O externalismo ou anti-individualismo surge como uma proposta alternativa em relação ao modelo individualista tradicional, e visa solucionar alguns dos principais problemas herdados dessa tradição — tais como o do contato entre a ‘mente’ e o ‘mundo’ (o ‘problema do mundo externo’), e do conhecimento do conteúdo dos estados e eventos mentais de outros sujeitos (o ‘problema das outras mentes’). Para tanto, a tese central do anti-individualismo é a de que o conteúdo dos estados e eventos mentais dos sujeitos é constituído, ao menos parcialmente, por fatores ‘externos’ à sua mente, no sentido de que tais fatores não constariam numa análise que tomasse por base apenas o sujeito, isoladamente do mundo a seu redor — seu ambiente físico, social e lingüístico. Uma das dificuldades geradas por essa tese diz respeito à possibilidade de conhecimento, por parte do sujeito, de seus próprios estados e eventos mentais — o que doravante gostaria de chamar, seguindo uma denominação proposta por Christopher Peacocke (1998), de ‘autoconhecimento psicológico’. A razão para esse aparente problema é simples: na exata medida em que os conteúdos desses estados e eventos se tornam ‘externos’ e públicos, acessíveis a partir da perspectiva da terceira pessoa, eles parecem perder a característica oposta, de serem acessíveis de alguma maneira peculiar, especial, autoritativa ou privilegiada, pelo próprio sujeito, i.e., a partir da perspectiva da primeira pessoa.
Um dos elementos centrais nesse debate acerca do autoconhecimento de estados e eventos mentais eh a questao sobre a possibilidade de conhecermos esses estados e eventos mentais a priori. Mas o que exatamente um sujeito sabe a priori, afinal, quando, e.g., sabe que está pensando que p? Para responder a essa questão, gostaria de retomar o resultado do argumento de Kripke em
Naming and Necessity (Kripke, 1972 --- na minha opiniao, um dos precursores do externalismo). Segundo esse argumento, o significado de um nome, ou de um termo para espécie natural como ‘água’, é fixado como sendo, respectivamente, quem quer que os falantes de nossa comunidade nomeiem com esse nome, ou o que quer que compartilhe das características da amostra utilizada no momento da fixação da referência daquele termo. Ora, mas se é assim, então mesmo em situações contrafactuais como a da Terra Gêmea (Putnam, 1975) há algo que sabemos a priori, algo que poderia ser explicitado por uma sentença como ‘sei que estou pensando que o que quer que minha comunidade lingüística chama de ‘água’ é molhado’. Ocorre que aquilo que está à minha frente, por hipótese, não é aquilo que minha comunidade lingüística chama de ‘água’, e, portanto, eu de fato cometo algum erro nessa situação. Mas qual é exatamente a natureza desse meu erro? No caso em que estou diante de XYZ, e não de H2O, meu erro é empírico, e só pode ser corrigido por meio de uma ‘investigação empírica’ — não é um erro acerca do conhecimento do significado dos termos que emprego. Eu continuo empregando — e sabendo que emprego — o termo ‘água’ para falar sobre aquilo que minha comunidade considera água, i.e., H2O. É absurdo pensar que uma mudança lenta me torna parte ativa de uma nova comunidade lingüística, fazendo-me usar os termos da maneira que aí são usados, à revelia de minhas próprias intenções. Justamente por isso é absurdo afirmar, como Ludlow (LUDLOW, P.; MARTIN, N.(eds.) 1999), que “devido a mudanças não detectadas em minha comunidade lingüística, o conteúdo de meus pensamentos sobre chicory mudaram” , ou que “passado suficiente tempo na Terra-Gêmea, pensamentos sobre água dão origem a pensamentos sobre àgua-gêmea”.
Em outras palavras, nós optamos por deferir o significado de nossos termos a uma determinada comunidade lingüística, e é justamente esse fato que possibilita um tipo de conhecimento a priori — o conhecimento da gramática de nossa linguagem; não há necessidade de ‘investigar nosso ambiente’, em cada situação particular, para saber acerca do que estamos pensando; a garantia de que estamos de posse desse tipo de conhecimento a priori deriva do fato de que também nós somos parte dessa comunidade lingüística, e assim compartilhamos com essa comunidade do conhecimento (gramatical) do uso de nossos conceitos. A propósito, é porque nossas práticas lingüísticas funcionam desse modo que a memória preservativa pode ser vista como funcionando de maneira análoga à anáfora, como quer Burge (ibid.) — é justamente porque supomos que os sujeitos (tacitamente) mantém a intenção de deferir o significado de seus termos à sua comunidade lingüística original que é plausível pensar que, em casos como os de mudança lenta, o sujeito pode preservar o conteúdo de pensamentos passados, ainda que se encontre em um ambiente diferente daquele no qual expressou tal pensamento pela primeira vez.
É claro que nem todos os erros em casos de mudanças lentas necessariamente serão ‘empíricos’, no sentido acima. O exemplo original de Burge, do sujeito que, na situação atual, emprega o termo ‘artrite’ para uma dor na coxa, é claramente um caso de erro gramatical, e, justamente por isso, não pode ser corrigido por meio de uma ‘investigação empírica’ — nem tampouco por meio de uma ‘investigação empírica’ das práticas lingüísticas de nossa comunidade. O que preciso é aprender a gramática do termo em pauta, e isso é muito diferente. Por outro lado, em casos como esse, penso que Davidson (ibid.) tem razão ao afirmar que o erro do sujeito também não é um erro acerca do conteúdo de seus pensamentos — tanto que o sujeito pode explicitar esse conteúdo de um modo que todos nós compreenderemos o que ele estava pensando, e lhe atribuiremos um pensamento (ou, mais exatamente, uma crença) falso(a). Em todo caso,
pace Davidson, não há um critério único e infalível para determinar o conteúdo das crenças do sujeito nessas situações.
Referencias:LUDLOW, P.; MARTIN, N. (Ed.). Externalism and Self-Knowledge. Standford, California: CSLI Publications, 1998.
KRIPKE, S. Naming and Necessity. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1972.
PUTNAM, H. The Meaning of ‘Meaning’. In: Mind, Language, and Reality: Philosophical Papers, Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975. p. 215–271.