[...] parece claro que o argumento de Descartes [em prol do dualismo] depende dos resultados da aplicacao do metodo da duvida. Mas por meio desse metodo Descartes deve ter duvidado da existencia do homem Descartes: de qualquer forma daquela figura no mundo de seu tempo, aquele frances, nascido em tal e tal lugar e batizado de Rene; mas alem disso, mesmo do homem --- a nao ser que um homem nao seja uma especie de animal.Se , entao, a nao-identidade dele com seu proprio corpo segue-se de seus pontos de partida, entao igualmente segue-se a nao-identidade dele mesmo com o homem Descartes. `Eu nao sou Descartes' seria uma conclusao tao valida quanto `eu nao sou um corpo'. Formular o argumento na terceira pessoa, substituindo `eu' por `Descartes', eh perder isso. Descartes poderia ter aceitado essa conclusao. Aquele sentido mundano, pratico, corriqueiro no qual teria sido correto para ele dizer `eu sou Descartes' nao tinha relevancia para ele nesses argumentos. Aquilo que era nomeado por `eu' --- aquilo, em seu livro, nao era Descartes. (pp. 140--141)
O mais interessante eh a explicacao para a possibilidade dessa conclusao. Se a nao identidade em pauta fosse de Descartes com Descartes, entao claramente teriamos uma reducao ao absurdo de sua posicao. Mas a nao identidade relevante deve ser entre entre Descartes e ele mesmo --- ou, para dar um exemplo em primeira pessoa, que seria o mais adequado, entre J.T. e eu mesmo. Essa nao identidade eh possivel devido ao uso peculiar do pronome reflexivo nela constante --- o que Anscombe chama, seguindo um uso da gramatica inglesa, de `reflexivo indireto', ou seja, um pronome reflexivo empregado na fala indireta (voz passiva, oratio obliqua). Ao contrario do uso ordinario do pronome reflexivo --- o qual pode ser sempre substituido, salva significatione e salva veritate, pelo nome proprio do sujeito --- o uso indireto deve ser sempre ``explicado em termos de `eu'''. Anscombe esclarece esse uso por meio do uso de exemplos. Meu exemplo preferido eh o de um sujeito que leva uma pancada na cabeca, desmaia, e acorda pensando (e podendo dizer): ``Eu sou Napoleao Bonaparte''. Nesse caso, o sujeito erra completamente a identidade do sujeito ao qual o pronome de primeira pessoa deveria fazer referencia, sem, contudo, deixar de empregar o pronome em pauta de maneira gramaticalmente correta. Conclusao: o uso do pronome de primeira pessoa, em tais casos, eh compativel com ignorancia da identidade do objeto referido (de fato, Asncombe ira mais longe, e argumentara que essas e outras caracteristicas do uso de `eu' provam que esse pronome nao possui funcao referencial alguma, mas me abstenho desse debate aqui).
Dada essa breve analise, considere a seguinte definicao (referencial) para o uso do pronome de primeira pessoa:
DR: `eu' eh a palavra que cada um de nos usa para falar de si mesmo.
Qual eh o problema com essa definicao, prima facie tao plausivel e intuitiva? Primeiramente, dados os dois usos do pronome reflexivo mencionados acima, DR eh ambigua. Se o uso de `si mesmo' for o ordinario (substituivel pelo nome proprio), entao a definicao nao esta correta, nao da conta de todos os casos --- pois ha casos, como aqueles do sujeito que acorda da pancada, na qual ele nao eh capaz de `falar de si mesmo' nesse sentido ordinario. Claro, ele eh capaz de `falar de si mesmo' num outro sentido (o indireto). Entao imaginemos que a definicao empregue o uso indireto. Nesse caso, argumenta Anscombe, a definicao se torna circular --- ela nao nos diz absolutamente nada, e equivale a algo como
DR' : `eu' eh a palavra que cada um de nos usa para falar sobre eu.
Talvez os fregeanos de plantao preferiram a explicacao que Anscombe da na sequencia. Imagine que alguem proponha definir `eu' como o termo que alguem usa para falar intencionalmente ou autocoenscientemente de si mesmo. Afnal, ao falar de si mesmo, Smith nao esta falando intencionalmente de Smith?
Pode-se dizer: `Nao no sentido relevante. Todos sabemos que nao se pode substituir qualquer designacao do objeto que ele tencionava falar sobre e manter o enunciado sobre sua intencao verdadeiro'. Mas isso nao eh resposta a menos que o pronome reflexivo ele mesmo fosse indicacao suficiente do modo no qual o objeto eh especificado. E isso eh algo que o pronome reflexivo ordinario nao pode ser. Considere: `Smith da-se por conta (falha em dar-se por conta) da identidade de um objeto que ele chama ``Smith'' consigo mesmo'. Se o pronome reflexivo eh o ordinario, entao ele especifica para nos falantes que ouvimos a frase, um objeto cuja identidade com o objeto que ele chama `Smith'' Smith da-se por conta ou nao. Mas isso nao nos diz que identidade Smith da-se por conta (ou falha em dar-se por conta). Pois, como defendeu Frege, nao ha caminho de volta da referencia para o sentido ; qualquer objeto tem muitos modos de ser especificado, e nesse caso, dada a peculiaridade da construcao, conseguimos especificar um objeto (por meio do sujeito de nossa frase) sem especificar qualquer concepcao na qual a mente de Smith deveria esbarrar (latch on to) . Pois nao queremos dizer que `Smith nao deu-se por conta da identidade de Smith com Smith. / Soh precisamos admitir uma falha na especificacao da identidade pretendida se persistirmos em tratar o reflexivo em `Ele nao deu-se por conta de sua identidade consigo mesmo' como o ordinario. Na pratica nao temos dificuldade alguma aqui. Sabemos o que Smith nao se da por conta. Eh: `eu sou Smith'. Mas se eh assim que compreendemos o reflexivo, ele nao eh o ordinario. Eh um [reflexivo] especial que soh pode ser explicado em termos da primeira pessoa. (p. 142, negritos adicionados por mim)
Fico por aqui. Tarefa para mim mesmo: ligar essa analise com a de John Perry, do indexical essencial, e com a de Kaplan, dos demonstrativos puros.
Um comentário:
O que você acha do texto do Landim sobre o uso que Descartes faz do dêitico (ele chama assim) 'eu'?
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