Anscombe, Malcolm e Hacker, defensores da leitura nao referencial do
pronome de primeira pessoa (ppp), apresentam a posicao de Wittgenstein
como sendo um contraponto a toda a tradicao filosofica, na medida em
que toda essa tradicao teria suposto a tese de que o ppp possui uma
funcao referencial. Segundo esses interpretes, Descartes pensava que o
ppp ('eu') faria referencia a uma substancia imaterial, distinta da
substancia corporea. Ja Hume nega que o ppp possa fazer referencia a
uma tal substancia, pois, dados seus compromissos empiristas, uma vez
que nao ha nenhuma `impressao' do `self', nao ha como se saber que
esse `self' seja o referente do ppp. Mas Hume continua aceitando a
tese referencial, na medida em que defende que o ppp refere a um
`feixe de percepcoes' (Tratado, Livro I, Secao VI). Reid parece sustentar nao apenas que `eu' eh referencial, mas que funciona como um `nome logicamente proprio' (no sentido que essa nocao possui em Russell, e no Tractatus de Wittgenstein).
Anthony Kenny, seguindo a linha de argumentacao de Elisabeth Anscombe, defende que muitas das confusoes presentes no tratamento filosófico da nocao de sujeito (the self) "é um exemplo de contra-senso dos filósofos produzido por um entendimento incorreto do pronome reflexivo" (Anthony Kenny, "The First Person", In: The Legacy of Wittgenstein, Basil Blackwell, Oxford, 1984, p. 81). Dado esse diagnostico, e natural esperar que um entendimento correto do pronome reflexivo possa elucidar o tratamento da nocao de sujeito, e eh justamente isso que, segundo esses interpretes, deve-se buscar na obra madura de Wittgenstein. Peter Hacker chega mesmo a afirmar em Insight and Illusion (1989) que Wittgenstein fornece uma "refutacao elegante e compreensiva do solipsismo e do idealismo" em sua "fase madura" (cf. p. 216). O locus classicus para essa "refutacao" seriam os paragrafos 398--410 das IF.
Parece-me, contudo, que Wittgenstein nao precisa negar a tese da referencialidade
--- o que seria extremamente contra-intuitivo --- para fornecer uma
alternativa em relacao ao tratamento tradicional do sujeito. O que eh
(talvez) inovador em sua filosofia eh a indicacao de que enunciados
`auto-atributivos' acerca de estados, eventos e /ou atitudes mentais,
feitos em primeira pessoa do singular, no presente do indicativo,
possuem um carater expressivo antes que descritivo. Mas para
explicar esse carater nao eh necessario negar a concepcao referencial. Discordo tambem que Wittgenstein forneca uma "refutacao" do solipsismo nos paragrafos 398--410. Mas a justificacao dessas opinioes sera tema para uma outra ocasiao.
Um comentário:
Eis um tema que me interessa. Como kapliano, creio que 'eu' refere àquele que está falando ou pensando alguma frase com 'eu'. Mas não me comprometo com nenhuma ontologia sobre o que é algo que diz 'eu'. (Só pra esclarecer, não sou tão ecumênico a ponto de aceitar gravadores como sujeitos.) O que seria uma teoria expressivista do sujeito?
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