quinta-feira, outubro 27, 2005

Problemas com o externalismo II: A (velha) imagem da `mente' separada do `mundo'

Um outro erro ou confusão comum do externalismo, a meu ver, é a suposição geral de uma imagem na qual mente e mundo encontram-se (metafísica e epistemicamente) isolados um do outro. Se a única diferença entre individualismo e anti-individualismo consiste em abraçar um dos lados dessa dicotomia como sendo o responsável (segundo alguns, o responsável causal) pelos conteúdos de nossos pensamentos, então não teremos dado um passo muito grande na direção de um modelo alternativo de explicação dos fenômenos mentais. Para tanto o que é necessário é abandonar a própria dicotomia, e parar de pensar em significados como ‘coisas’, ‘objetos’ ou ‘entidades’ — sejam elas internas ou externas. Como nos lembra Peter Hacker (1998), “Grosseiramente falando, o significado de uma palavra é seu uso. E o uso de uma palavra, o modo como ela é usada, não é algo dentro ou fora da cabeça”. Não é preciso pensar nos significados das palavras como ‘objetos externos’ para que eles se tornem públicos, compartilhados, “moedas comuns” para usar a metáfora de Burge.
Abandonar a exigência de identificar significados e / ou conteúdos de pensamentos como se fossem ‘objetos’ não resolve, por si só, o problema do autoconhecimento psicológico, mas facilita muito a tarefa. Um outro elemento que me parece fundamental para obter essa solução, que é uma compreensão mais adequada do tipo de (auto-)conhecimento envolvido nesses casos, e do que faz com que o sujeito possa ter algum tipo de privilégio sobre ele. Eh para clarificar esse ponto que penso que vale a pena atentar a posicoes como a de Richard Moran (2001) e de Wittgenstein (1976).

Referencias:

HACKER, P. M. S. Davidson on Intentionality and Externalism. Philosophy, n. 73, p. 539–552, 1998.


MORAN, R. Authority and Estrangement: An Essay on Self-Knowledge. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2001.


WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Oxford: Basil Blackwell, 1976. Tr. G. E. M. Anscombe.

4 comentários:

Anônimo disse...

(Umas provocações.) Curiosa essa tese de Hacker, "o significado de uma palavra é seu uso". O que é 'uso'?
Pra lembrar do experimento de Burge. Bert usa 'artrite' para designar sua dor na coxa. Isso significa, para Hacker, que o significado de 'artrite' é 'aquilo que causa a dor na coxa de Bert'? Não é assim que costumamos falar em significado, eu acho. Isso é coisa de filósofo.

Jônadas disse...

Bem, para comecar essa eh uma tese central da posicao de Wittgenstein, nao apenas uma tese de Hacker. Para nao me estender muito nesse ponto, penso que basta assinalar que a tese wittgensteiniana de que o significado de um termo eh seu uso eh muito similar `a tese do proprio Burge, segundo a qual o significado dos termos eh determinado em parte pela comunidade linguistica `a qual o sujeito pertence, fazendo dos significados "moedas comuns". Mas ha um problema geral com as posicoes externalistas, uma tese que fica sempre no pano de fundo e nunca eh tematizada claramente na discussao, e eh contra essa tese que Hacker argumenta no artigo que citei. No contexto em que Hacker faz aquela afirmacao ele esta argumentando que significados nao sao *objetos*, *entidades*, ou coisas similares... pensar que todas as palavras de nossa linguagem possuem a mesma funcao, que eh fazer referencia objetos ou a algo similar (sejam eles internos ou externos) eh pressupor aquilo que W. chamou de "concepcao agostiniana da linguagem", sendo que o comeco das IF visa justamente mostrar a incorrecao dessa concepcao. A meu ver os externalistas de fato tendem a assumir tacitamente essa imagem agostiniana do funcionamento da linguagem, e, juntamente com ela, a ideia de que a linguagem precisa de algum modo estar "ancorada" `a realidade, quando para W., *num certo sentido*, a linguagem (i.e., no jargao dele, a gramatica) eh auto-contida e autonoma. Ha, contudo, um *outro* sentido no qual a linguagem se fundamenta no mundo, e W. esclarece isso principalmente no Sobre a Certeza, ao tratar do pano de fundo compartilhado por nossas praticas linguisticas. Por exemplo, eh porque nossa sensibilidade funciona de maneira homogenea que, no mais das vezes, podemos concordar acerca do uso de termos como "vermelho" -- tanto que, no caso de discordancia, diremos que a pessoa que discorda tem algum problema, e.g., eh daltonica. "Fatos no mundo" como esse do funcionamento homogeneo de nossa sensibilidade sao, portanto, condicoes para o uso da linguagem, e para o estabelecimento de uma gramatica --- mas nao eh ecessario ancorar palavras a objetos "externos", como parecem querer os externalistas, para fugir do individualismo. Em suma, a meu ver a posicao de W. eh mais sofisticada que a dos externalistas em geral, e da conta dos mesmos problemas que o externalismo pretende resolver, sem incorrer em alguns dos problemas que essa ultima posicao enfrenta. Claro, essa eh apenas uma opiniao, que nao poderei justificar com mais detalhe aqui.

Para finalizar, nao, nao eh isso que Hacker diria. Ninguem mais do que Hacker, na esteira de W., seria mais contrario a uma analise causal do significado, nessas linhas que sugeriste. O significado de `artrite' para Hacker, e para W., seria o mesmo que eh para Burge, creio eu, e seria dado, *grosseiramente*, pela regra de *uso* do termo em nossa comunidade linguistica. Claro, isso nao explica muito as coisas, mas mostra como ha mais proximidade com Burge do que pensaste.

Anônimo disse...

Acho que os casos de Witt e Burge são diferentes, Jônadas. Nessa tese da linguagem autocontida tá um não sei quê de idealismo que Burge não aceitaria. De fato, creio eu, ele e os externalistas são bem 'agostinianos'.
Se for assim, talvez seja interessante dar uma olhada na teoria de Wittgenstein. (Certamente é.)

Jônadas disse...

Mas justamente para nao ficar apenas nesse "nao sei que de idealismo" fiz questao de salientar no comentario anterior que ha outro sentido no qual a linguagem e o mundo se interrelacionam, se conectam internamente, para fazer uso do jargao do proprio W. --- sem que, N.B., haja prevalencia de um sobre o outro (esse eh o tema de W. no Sobre a Certeza). A meu ver, nao adianta tentar fugir do "idealismo" com uma teoria agostiniana, que "ancora" palavras a objetos --- como parecem querer os externalistas. Uma vez supondo que mente e mundo sao esferas metafisica e epistemicamente isoladas, nao ha ponte que possa reuni-las. Assim, parece-me, enquanto os externalistas tentam fazer "pontes mais curtas" que as de alguns individualistas (i.e., os que nao se pretendem solipsistas, como os defensores do "realismo indireto", ou mesmo Descartes, que pode mesmo ser chamado de "externalista" devido ao fato de contemplar em sua teoria a necessidade de algo "externo" para individuar algumas ideias, a saber, Deus), W. tenta dissolver a propria dicotomia filosofica mente/mundo --- o que nao significa dissolver uma distincao que ordinariamente fazemos entre o "interno" e o "externo", o "fisico" e o "psicologico", etc.