A meu ver, o capítulo 3 de Individuals tem 2 pontos altos: (i) a critica contra a posição da 'não-propriedade' (que tambem seria um tipo de dualismo), e (ii) o diagnostico do erro fundamental das posições dualistas: querer isolar 'mente' e 'corpo' e buscar critérios completamente independentes de aplicação para os predicados de cada uma destas esferas. Mas há pelo menos dois pontos que merecem um exame mais crítico, pois apontam para duas suposicoes fundamentais da análise strawsoniana que me parecem problematicas: a tese da 'intransferibilidade lógica da posse' de certos estados mentais, que aponta para o carater empirista da metafísica strawsoniana, e a alegação de que usos de sentenças em primeira e terceira pessoa têm uma mesma função em nossas práticas linguísticas, que aponta para a tese da prioridade do discurso em terceira pessoa para a objetividade dos enunciados linguísticos.
Quanto ao primeiro ponto, cabe dizer que o tom utilizado por Strawson para falar da dependência 'lógica' dos particulares privados em relacao `a pessoa eh muito mais causal do que lógico, e a `dependência' que parece relevante é da 'posse' num sentido muito físico do termo, como se a 'pessoa' fosse um tipo de receptáculo causal de tais particulares. Mas, mesmo concedendo que o interesse de Strawson seja mesmo o de indicar a prioridade lógica da `pessoa' para a identidade dos particulares privados, poder-se-ia atacar a posição strawsoniana a partir de uma perspectiva wittgensteiniana, segundo a qual a identidade de `particulares mentais' – como dores, sentimentos, etc. – possui uma natureza completamente diferente da identidade de particulares físicos. No caso de estados mentais, segundo essa perspectiva, nao faz sentido -- ao contrario do caso dos particulares fisicos -- distinguir entre identidade qualitativa e numérica, e, consequentemente, não ha necessidade de se buscar critérios de identidade numérica dependentes da posse por uma pessoa.
Sobre o segundo ponto, concordo com Strawson quando ele diz que predicados empregados para a atribuição de `particulares privados' devem ter um mesmo sentido tanto em auto-atribuições quanto em atribuições em terceira pessoa. Conseqüentemente, concordo com a importância e pertinência de se falar em critérios comportamentais, bem como de se dizer que aprender a usar um tal predicado é aprender a usá-lo nesses dois casos. Mas o problema reside na explicação dada por ele para esse uso, que parece assimilar a objetividade dos enunciados auto-atributivos (em primeira pessoa) à objetividade dos enunciados atributivos em terceira pessoa – como se a objetividade dos enunciados auto-atributivos devesse depender, de alguma forma indireta – que não é fácil entender extatamente qual é -- das atribuicoes em terceira pessoa. Colocando ponto de outra forma: Strawson deseja escapar dos problemas do solipsismo, buscando, para tanto, elucidar o funcionamento ordinário de nossos conceitos. Mas nessa busca ele acaba negando a legitimidade de se usar uma perspectiva na qual há prioridade do `subjetivo', negando a propria autoridade da primeira pessoa em certos contextos linguísticos. É como se o problema do solispismo só pudesse ser resolvido extraindo de nosso esquema a esfera perspectiva da primeira pessoa em relacao a seus proprios estados mentais, substituindo-a pela perspectiva da terceira pessoa, e pelos critérios intersubjetivos empregados na comunidade linguística.
A intenção de Strawson com essa manobra é salvar algo realmente muito importante em nosso esquema conceitual – a manutenção de um mesmo sentido pelos predicados em usos auto-atributivos e "outro-atributivos". Mas ele pensa que para salvar isso os próprios enunciados que fazem uso de tais predicados devem possuir um mesmo sentido, uma mesma função em nossa linguagem – que eh a de descrever estados mentais -- independentemente de serem feitos em primeira ou terceira pessoa. E, para garantir um mesmo sentido a esses dois tipos de enunciado, é necessário que os pronomes de primeira e terceira pessoa tenham uma mesma função, que é, segundo Strawson, de denotar a pessoa à qual o enunciado refere. (De fato, nessa explicação de Strawson parace estar implicita a concepcao que Wittgenstein denomina de "agostiniana" da linguagem).
Neste ponto pode-se indicar a ligacao entre a análise lógica dos enunciados de atribuição de experiências com a metafísica dos particulares mentais de Strawson: para conseguir mostrar que enunciados em primeira e terceira pessoa tem um mesmo sentido, ele acaba sendo obrigado a dar um sentido muito "estranho" aos predicados utilizados em tais enunciados, como se o conceito de 'dor x' referisse tanto à dor x particular que eu tenho, e à dor x particular que tu tens, e que são, portanto, numericamente distintas mas qualitativamente idênticas. Dessa forma, nosso conceito de 'dor X' compreenderia sob si, nas próprias palavras de Strawson, "o que é sentido, mas não observado, por X, e o que pode ser observado, mas não sentido, por outros que X" (p. 109) , garantindo assim uma linguagem objetiva, não solipsista, que não dê significados subjetivos e talvez incognoscíveis por outros para os predicados. Se, pelo contrário, Strawson tomasse tais predicados como não tendo que fazer referência a particular algum, e simplesmente tendo uma certa função peculiar nas nossas práticas linguísticas, a questão do solipsismo poderia ser resolvida (ou descartada) de um modo muito mais adequado. Não ha necessidade de se distinguir entre dois sentidos para os predicados em questao (dependendo do uso ser feito em primeira ou terceira pessoa); o que teria um outro sentido – i. e. outra função em nossa linguagem – seriam os próprios enunciados de primeira pessoa, que fizessem uso de tais predicados. Esses enunciados não são enunciados descritivos, mas sim enunciados expressivos, que fornecem criterios (ainda que faliveis) para que os outros sujeitos atribuam e descrevam meus estados mentais.
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