Ao final do cap. VIII de Insight and Illusion Hacker apresenta uma reconstrucao do argumento de Wittgenstein contra o solipsismo. Primeiramente, ele assinala tres formulacoes wittgensteinianas da tese essencial do solipsista ``em ordem de crescente atomicidade'' (p. 230):
Toda vez que algo eh realmente visto, sou sempre eu que vejo;
A unica realidade eh minha experiencia presente;
Sempre que algo eh visto eh isto que eh visto (apontando para o campo visual do sujeito).
Segundo Hacker, ``a estrategia de Wittgenstein eh testar cada elemento individual dessas formulas para descobrir fraquezas, e em ultima instancia mostrar que o emprego daquele elemento pressupoe para sua inteligibilidade a existencia de um conjunto de condicoes que o solipsista repudia'' (ibid.). O paralelo com a estrategia kantiana nao eh mera coincidencia --- afinal, um dos objetivos originais do livro de Hacker era justamente aproximar as analises desses dois filosofos (Kant e W.).
Os``elementos individuais'' das formulas acima que serao analisados por Hacker sao, respectivamente, os 6 seguintes: (1) o termo `presente';(2) o pronome `eu'; (3) a natureza da `posse' do `isto' que eh experienciado; (4) a afirmacao de que eh sempre o sujeito que ve; (5) o sentido de `experiencia', e, por fim, o gesto ostensivo para o campo visual com o fim de indicar a `realidade'.
Segue um breve resumo da analise de cada um dos pontos.
(1) A condicao da temporalidade: o solipsista não traca contraste algum --- nem com o passado nem com ofuturo --- ao empregar o termo `presente'; no maximo esse termo parece ser redundante em sua explicacao. Empregando a metafora do projetor de filmes, W. afirma que nao faz sentido referir ao quadro que esta na lente do projetor como o quadro `presente' a nao ser que ele tenha `vizinhos', i.e., outros quadros o antecedem e o sucedem.
(Segue um paralelo com a Refutacao do Idealismo de Kant, e a necessidade de um permanente para determinar (temporalmente) as representacoes). (cf. pp. 230--231)
(2) Ascondicoes para a identidade pessoal: a quem o solipsista esta se referindo quando fala que ``sou sempre eu que vejo algo''? Nao ha nada dentro de seu campo visual que possa servir de ponte entre o que eh visto e uma pessoa ou sujeito--- ``Se isto eh o que ele ve, entao eh isso que tambem eh visto simpliciter. Como ele poderia apresentar a conexao entre o eu (self) unico e o que eh visto quando `a ideia de uma pessoa nao entra naquilo que eh visto' [?]'' (p. 232).
Uma das principais origens dessa confusao do solipsista reside na compreensao incorreta da gramatica dao pronome `eu'. No Blue Book W. distingue dois usos desse pronome --- o uso como objeto (e.g.,``eu quebrei meu braco'') e o uso como sujeito (e.g., ``euvejo x''). Este ultimo uso eh o que apresenta a imunidade a erro por identificacao incorreta do sujeito: quando emprego o pronome `eu' em frases como ``eu vejo x'', ``eu tenho dor de dente'', etc., nao posso predicar erroneamente essa visao, dor, etc., de mim mesmo--- como num caso em que, per impossibile, seria voce que ve x ou tem a dor que predico de mim mesmo. Mas essa impossibilidade de erro, NB, nao reside no acesso privilegiado ao sujeito da predicacao, e sim, simplesmente, no fato de que nao preciso identificar sujeito algum para fazer esse tipo de enunciacao.O solipsista erra ao inferir dessa nao necessidade de identificar uma pessoa que o `eu' deve referir a outro algo --- como,e.g., uma res cogitans cartesiana (p. 233).
(Nesse contexto Hacker propoe um paralelo com oargumento kantiano no terceiro Paralogismo, o da personalidade, noqual Kant indica o erro do racionalista ao inferir da unidade (formal) da autoconsciencia (apercepcao transcendental) a identidade numerica do sujeito (ou de sua alma, mente, etc.) atraves do tempo)(cf. p. 234)
Resumindo: o problema do solipsista eh que eh logicamente impossivel para ele ``saber o que ele significa por `eu', pois as condicoes sob as quais o uso de `eu' eh significativo sao desconsideradas ou negadas pelo solipsista. Com efeito, ele removeu seu uso de `eu' dos jogos de linguagem que fornecem-lhe um papel''(p. 238)
(3) A condicao da propriedade (ownership): o solipsista constroi seu argumento sobre a afirmacao de que ninguem pode ter a minha dor. Ao fazer isso ele confunde o tratamento da``mesmidade'' (sameness) de objetos e ``mesmidade'' de experiencias. No caso de objetos, podemos distinguir entre identidade qualitativa e identidade numerica: duas cadeiras podem ser qualitativamente identicas, mas numericamente distintas. Mas não fazemos essa distincao em outros casos, tais como, e.g., na identificacao de cores--- se ambas as cadeiras são pintadas com o mesmo tom de cinza entao elas possuem a mesma cor (não faz sentido falar que elas possuem apenas qualitativamente a mesma cor –cf. p. 238). Com pensamentos ocorre o mesmo que com cores: se dois sujeitos, A e B, pensam que p, entao eles dois tem o mesmo pensamento. Eh claro que podemos ter criterios de posse que permitam distinguir, e.g., entre a posse de um mesmo pensamento por parte de A e de B. Mas o solipsista confunde esses criterios de posse com criterios de identidade, i.e., criterios para determinar o proprio conteudo de pensamentos (cf. pp. 238—239).
[Por sinal, esse eh o problema de Strawson tambem --- vide post anterior].
Na raiz da confusao do solipsista com relacao `a condicao de propriedade esta ``a tentacao de interpretar a gramatica dos verbos psicologicos de primeira pessoa no modelo da terceira pessoa, e de interpretar substantivos (nouns) psicologicos tais como `dor', `intencao',`sentimento' no modelo de nomes de objetos'' (p. 240)
(4) A condicao de continuidade: o solipsista pretende com o uso de`eu' fazer referencia a uma substancia, com algum tipo de identidade. Mas, dada sua falha em atentar para as circunstancias efetivas nas quais essa condicao eh cumprida em nossos jogos de linguagem (para o uso do pronome `eu'), ele acaba sendo levado a abandonar de vez o uso desse pronome. ``Ao inves de dizer `toda vez que algo eh visto, sou sempre eu que vejo isso', ele agora dira `toda vez que algo eh visto, algo sempre eh visto'. O que eh único eh a experiencia; o mundo eh ideia'' (p. 241).
(5) A condicao da experiencia: o solipsista sustenta que um predicado de experiencia pode ser significativo mesmo que sua atribuicao a outros seja inconcebivel --- como se o significado de tais predicados pudesse ser definido simplesmente por referencia `as experiencias do sujeito. Hacker aqui simplesmente assinala o locus classicus para o argumento deWittgenstein contra essa possibilidade, a saber, o famoso `argumento da linguagem privada' (que sera analisado detalhadamente apenas na sequencia do livro). (pp. 241—242)
(6) As condicoes dos gestos ostensivos: o movimento final do solipsista consiste em reformular sua posicao, indicando simplesmente que sempre que algo eh visto eh isto que eh visto (apontando para sei proprio campo visual). Mas esse gesto ostensivo na verdade não serve para pincar uma coisa em contraste com outra. ``O gesto de apontar do solipsista, assim como seu `momento presente', seu `eu', sua `propriedade', não tem vizinhos. Não esta dentro de um espaco, não eh a atualizacao de uma possibilidade entre outras'' (p. 242). ``Em suma, essas expressoes [demonstrativas] pressupoem a existencia de um espaco publico no qual os objetos são localizaveis e reidentificaveis por referencia a seu caminho espacial atraves do tempo'' (pp. 242—243) [mais uma vez, um pontokantiano-strawsoniano].
Um comentário:
Quando o assunto é solipsismo, sempre é bom dar uma olhada no parágrafo 43 de Ser e Tempo. Vai na mesma direção.
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