativas, quando o que acontece é exatamente o contrário. É pouco produtivo ficar discutindo se uma posição é ou não "idealista", sem antes ter clareza sobre o conteúdo da mesma. Mas, supondo que conhecessemos o conteúdo da posição kantiana, por exemplo, aí teríamos que distinguir pelo menos dois sentidos de "realismo" e "idealismo" -- o transcendental e o empírico -- sendo que essa posição seria idealista no primeiro sentido, e realista no segundo.
 
Aguardo suas manifestações a respeito!

Abraço!

Jônadas

Um comentário:

Anônimo disse...

Vou ter que entrar nessa discussão com tempo, que não tenho agora. Por ora, só queria registrar que, para o meu gosto, TODOS os meus orientandos, e boa parte dos meus amigos, concedem demais ao idealismo! Mas é normal: o idealismo é a doença infantil da filosofia...