Notas acerca do texto de Tyler Burge
"Individualism and Self-Knowledge" (In: LUDLOW, P.; MARTIN, N. (Ed.). Externalism and Self-Knowledge. Standford, California: CSLI Publications, 1998.)
Nesse artigo, Burge apresenta um `experimento de pensamento' com três estágios. No primeiro deles o autor nos pede para imaginar o seguinte:
Uma dada pessoa possui um grande número de atitudes comumente atribuídas com cláusulas de conteúdo contendo ‘artrite’ em referência oblíqua. Por exemplo, ele pensa (corretamente) que ele tem tido artrite durante anos, que a artrite em seus pulsos e dedos é mais dolorosa do que a artrite em seus tornozelos, que é melhor ter artrite do que cancer no fígado, que juntas endurecendo são um sintoma de artrite, que certos tipos de dores são características de artrite, que há vários tipos de artrite, e assim por diante. Em suma, ele possui um grande número de tais atitudes. Além dessas atitudes não surpreendentes, ele pensa falsamente que desenvolveu artrite na coxa.
Apesar de ser um falante “geralmente competente de Português, racional e inteligente”, o sujeito relata seu temor de estar com artrite na coxa ao médico, o qual lhe responde que isso não é possível, posto que “artrite é especificamente uma inflamação nas juntas”. O segundo estágio do experimento é a “suposição contrafactual” de que:
A pessoa poderia ter tido a mesma história física e os mesmos fenômenos mentais não intencionais enquanto a palavra ‘artrite’ era convencionalmente aplicada, e definida como se aplicando, a vários males reumatóides, inclusive aquele na coxa da pessoa, bem como à artrite.
O ponto relevante nessa suposição contrafactual é a variação no ambiente social ou lingüístico do sujeito, que difere da situação atual dado o emprego do termo ‘artrite’ inclusive para o caso de males reumatóides na coxa. O passo final do experimento consiste na interpretação dessa suposição contrafactual. Segundo Burge, “é razoável pensar que”:
Na situação contrafactual, o paciente não possui algumas — provavelmente todas — as atitudes comumente atribuídas por meio de cláusulas contendo uma ocorrência oblíqua de ‘artrite’. Ele não possui os pensamentos ou crenças ocorrentes de que ele tem artrite na coxa, que ele veio tendo artrite há anos, que juntas endurecendo e vários outros tipos de dores são sintomas de artrite, que seu pai teve artrite, e assim por diante.
A razão para não atribuirmos ao sujeito atitudes cujo conteúdo seria especificado pelo conceito de artrite é simplesmente o fato de que, “a palavra ‘artrite’ na comunidade contrafactual não significa artrite” — de fato, possivelmente nenhuma outra palavra da situação contrafactual possui esse significado. O resultado apresentado por Burge é o de que: “os conteúdos mentais do paciente diferem enquanto todas as suas histórias mentais não-intencionais, consideradas em isolamento de seu contexto social, permanecem as mesmas”. Em outras palavras, os conteúdos dos estados mentais do sujeito não são determinadas (exclusivamente) por fatores ‘internos’ ao sujeito, i.e., por qualquer tipo de consideração do indivíduo tomado em isolamento de seu ambiente social, mas dependem de fatores ‘externos’.
Um dos pontos centrais da análise desse experimento diz respeito às condições de possibilidade de sua aplicação. Segundo Burge: “o argumento pode ser apresentado em qualquer caso no qual seja intuitivamente possível atribuir um estado ou evento mental cujo conteúdo envolve uma noção que o sujeito compreende incompletamente”. Posições individualistas tendem a sustentar exatamente o contrário, ou seja, que só faz sentido atribuir estados ou eventos mentais a um sujeito em casos nos quais ele compreenda completamente o significado das noções envolvidas. Burge assinala que essa suposição “deriva frouxamente [...] do velho modelo de acordo com o qual uma pessoa deve estar diretamente familiarizada [acquainted] com, ou deve apreender imediatamente, os conteúdos de seus pensamentos”. É justamente porque assumem tacitamente esse “velho modelo” que, em geral, os defensores de posições individualistas discordam da interpretação da suposição contrafactual apresentada acima, e preferem reinterpretar a atribuição envolvida no segundo passo do experimento de várias maneiras contra-intuitivas.
O modelo alternativo apresentado por Burge salienta o que ele descreve como “uma certa responsabilidade do sujeito em relação às convenções comunais que governam, e as concepções associadas com, símbolos que ele está disposto a usar”. A idéia fundamental é pensar num padrão social complexo governando o uso dos termos de nossa linguagem. Esse padrão, por sua vez, poderia ser apresentado por meio de várias metáforas, tais como as da “geometria aplicada, medição de magnitudes, avaliação por meio de um padrão monetário, etc.”, mas Burge opta por uma metáfora com a análise musical. É em relação a esse padrão que os estados mentais do sujeito seriam “mensurados”. Dado o caráter ‘externo’ desse padrão, é possível uma grande variação no domínio que cada sujeito tem de sua aplicação; não obstante, dado seu caráter público, é possível a atribuição de estados mentais a um sujeito mesmo nos casos em que ele próprio apresente uma compreensão incompleta do significado das noções que nós, componentes de sua comunidade lingüística, empregamos nessas atribuições. Burge expressa esse ponto de modo muito interessante ao dizer, ao final de seu artigo, que as palavras interpretadas segundo esse modelo são “familiares, palpáveis e públicas”, e constituem uma “moeda comum” e “relativamente estável”, por meio da qual podemos alcançar os fins das atribuições mentais em nossas práticas lingüísticas.