O capítulo 3 de Individuals versa sobre o que Strawson denomina de 'questões do solispsismo', i.e., quais são as condições para distinguirmos entre, de um lado, nós e nossos estados de consciência, e, de outro, tudo o que não é nós mesmos ou nossos estados de consciência. Em jargao strawsoniano, o problema eh o de estabelecer as condições de uso para o conceito de `sujeito de experiência' em nosso esquema conceitual.
Visando determinar quais são essas condições, Strawson comeca analisando um esquema conceitual alternativo, o do mundo puramente audível, apresentado no capítulo 2. Strawson pergunta como poderia um som, que é um item dentro da experiência, ser também o sujeito de tal experiência, e como ele poderia estabelecer um contraste entre ele mesmo e os (demais) sons que ele experimenta. Tal procedimento visa introduzir certa "estranheza" com respeito a algo que é o caso mesmo em nosso esquema – a possibilidade de um item dentro da experiência ser também algo que tem experiências. Para investigar essa possibilidade Strawson parte das seguintes questões: (i) por que atribuímos estados de consciência a algo – e não, e.g., simplesmente dizemos que eles existem "por aí", como ``feixes de impressões'' – e mais, (ii) por que atribuir tais estados exatamente à mesma coisa da qual dizemos ter características físicas (espaco-temporais)?
A primeira tentativa de resposta consiste em atentar para o caráter único e fundamental que nosso corpo tem na produção de nossas experiências e estados de consciência (principalmente os estados perceptivos). Apesar de ser um fato contingente que um só corpo tenha tal função, é realmente um fato crucial para nós. O problema eh que atentar para esse papel fundamental de nosso corpo ainda não responde as perguntas acima. Em primeiro lugar, isso não fornece um motivo para o fato de que tenhamos que atribuir experiências a algo (simpliciter) ao inves de nada. E mesmo se essa questao pudesse ser respondida, e o melhor candidato a possuidor de experiências fosse mesmo nosso corpo --- devido ao papel causal desse corpo na produção das experiencias relevantes --- tal resposta ainda não explicaria por que nós atribuímos características físicas e mentais a exatamente a mesma coisa (dizemos tanto que 'eu estou ferido' quanto que 'eu estou triste'), ao inves de, por exemplo, dizer que o que possui características físicas é um corpo que fica numa relação causal privilegiada com nossos estados mentais.
Essas considerações apontam para algo que Strawson estabelecerá mais adiante: a primitividade, em nosso esquema conceitual, do conceito de 'pessoa', em relação aos conceitos derivados de 'mente' e 'corpo'. A sugestao eh a de que estados mentais dependem, para o estabelecimento de sua identidade, da relação – de posse, por suposto – com um particular primitivo, a 'pessoa'. A primitividade desse particular eh o que fornece o rationale para nossa pratica de atribuir estados de consciência a algo antes que a nada. Já a pergunta sobre por que atribuir estados de consciência à mesma coisa à qual atribuímos características físicas, não é exatamente respondida dada a primitividade do conceito de 'pessoa', mas é mostra-se sem sentido, pois resulta da suposicao tacita de que os conceitos de 'mente' e 'corpo' sao independentes e primitivos em relação ao conceito de 'pessoa'.
O interessante eh que, segundo o diagnostico de Strawson, essa desatenção à primitividade do conceito de 'pessoa' estaria implícita não apenas na posição dualista cartesiana, mas também no que ele denomina de posição da 'não-propriedade' (no-ownership), que ele atribui a Wittgenstein e a Schlick --- i.e., a posicao que nega que haja um sentido para atribuições de estados mentais a algo, posto que não haveria 'transferibilidade lógica da posse' de estados mentais; grosseiramente, se esses estados não podem ser transferidos, entao eles tambem não podem ser possuídos. Segundo Strawson, essa ultima posicao seria também um tipo de dualismo --- não um dualismo ebtre entre dois sujeitos (uma mente e um corpo), mas sim entre um sujeito e um não sujeito. O dualismo surge, tanto neste caso como no de Descartes, devido `a desatencao da prioridade lógica do conceito de 'pessoa', que leva a buscar critérios distintos e independentes para atribuição de estados mentais e físicos --- critérios estes que Descartes pensaria ter encontrado, enquanto que os partidários da 'não-propriedade' pensariam só os terem encontrado para o caso de propriedades físicas; ora, uma vez que esses ultimos seriam mais "honestos" ;-) quer os cartesianos, eles seriam levados a negar a propria existência de estados mentais qua particulares passíveis de qualquer posse ou atribuição.
O que estas duas posições ``dualistas'' não observariam é que há bons critérios para se atribuir estados de consciência, não para egos, mas para pessoas, e que sao esses mesmos critérios que excluem a `transferibilidade lógica da posse' de tais estados. A falha fundamental do sualismo seria não atentar para o fato de que é condição para que possamos atribuir estados de consciência a nós mesmos que possamos atribuí-los também a outros, i.e., o sentido dos predicados utilizados na atribuição de estados de consciência só é compreendido atentando para os dois aspectos de seu uso: em primeira e em terceira pessoa. Os critérios de que fala Strawson são comportamentais – é observando outros sujeitos que posso dizer deles que estão nesse ou naquele estado mental.
Dada essa analise, o que ainda poderia incomodar um filósofo é o fato de que nem sempre temos que observar nosso próprio comportamento para dizer de nós mesmos que estamos no estado mental X --- o que implicaria que o sentido do predicado não seria o mesmo nos casos de atribuição em primeira e terceira pessoa. Como poderia o sentido ser o mesmo, se os critérios de verificação são tão distintos? Esta pergunta, segundo Strawson, equivale à questão sobre 'como é possível o conceito de 'pessoa'?'. Ou seja, entender satisfatoriamente o papel desse conceito em nosso esquema conceitual implica estar consciente de um fato bastante geral sobre tal esquema: que nós vivemos em uma comunidade de seres humanos, todos com uma certa natureza comum. É por isso que podemos, entre outras coisas, interpretar movimentos de um corpo humano como ações, i.e., como um movimento imerso em um contexto de intenções. Isso significa, para Strawson, simplesmente que
nós vemos [os movimentos dos outros seres humanos] como movimentos de indivíduos de um tipo ao qual também pertence aquele indivíduo cujos movimentos futuros e presentes nós sabemos sem observação [i.e., nós mesmos]; isso quer dizer que nós vemos os outros como auto-atribuidores, não na base de observação, do que nós atribuímos a eles com esta base. (p. 112)
Entender um predicado mental do tipo em questão é entender que ele cobre tanto o que é sentido mas não observado por mim, quanto o que é observado mas não sentido pelos outros. O sentido destes predicados contém estes dois aspectos ao mesmo tempo, e por isso, os predicados não seriam equívocos.
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