Nós predicamos da coisa aquilo que reside no seu método de representação. Impressionados pela possibilidade de uma comparação, pensamos que estamos percebendo um estado de coisas da mais alta generalidade. (IF, sec. 104)
Assim descontextualizada certamente essa tese não diz muito a um leitor que não conheça um pouco da posição de Kant e de W. Mas tentarei apresentar o paralelo entre as posições desses dois autores de maneira bastante esquemática.Kant classifica todas as posições já sustentadas na história da filosofia sob dois rótulos gerais: realismo transcendental (RT) e idealismo transcendental (IE) --- as quais, por sua vez, teriam como respectivas contrapartidas as posições do idealismo empírico (IE) e do realismo empírico (RE). Basicamente, o que um defensor do RT sustenta é que as coisas existem independentemente de nossa capacidade de representação das mesmas. Uma das versões do RT é o racionalismo, caracterizado justamente pela tentativa de obter conclusões metafísicas substantivas acerca das coisas como são nelas mesmas, a partir da análise a priori de certas caracterísiticas gerais de nossa faculdade da Razão. O que justifica essa pretensão é a suposição (realista transcendental) de que nossa faculdade representativa espelha a ordem das próprias coisas que existem independentemente dela. Um dos casos mais característicos desse tipo de estratégia é o famoso ``argumento ontológico'', que visa provar a existência de Deus a partir da análise da idéia de Deus.
Segundo Kant, qualquer posição fundamentada nesse tipo de suposição (realista transcendental) está fadada a levar ao idealismo empírico, se for defendida consequentemente. Isso porque, uma vez estabelecido o abismo metafísico entre a mente (ou sujeito) e o mundo (as coisas nelas mesmas), não haveria mais como construir uma ponte entre essas esferas. Defender uma inferência da primeira à segunda não vai adiantar, pois não há garantias para a correção dessa inferência, uma vez aceito o RT.
Contra esse tipo de problema Kant defenderá o IT, i.e ., uma posição segundo a qual as coisas não são completamente independentes de nossas capacidades cognitivas / representacionais --- N.B., elas são independentes sob um aspecto, i.e., apenas no que toca à sua existência, uma vez que a matéria de nossa cognição precisa ser suprida para que possamos atuar sobre ela, mas elas são dependentes no que toca a outro aspecto, sua forma, sendo que esta última seria suprida por características gerais de nossa sensibilidade, espaço e tempo (as formas a priori da intuição) + conceitos fundamentais de nosso entendimento (as Categorias). Dada a suposição idealista transcendental , é possível um acordo a priori entre a coisa representada e a própria representação (no que toca à forma de ambas). E é essa possibilidade que garante o realismo empírico --- ou seja, a legitimidade e confiabilidade (nesse sentido, ``realidade'') daquilo que nos aparece por meio dos sentidos, assim como a legitimidade e confiabilidade daquilo que viemos a saber por meio da ciência.
Apesar do caráter esquemático dessa apresentação, espero que ela seja suficiente para indicar a similaridade entre o diagnóstico kantiano para as confusões filosóficas do advindas da suposição realista transcendental (no caso do racionalismo), e aquele apresentado por W. na passagem acima: trata-se, nomeadamente, da tentativa de ``predica[r] da coisa aquilo que reside no seu método de representação''. Assim como Kant irá propor sua ``revolução copernicana'' como o caminho de solução para as confusões dos filósofos que caem nesse erro, W. também nos advertirá que, se quisermos remover certas confusões filosóficas advindas de incompreensões de nossa gramática, precisamos inverter todo o nosso exame, e parar de tentar fundar a legitimidade ou correção dessa gramática, ou da linguagem, buscando qualquer tipo de relação externa (e.g., causal) entre sinais e coisas, para passar à descrição e elucidação das relações internas (normativas) entre nosso ``método de representação'' e aquilo que é representado --- relações essas que se deixam entrever mais facilmente se analisarmos nossas explicações de significados, e nossas práticas lingüísticas efetivas. Esse, a meu ver, é o passo externalista radical comum a Kant e a W., passo este que não me parece ter sido dado pelos chamados `externalistas' contemporâneos.
6 comentários:
Trocando em miúdos, você diz que idealismo transcendental é externalismo, e que idealismo transcendental é uma posição filosófica na qual a identidade das coisas é parcialmente dependente das pessoas. Não consigo entender.
Primeiro, é difícil ver a relação entre externalismo e idealismo transcendental.
Segundo, o externalismo parece estar dizendo o contrário, a saber, que a identidade das pessoas é parcialmente dependente das coisas.
O externalismo é um conjunto de intuições metafísicas acerca da identidade de pensamentos (há também o externalismo epistêmico, e outras variedades). Tais intuições costumam partir do pressuposto realista da independência das coisas em relação às pessoas, coisa que no limite Kant aceita. Tal pressuposto leva a uma hipótese sobre a identidade do pensamento-de-coisa.
Aqui talvez sua intuição poderia ser desenvolvida, provavelmente com resultados frutíferos. Penso em alguns pressupostos explicitados por Burge na sua "Reply to Hahn" (em Hahn e Ramberg (eds.), Reflections and replies, pp. 349-51), mas não tenho como desenvolver o ponto agora.
Outra coisa, talvez útil. O idealismo transcendental de Kant funciona mesmo em um cenário solipsista ou de evasão (vê a tese do Paulo Faria), creio eu. Já o 'idealismo transcendental' de Wittgenstein parece bem mais heideggeriano, pois dá de barato ou toma como um 'a priori' o ser-com-os-outros de cada um de nós. Isso tem a ver com o externalismo social. Há textos legais sobre isso por aí. Procura por "Heidegger externalism" no Google Print pra ver.
A relação entre externalismo e idealismo transcendental, a meu ver, está na idéia geral e fundamental de que mente e mundo não devem ser vistos como esferas isoladas e auto-contidas. Em geral os externalistas salientam apenas um lado dessa história, ou seja, o de que a mente não é autocontida. Mas eles esquecem que a contrapartida disso é a de que o mundo tb não é autocontido. É porque nossa sensibilidade funciona de determinada maneira, por exemplo, que dividimos e classificamos cores, temperaturas, etc., como o fazemos. As coisas não são ``em si mesmas'' assim, mas apenas na medida em que as classificamos desse modo. Obviamente isso não implica que ``inventamos'' o mundo (a la Goodman). Por isso é crucial a distinçao matéria (o dado indeterminado) e forma (o princípio de determinação) em Kant. No caso do externalismo essencialista de Kripke (se posso chamar assim), parece haver um pressuposto de que as coisas são como são e não estão nem ai para nós. Mas a meu ver esse é um pressuposto injustificado e desnecessário. Kant tb é um essencialista, mas para ele a essência é resultado de interaçào sujeito/objeto. W. poderia ser visto assim tb, na medida em que defende que a essência é dada pela gramática. E nenhum deles é idealista por isso, ou seja, nenhum deles nega que o mundo está aí para que o experienciemos, e que existe independentemente de nós. O ponto é simplesmente o de que nós temos um papel ativo na classificaçào, categorização, conceitualizaçào desse mundo.
Sobre a tese de que ``a identidade das pessoas é parcialmente dependente das coisas'', não há problema algum com isso para Kant. O sujeito empírico, o autoconhecimento empírico, o próprio sentido interno, depende do sentido externo (cf. Refutação ao Idealismo, Paralogismos, etc.). Aqui, mais uma vez, o que temos é uma atitude enviesada, unilateral, dos externalistas, que costumam salientar apenas esse sentido da interdependência sujeito/mundo.
Ainda bem que concordas que no limite Kant aceita um certo pressuposto realista --- o que no comentário que fiz no teu blog comparei com o de Heidegger, ok? Mas nem Kant nem os externalistas (se consequentes) poderiam trabalhar com um pressuposto realista mais forte (o realismo transcendental de Kant) segundo o qual mente e mundo estão isolados. Isso minaria o externalismo. E de fato penso que mina. A tese da independência da existência do mundo em relação ao sujeito é algo que ninguém parece disputar, nem Kant, nem Berkeley, nem W. (talvez apenas na fase solipsista tractariana ;-)
O idealismo transcendental, como o interpreto, jamais funcionaria num ``cenário solipsista ou de evasão'', por motivos que já assinalei. Ele, assim como Heidegger e W., pressupoe claramente o contato com o mundo, e, o que pode parecer mais impressionante, inclusive o ``ser com os outros''. A esse respeito, gosto de cito uma nota de minha dissertaçào:
Costuma-se pensar que um importante elemento que separa a concepção de Kant e dos demais modernos da posição contemporânea é que estes falam em comunidades de sujeitos, no plural, e aqueles falavam sempre em um sujeito, no singular. Para quem pensa assim, talvez valha apena refletir com cuidado sobre uma afirmação que Kant faz na Crítica do Juízo, na qual deixa claro que quando fala em sujeito, é do “sujeito num sentido compreensivo, incluindo todos aqueles que pertencem `a raça humana” (KANT, 1952, p. 570; §76) --- cf. Dissertação, p. 100, n. 62.
.l.
preciso de uma ajuda em trabalho da faculdade se alguem puder me ajudar ficarei muito grata..
é fazer uma análise kantiana do caso "operadores de caverna"..obrigada
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